2. Constituere et praecipere
2.6. Ao início de sua magistratura, os censores emitiam uma formula
census ou lex censui censendo, uma declaração pública contendo o
programa de ação que levariam a cabo no exercício de sua função, a forma do juramento que os cidadãos deveriam prestar no censo, etc. Segundo Abel Greenidge, tais declarações eram a “viva Vox não do ius, mas do mores, e o código moral, mesmo quando apenas parcialmente escrito, era um meio-termo feliz entre a moralidade garantida coercitivamente pelo Estado do legislador grego e as flutuantes e mal-
55
MOMMSEN, Theodor. Römisches Staatsrecht. vol II. p. 344. 56
Plutarco. Cat. Ma. 32. Cícero chegou a chamar a censura de sanctissimus
magistratus, a mais santa magistratura. Para Mommsen, ela era “a primeira das
definidas concepções das modernas opiniões públicas”.57 Segundo Greenidge, esses “editos do censor”, como também se chamavam de modo não-técnico, eram divididos em três partes: 1) conselho ou exortação (para que os cidadãos se casassem, por exemplo); 2) manifestação de desgosto com relação a certas condutas novas, precedidas pela expressão nobis non placere; 3) elenco de costumes infames. Desse modo, à medida em que certos comportamentos passíveis de ignomínias foram se normalizando nestas declarações, ou seja, que foram se repetindo, o exemplo negativo de conduta deu lugar a uma tipologia, e grande parte da formula census foi substituída pelos editos dos pretores, o arbítrio se converteu em lei, e a liberdade do censor deu “lugar ao código”:
Isto havia sido desde muito a tendência da magistratura [censória]: pois vemos que, no caso de certas ofensas envolvendo ignomínia, um caráter permanente foi dado para as decisões dos censores. Este foi o caso do perjúrio (…) e especialmente das profissões consideradas desgraçadas, como a do ator. Tendo se estabelecido que isto desqualificava para todas as honras civis, era natural que deveria continuar a ser respeitado, e, assim, vemos como a infâmia censória veio a assumir, com o tempo, (...) as categorias permanentes na Lex Julia Municipalis e no Digesto. Algumas ofensas repetidamente assim consideradas passaram a ser concebidas como envolvendo necessariamente a notação, e foi através da notatio que os censores pensaram fazê- la permanente.58
Ou seja, há uma certa dialética envolvida na força de lei do poder censório, que, sendo um “meio termo” entre codificação jurídica da moral e regulação moral difusa da opinião pública, pode tender tanto para um lado (a positivação jurídica), quanto para o outro (a ausência até mesmo da força de lei). Abaixo da lei, acima da lei, constituinte da lei, o poder censório foi concebido pelos romanistas como a “mais
57
GREENIDGE, Abel H. J. Infamia: its place in Roman public and private
Law. [1894]. Edição facsimilar digitalizada e reproduzida pela Cornell
University Library – Digital Collections. Ítaca: Cornell University Press, 2009. p. 60.
58
republicana, porque a mais aristocrática das instituições”59: “por seus poderes grandiosos, como por sua arbitrariedade sem limites, pela sua alta nobreza moral e pelo egoísmo de seu patriotismo local, a censura é a expressão perfeita da República Romana e ela é por essência incompatível com o Principado”.60 É como se a República, para funcionar, necessitasse incorporar dentro de si a excepcionalidade arbitrária do poder censório antes exercida pelo Rei, institucionalizando- a e fixando-a dentro de certos limites. Desse modo, se a magistratura do Censor decai com a República, o mesmo não acontece com o poder censório, diversas vezes reivindicado no Império, a começar por Domiciano, que, após ter exercido a magistratura, nomeou-se censor
perpetuus, com a auto-outorgação da censoria potestate, tendo sido
chamado por Quintiliano de sanctissimus censor.61 Após a sua queda, nenhum outro imperador utilizou o título, pois a dureza excessiva de Domiciano foi responsável pelo primeiro de muitos descréditos que recaíram sobre a “censura”. Todavia, isto não quer dizer que outros não se arrogassem a função de cura morum, como, para dar o exemplo mais conhecido, foi o caso de César, ditador constituinte, que se disse
praefectus moribus, dotando-se da cura legem et morum maxima potestate. Os imperadores reúnem em si aquilo que a República havia
isolado em diversas magistraturas, em especial aquele poder arbitrário constituinte e classificador dos costumes. E mais: eles colocam-se, como havia feito Sérvio Túlio no gesto inaugural, como exemplos. Não por acaso, em uma carta dirigida justamente a um imperador (Trajano), Plínio, o Jovem, formulará uma teoria da censura que fará uma longa fortuna na história do Ocidente:
Continue assim, César, e os princípios de seus atos terão o mesmo poder efetivo da censura. De fato, a vida de um imperador é uma censura, verdadeiramente perpétua; é isso que nos dirige e nos guia, pois precisamos mais de exemplum que de imperium. O medo é um professor dos costumes não-confiável. Os homens aprendem melhor pelos exemplos, pois estes possuem o grande mérito de provar que seu conselho é praticável.62
59
Ibidem, p. 56. 60
MOMMSEN, Theodor. Römisches Staatsrecht. vol II. p. 327. 61
Inst. 4 62
Durante a medievalidade, o adágio vita principis censura est, e suas diversas variantes, será constantemente invocado: o regente precisa ter uma vida exemplar, construir uma imagem virtuosa de si para que esta se propague – o exemplo do príncipe é a melhor censura. Entretanto, soa intrigante que, após a “dupla destituição” do pater
potestas – a execução na guilhotina de Luís XVI, e a afirmação de
Berlier, poucos dias depois, de que “O pátrio poder está abolido”63 –, os seus próprios destituidores a invoquem, transferindo ao magistrado republicano a exemplaridade principesca-paternal, sem, contudo, conseguir disfarçar completamente a paternidade romana da fórmula. 2.7. Desse modo, o laço que une, através da censura, a exceção à exemplaridade, a constituição política ao modelo moral, pode ser vislumbrado em um marco mesmo da política moderna. Com um gesto hegeliano, Karl Marx atribuiu o “fracasso” da Revolução Francesa à contradição entre o modelo político antigo adotado como referencial pelos jacobinos e as novas condições econômico-sociais tipicamente modernas: “No (...) informe de Saint-Just sobre a polícia geral, o
republicano é caracterizado, bem conforme o sentido antigo, como um
homem inflexível, frugal, simples e assim por diante. A polícia deve ser, na essência, uma instituição análoga à censura dos romanos. Não falta sequer menção a Codro, Licurgo, César, Catão, etc”.64 O problema que Marx identifica é a redução da política e do governo a questões morais, passíveis de resolução por intermédio de uma cura morum. De fato, não só a polícia geral é caracterizada conforme a censura romana65, como
63
Cf. as linhas finais de THOMAS, Yan. “Catão e seus filhos”, de onde tomo esta conexão.
64
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família ou A crítica da Crítica
crítica contra Bruno Bauer e consortes. Tradução e notas de Marcelo Backes.
São Paulo: Boitempo, 2003. p. 140. Como adiantamos, a explicação é de matriz hegeliana: a nova liberdade do Espírito não havia encontrado um objeto, tornando-se nada – explicação que continuou tendo grande influência, dominando grande parte da teoria política do século XX, de Kojève à até mesmo Hannah Arendt, para a qual os jacobinos foram incapazes de criar instituições políticas que fizessem durar a República.
65
“Um homem revolucionário é inflexível, mas ele é sensível, ele é frugal, ele é simples sem se dar o luxo da falsa modéstia; ele é o inimigo irreconciliável de toda mentira, de toda indulgência, de toda afetação. Como seu objetivo é ver triunfar a revolução, ele não a censura jamais, mas condena seus inimigos sem se envolver com eles; ele não afronta, mas esclarece (...) O homem
também uma reabilitação desta é preconizada por Saint-Just: “Deve haver em toda revolução um ditador para salvar o Estado pela força, ou censores para salvá-lo pela virtude”, enuncia na parte dos Fragments
d’Institutions Républicaines dedicada à censura. Além de sugerir a
indissociabilidade revolucionária entre virtude e Terror, a qual voltaremos mais tarde, Saint-Just sublinha que a correta constituição política implica a necessidade de “criar magistrados para dar o exemplo nos costumes”: “a garantia dos deveres e da inflexibilidade dos funcionários é assim a garantia dos direitos da liberdade dos cidadãos”.66 É por isso que “A censura mais severa é exercida sobre aqueles que são empregados do governo”. O censor preconizado por Saint-Just vigia de perto as condutas dos magistrados e funcionários, garantindo que estes se apresentem como exemplos para os cidadãos: “Os censores acusam, nos tribunais, os funcionários conspiratórios ou dilapidadores; aqueles que oprimem os cidadãos; aqueles que não executam, no prazo, as medidas de governo e de saúde pública; todos os agentes, em suma, que prevariquem, da maneira que seja”. Para salvar o Estado pela virtude, seus agentes devem ser controlados de perto pelos censores, que moldam aqueles em padrões a serem imitados. Por isso, eles mesmos precisam ser exemplares: “É proibido aos censores falar em público. A modéstia e a autoridade são suas virtudes. Eles são inflexíveis. Eles questionam os funcionários para que estes prestem contas de sua conduta; eles denunciam todo abuso e toda injustiça no governo; eles não podem nem relevar nem perdoar”. O objetivo da censura, bem como da polícia geral, seria, desse modo, “formar uma consciência pública”, que se distinguiria do “Espírito público”, pois este se encontra nas “cabeças”, e nem “todos não podem ter uma igual influência de entendimento e de iluminação”, enquanto aquela se encontra nos corações, que “são iguais pelo sentimento do bem e do mal, e consiste na inclinação do povo para o bem geral”.67
Como veremos, não só a postulação moderna da censura, mas também o vocabulário envolvido (saúde, salvação, exemplo, virtude, revolucionário é pleno de honra; ele é polícia sem farda, mas por lealdade [franchise], e porque ele está em paz com seu próprio coração. (...) O homem revolucionário é intransigente com os ímpios, mas ele é sensível; ele é zeloso da glória de sua pátria e da liberdade (...); ele corre para os combates, ele persegue os culpados, e defende a inocência diante dos tribunais; ele diz a verdade a fim de que ela instruía, e não para que ela ultraje” (SAINT-JUST, Louis Antoine de. Oeuvres. Paris: Prévot, 1834. p. 304-5).
66
SAINT-JUST, Louis Antoine de. Oeuvres. p. 414; grifo nosso. 67
sentimento, etc.) não são uma invenção dos jacobinos, que apenas ressignificam uma tradição política presente já na primeira teorização do Estado soberano. Walter Benjamin, na décima-quarta de suas Teses
sobre o conceito de história, equiparou a invocação jacobina de Roma à
moda:
A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit). Assim, a antiga Roma era, para Robespierre, um passado carregado de tempo-de- agora, passado que ele fazia explodir do contínuo da história. A Revolução Francesa compreendia- se como uma Roma retornada. Ela citava a antiga Roma exatamente como a moda cita um traje do passado. A moda tem faro para o atual, onde quer que este se mova no emaranhado de outrora. Ela é o salto do tigre em direção ao passado. Só que ele ocorre numa arena em que a classe dominante comanda. O mesmo salto sob o céu livre da história é o salto dialético, que Marx compreendeu como sendo a revolução.68
No caso da censura, a “arena” já havia sido montada há tempos, e abarcava até mesmo a própria moda. É esta arena em que se dá o “retorno” da censura romana que devemos analisar agora.
2.8. Jean Bodin, responsável pelo moderno conceito de soberania, inicia