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Hume e a Epistemologia do Testemunho

5 ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DE HUME CONTRA OS MILAGRES

5.2 Análise do Argumento Epistêmico Contra os Milagres (AECM)

5.2.1 Hume e a Epistemologia do Testemunho

Outro problema com o (AECM) de Hume, diz respeito à epistemologia do testemunho a ele subjacente. A premissa (2) do argumento diz o seguinte:

(2) A evidência testemunhal em favor de um milagre M deve ser sempre dosada com a evidência indutiva que dispomos previamente em favor de ¬M.

Para essa premissa ser verdadeira, a concepção reducionista de testemunho terá de ser a mais plausível. Mas será a concepção reducionista de testemunho a mais plausível? Se houver uma concepção não-reducionista do testemunho mais plausível, ou alguma concepção híbrida (como defenderemos que há), então já não será nada claro nem evidente que essa premissa do argumento de Hume é verdadeira. E não sendo ela uma premissa verdadeira, a conclusão cai com o argumento.

Uma passagem importante em que Hume mostra a sua concepção sobre o valor ou estatuto epistêmico do testemunho é a seguinte (EHU, 10, §8):

A razão pela qual atribuímos qualquer crédito a testemunhas e historiadores não é derivada de qualquer conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas porque estamos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles.

Não há dúvidas de que boa parte de nossas crenças são adquiridas por meio da palavra falada ou escrita de outras pessoas (bem como por meio de outras formas possíveis de comunicação). O testemunho, portanto, parece ser uma fonte importante de aquisição de crenças. A epistemologia do testemunho nos apresenta, em geral, duas teorias rivais sobre o estatuto epistêmico do testemunho: o reducionismo e o não-reducionismo.

A teoria reducionista tem antepassados teóricos no próprio Hume. Segundo ela, o valor ou estatuto epistêmico do testemunho é redutível ao que não é testemunhal, a saber: à percepção sensorial, à memória, à inferência indutiva, etc. Neste sentido, como já aludimos, o ouvinte não pode contar apenas com o relato da testemunha, pois tem que atentar para a correspondência entre o que é falado e a experiência prévia com fatos correspondentes. Assim sendo, uma testemunha só será considerada crível se as instâncias do seu testemunho encontrarem respaldo na realidade, tal como vivenciada pelas experiências prévias do ouvinte, de modo que se possa

assentir indutivamente ao testemunho. O testemunho, portanto, não é uma fonte básica de conhecimento.

Uma definição clara para a teoria reducionista é fornecida por Faria, qual seja (2017, p. 282):

(TR112) Para cada falante, A, e ouvinte, B, B acredita que p com garantia com base do

testemunho de A sse B tem razões positivas, não-testemunhais, suficientemente boas para aceitar o testemunho de A. Ou seja, a garantia testemunhal é redutível à garantia da percepção, memória, e inferência indutiva.

Faria (2017) ainda distingue duas formas de reducionismo de testemunho: o reducionismo global e o reducionismo local. O primeiro trata da garantia para aceitar o testemunho em geral como uma fonte fiável de crença; em contraste, o segundo trata da garantia para aceitar o testemunho em particular como uma fonte fiável de crença. Em ambas as formas, contudo, a garantia testemunhal se reduz à elementos não-testemunhais.

O problema com as perspectivas reducionistas, em suma, é que elas são exigentes demais quanto à garantia testemunhal, de modo que muitas crenças testemunhais para as quais temos intuitivamente garantia acabam sendo descartadas como se não a tivessem, como é o caso de crianças que adquirem crenças intuitivamente garantidas a partir do testemunho de seus pais, apesar de ainda não terem sofisticação intelectual para fazerem uma sofisticada indução inferencial. Pois bem, e contra a forma global de reducionismo, podemos argumentar que ela constrói uma barreira praticamente intransponível entre o ouvinte e a justificação da sua crença testemunhal, dada a pura e simples inviabilidade de checar uma ampla variedade de relatos para então podermos concluir, com razões positivas, que o testemunho em geral é fiável.

E contra a forma local de reducionismo, podemos pontuar que a maioria das pessoas comuns não conseguem fazer uma inferência sofisticada para todos os casos em que a garantia testemunhal parece acontecer, como, por exemplo, quando uma pessoa comum vai ao médico e recebe dele o testemunho de que certo remédio serve para o seu problema estomacal. Parece intuitivo que há garantia para se acreditar no testemunho do médico quanto à eficácia do remédio prescrito, apesar de nem todos serem capazes de inferências indutivas sofisticadas a ponto de justificar a crença de que certo remédio é de fato propício à cura de certa enfermidade. Portanto, com base em tais problemas, podemos concluir que o reducionismo do testemunho não parece ser uma teoria plausível do testemunho.

Há, por outro lado, a teoria rival: o não-reducionismo. Em linhas gerais, ela estabelece que a garantia testemunhal é de valor ou estatuto epistêmico irredutível, isto é, não se reduz à nada não-testemunhal. Assim sendo, o testemunho não exige necessariamente razões positivas não testemunhais. Um exemplo disso é o caso já aludido de crianças que acreditam no testemunho de seus pais como fonte irredutível, básica, de crença. A respeito disso, Plantinga, que é caudatário da visão não-reducionista de testemunho, diz o seguinte (2018, pp. 217-218):

As crianças pequenas, ao que parece, foram crenças acerca dos estados mentais de seus pais muito antes de chegarem a uma idade em que sejam capazes de fazer inferências indutivas. A capacidade de formar crenças desse tipo não é algo que se adquire por meio do aprendizado indutivo; ao contrário, faz parte do nosso equipamento cognitivo natural e original.

Assim, por exemplo, na perspectiva não-reducionista as crenças com base no testemunho se assemelham às de memória. Ao que parece, não cremos que comemos pão e queijo no café da manhã com base em qualquer argumento: apenas lembramos. Portanto, a conclusão sobre o que comemos no café da manhã parece se apoiar sobre outro fundamento que não o raciocínio. Os antepassados teóricos do não-reducionismo remetem à Thomas Reid, que disse sobre o testemunho não menos que (1983, p. 281): [...] o sábio autor da natureza plantou na mente humana uma propensão para confiar no testemunho humano antes que possamos dar uma razão para fazê-lo”.

Ademais, na teoria não-reducionista é facultativo a posse de razões positivas em favor do testemunho, mas não é facultativo a ausência de razões negativais ou contrárias, isto é, a ausência de derrotadores não-derrotados de crenças, isto para que escapemos à irracionalidade ou à irresponsabilidade doxástica. Neste sentido, Faria fornece a seguinte definição para a teoria não-reducionista do testemunho (2017, p. 285):

(TN113) Para cada falante, A, e ouvinte, B, B acredita que p com garantia com base do

testemunho de A sse B não tem derrotadores não-derrotados para o relato ou testemunho de A.

Mas também há problemas com tal teoria. Em linhas gerais, seu maior problema é que ela é demasiado permissiva, pois é possível a atribuição de garantia testemunhal a casos em que intuitivamente ela não se aplica, visto que a garantia testemunhal (segundo a visão não- reducionista, repita-se) pode ser adquirida na completa ausência de razões positivas da parte do ouvinte. Por exemplo, imaginemos que alguém encontra nas redes sociais um link que remete

a uma matéria jornalística, sobre um fato para o qual não tem qualquer evidência contrária. No entanto, a matéria é falsa. Contudo, com base na teoria não-reducionista, basta que o leitor não tenha derrotadores não-derrotados para a sua crença, e ela estará assegurada. A consequência indesejada, como se vê, é que isso permite a credulidade irresponsável. Outro exemplo que podemos dar é o seguinte: imaginemos que o chefe da cozinha presidencial tem a obrigação de provar a comida do presidente antes de servi-lo, para ver se há nela algum veneno. Certo dia, ele deixa sua obrigação para um subordinado de confiança, que diz já ter provado a comida do presidente. Confiando apenas no seu testemunho, o chefe oferece a comida ao presidente, que é envenenado e morre em seguida. Como se vê, neste caso, seria preciso razões positivas a favor de que não havia morte na comida. Portanto, com base em tais problemas, podemos concluir que o não-reducionismo do testemunho não parece ser uma teoria plausível do testemunho.