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Em Bodin, aparecem sumarizados a maioria dos tópicos que estarão presentes no debate sobre a censura nos séculos seguintes Contudo, a

2. Constituere et praecipere

2.9. Em Bodin, aparecem sumarizados a maioria dos tópicos que estarão presentes no debate sobre a censura nos séculos seguintes Contudo, a

ligação com o censo aos poucos se perderá, algo que, a longo prazo, terá conseqüências sobre a definição do órgão responsável por exercer o poder censório, e permitirá, especialmente no âmbito francês, que se postule uma relação entre censura e sentimento, abrindo terreno, desse modo, para as postulações jacobinas.

Ao final do quinto livro d’O espírito das leis, Montesquieu responde a cinco questões relativas aos princípios das formas de governo. A última delas é a pergunta sobre em qual “tipo de governo são necessários censores”. Montesquieu responde sem hesitar, em uma passagem que será mencionada no verbete dedicado ao Censeur da

Encyclopédie de Diderot e D’Alembert: “Eles são necessários numa

república em que o princípio do governo é a virtude”.77 Se a necessidade Roger. “La construcción estética de la realidad. Vagabundos y pícaros en la Edad Moderna”. Tiempos modernos. v. 3, n. 7 (2002). pp. 1-15.

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Sobre o peculiar estatuto jurídico excepcional dos piratas, cf. o recente livro de HELLER-ROAZEN, Daniel. The Enemy of All. Piracy and the Law of

Nations. Nova Iorque: Zone Books, 2009. 77

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leoôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1973. p. 86; grifo nosso. A função dada ao censor, seu raio de ação e a importância atribuída a ela se assemelham ao que Bodin já dissera, a começar pelo campo em que ela atua: “Em Roma, dois magistrados particulares ocupavam-se da censura. Considerando-se que o senado vela pelo povo, cumpre que os censores vigiem o povo e o senado. É necessário que eles restabeleçam na república tudo o que foi corrompido, que apontem a indolência, julguem as negligências e corrijam os erros, do mesmo modo como as leis punem os crimes” (p. 74). Além disso, o magistrado responsável pela censura não deve se submeter a limitações legais: “Com efeito,

da censura se atrela à virtude, então, conclui o filósofo, “Percebe-se facilmente que não são necessários censores nos governos despóticos”, que se fundam no “Medo” (ou “no braço do príncipe”). Além disso, os censores são igualmente desnecessários nas monarquias, pois estas “são baseadas na honra e a natureza da honra é ter por censor todo o universo”:

Todo homem que falta com a honra é alvo das reprovações até mesmo dos que não a têm. Nas monarquias, os censores seriam corrompidos por aqueles mesmos que deveriam corrigir. Não seriam úteis contra a corrupção numa monarquia, pois a corrupção de uma monarquia seria muito forte contra eles.78

A honra não é a virtude, e esta, por sua vez, “não é o princípio do governo monárquico”: “Nas monarquias, a política manda fazer as grandes coisas com o mínimo de virtude possível”.79 Aqui, cabe nos determos nos termos com que Montesquieu distingue a honra da virtude, pois é a partir do peculiar estatuto que confere à última que se deixa ver o campo de atuação atribuído à censura. O que está em jogo é, antes de tudo, o modo de relação do sujeito com as leis (com a constituição política, em sentido amplo) e com os demais sujeitos, a posição de cada um diante da lei e dos outros: “é claro que numa monarquia, onde quem manda executar as leis se julga acima das leis, tem-se necessidade de menos virtude do que num governo popular, onde quem manda executar as leis sente que ele próprio a elas está submetido e que delas sofrerá o peso”.80 É interessante como, no interior da argumentação de Montesquieu, a virtude precede ontologicamente a honra (e, conseqüentemente, a república precede a monarquia). Só assim se torna possível discorrer, como o filósofo faz, sobre o modo “Como se supre a os censores não devem ser perseguidos pelas coisas que fizeram durante sua censura. É necessário infundir-lhes confiança e nunca desânimo. Os romanos eram admiráveis; podia-se reclamar de todos os magistrados, as razões de seu procedimento, exceto aos censores” (p. 76). E, por fim, a censura seria uma tarefa essencial à manutenção do Estado, como prova o exemplo do Império romano: “A corrupção dos costumes destruiu a censura, ela própria estabelecida para destruir a corrupção dos costumes; mas, quando esta corrupção se tornou geral, a censura não teve mais força” (p. 361).

78 Ibidem, p. 86. 79 Ibidem, p. 49. 80 Idem.

virtude no governo monárquico”. Ao governo monárquico, diz no segundo livro, “falta uma mola”, mas ele “possui outra: a Honra, isto é, o preconceito de cada pessoa e de cada condição, ocupa o lugar da virtude política (...) e a representa em toda parte”.81 A honra, portanto, funciona como uma espécie de suplemento da virtude, ou melhor, como uma representação da virtude. A função de ambas, como vimos, é estabelecer uma relação com a lei e com quem a executa, e um modo de se portar, de se colocar diante da constituição política e dos demais. Na monarquia, vige uma série de “poderes intermediários” (com destaque à nobreza, sem a qual a monarquia se torna despotismo), que fixam esta relação. Por isto, em uma monarquia, as leis devem tornar a honra “hereditária, não por ser o limite entre o poder do príncipe e a fraqueza do povo, mas por ser o liame de ambos”.82 A honra, portanto, é um critério objetivo (um “preconceito”) que determina a forma com que os sujeitos agem, aparecem e se portam diante da lei e dos demais: uma condição pessoal que equivale a um lugar público – por essa razão, nas monarquias, “os crimes públicos são mais particulares”.83

Mas o que a honra supre? “O que é a virtude no Estado político” para Montesquieu? “A virtude numa república”, responde o filósofo, “é algo muito simples; é o amor pela república; é um sentimento e não uma série de conhecimentos”.84 Na república, regida pela igualdade dos cidadãos, em que os governados também governam, falta um critério objetivo para determinar o lugar de cada um, as maneiras pelas quais cada um se relaciona com a constituição política. Por esta ausência de uma regra (pública) é que se torna necessário um sentimento (privado). Nesse sentido, talvez seja mais correto dizer que é a virtude que representa ou suplementa a honra, e não o contrário: se, na monarquia, a honra objetivada estabelecia uma relação direta entre o lugar privado de cada um (a sua “pessoa”) e o seu lugar público (a sua “condição”), na 81 Ibidem, p. 52. 82 Ibidem, p. 77. 83

Ibidem, p. 51. A relação de exclusividade, traçada por Montesquieu, entre censura e virtude, em detrimento da honra é uma falsificação caso a relacionemos com a magistratura romana: como vimos, o termo grego usado para traduzi-la era timetés, derivado de timé, honra – o censor é o guardião da honra. Talvez, porém, este erro derive do afastamento semântico moderno, já presente aos tempos de Montesquieu, entre censura e censo, entre policiamento dos costumes e sua determinação “objetiva”, de modo que também virtude (subjetiva) e honra (objetiva) se afastam (o que não era ainda o caso na argumentação de Bodin).

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república, tal correlação se dá por intermédio da virtude, um sentimento subjetivo. Sem uma norma pública que guie os cidadãos no seu modo de se portar diante da lei e entre si, Montesquieu coloca como fundamento da república um “sentimento”, ou seja, algo da ordem privada, que, todavia, consiste justamente na renúncia ao interesse privado: “Esse amor, exigindo sempre a supremacia do interesse público sobre o interesse particular, produz todas as virtudes individuais; elas não são mais do que esta supremacia”.85 É patente aqui a circularidade da virtude, um verdadeiro círculo virtuoso: a virtude, essa “renúncia a si próprio”, produz a virtude, o “amor pela república”; ou, em outra formulação do mesmo Montesquieu, “O amor pela pátria acarreta a pureza dos costumes, e a pureza dos costumes acarreta o amor pela pátria”. Ao postular a virtude como modo de relação dos cidadãos entre si e com a lei, Montesquieu parece questionar a própria distinção que construirá em um capítulo posterior: a diferença entre leis, que “regem as ações do cidadão” (público) e os costumes, que “regem mais as ações do homem” (privado) – e mesmo a diferença entre os costumes, que “concernem mais à conduta interior”, e as maneiras, que dizem respeito à conduta “exterior”.86 A república de Montesquieu torna publicamente relevante aquilo que é da ordem privada, criando uma zona de indistinção entre ambas as esferas. Como conseqüência, toda ação privada ganha relevância pública; na república, ao contrário da monarquia, “os crimes particulares são os mais públicos, isto é, atentam mais contra a constituição do Estado do que os indivíduos”.87 Se a virtude produz a virtude, é evidente o efeito nefasto dos crimes, e a necessidade de sua punição exemplar. Mas a prevalência da virtude deve sempre aparecer, ainda mais naqueles campos que a lei não atinge: “Há meios para impedir os crimes: as penas; há outros para acarretar a mudança das maneiras: os exemplos”.88 A idéia de um exemplo, uma imagem que tem efeitos é essencial na esfera não regulada pela lei. Não só os exemplos virtuosos devem ser propagados; os exemplos nefastos devem ser controlados. Daí que não só os crimes – fatos jurídicos – particulares se tornem publicamente relevantes; todas as ações, mesmo as da esfera privada, devem ser tomadas como manifestações da virtude ou do vício. E é aqui que entra a necessidade da censura:

85 Ibidem, p. 62. 86 Ibidem, p. 279. 87 Ibidem, p. 51. 88 Ibidem, p. 278.

Não são apenas os crimes que destroem a virtude, mas também as negligências, os erros, uma certa tibieza no amor à pátria, exemplos perigosos, sementes de corrupção, tudo que não contraria as leis, mas as elude; o que não as destrói mas as enfraquece; tudo isso deve ser corrigido pelos censores.89

“Exemplos perigosos”, “sementes de corrupção” que “enfraquecem” as leis. O censor de Montesquieu é um vigia da virtude, sempre atento aos efeitos que uma manifestação contrária a ela possa causar.

2.10. Em seus Comentários a’O espírito das leis, Voltaire se volta

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