• Nenhum resultado encontrado

O emblema do novo estatuto jurídico-político da expressão na modernidade é a invenção da “arte de eternizar as extravagâncias do

2. Constituere et praecipere

3.7. O emblema do novo estatuto jurídico-político da expressão na modernidade é a invenção da “arte de eternizar as extravagâncias do

espírito humano”, para usar as palavras com as quais Rousseau caracterizou a imprensa.160 Ordinariamente, costuma-se derivar da

157

FRANKLIN, Benjamin. Apology for printers. Publicado originalmente na

The Pennsylvania Gazzete, 27 de maio de 1731. Disponível em

http://www.jprof.com/history/franklin-apologia.html 158

O texto citado de Rucellai se encontra coligido em LANDI, Sandro. Il

governo delle opinioni: censura e formazione del consenso nella Toscana del Settecento. Bolonha: Il Mulino, 2000. p. 271.

159

“This sacred privilege is so essential to free government, that the security of property; and the freedom of speech, always go together; and in those wretched countries where a man can not call his tongue his own, he can scarce call any thing else his own” (GORDON, Thomas. Cato’s Letters, n. 15: Of Freedom of

Speech: That the same is inseparable from publick Liberty. Publicado

originalmente em 4 de fevereiro de 1720. Disponível em http://classicliberal.tripod.com/cato/letter015.html). As Cato’s Letters são uma série de 144 cartas escritas por John Trenchard e Thomas Gordon (e publicadas pela imprensa inglesa) entre 1720 e 1723. Agradeço a Alessandro Pinzani por ter me chamado a atenção para elas.

160

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; Ensaio sobre a origem das

línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. p. 350. Continua Rousseau:

invenção da imprensa uma mudança radical no modo de pensar e na história das idéias. Contudo, talvez o raciocínio correto seja o inverso: a invenção da imprensa deriva de um novo modo de encarar o pensamento, isto é, do declínio do “poder espiritual”, e de sua premissa: a de que o pensamento é uma práxis. Pois o que está em jogo na “liberdade de expressão” e na correlata “liberdade de impressão”? De um lado, o direito a exteriorizar algo – uma idéia, uma opinião, um pensamento –, e, de outro, o direito de imprimi-lo sobre um objeto. Trata-se de tornar externo, de objetificar uma aparência. Mas não é só isso. A “reprodutibilidade técnica” da expressão faz com que o raio de ação, a abrangência e a intensidade de seus efeitos aumente incrivelmente. Falando da imprensa, Gabriel Tarde fará uso de uma fórmula que demonstra bem a mudança gerada na esfera dos costumes, da aparência: a imprensa faz “o reino da moda suceder ao reino do costume”161 – a ameaça de contágio ou infecção se amplifica. O pensamento, na modernidade, apresenta-se como produção de obras, que são, ao mesmo tempo, tipos reprodutíveis. Nesse sentido, deve-se levar até as últimas conseqüências a idéia de Vilém Flusser de que “Os pré- requisitos técnicos existiam antigamente (prensas, tintas, folhas e também a arte de moldagem por fundições de metais)”, mas “Ainda não se imprimia, porque não se estava ciente de que se manejavam tipos quando se desenhavam sinais gráficos. Consideravam-se os sinais para sempre os perigosos sonhos dos Hobbes e dos Spinozas”; “Considerando- se as tremendas desordens que a imprensa já causou na Europa, julgando-se o futuro pelo progresso que o mal faz de um dia para outro, pode-se facilmente prever que os soberanos, para banir essa arte terrível de seus Estados, não tardarão a ter tanto trabalho quanto tiveram para introduzi-la. O sultão Achmet, cedendo à importunação de algumas pessoas de pretenso bom gosto, consentira em instalar um prelo em Constantinopla. Mas, assim que a imprensa começou a funcionar, viram-se obrigados a destruí-la e jogar as peças num poço. Conta-se que, tendo sido o califa Omar consultado sobre o que se deveria fazer da biblioteca de Alexandria, respondeu nestes termos: ‘Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas ao Alcorão, são maus e é preciso queimá-los; se só contêm a doutrina do Alcorão, queimai-os do mesmo modo: são supérfluos’. Os nossos sábios citam esse raciocínio como o cúmulo do absurdo. Suponde, no entanto, Gregório, o Grande, no lugar de Omar e o Evangelho no lugar do Alcorão; a biblioteca teria sido igualmente queimada e esse seria talvez o mais belo traço da vida daquele ilustre pontífice”.

161

TARDE, Gabriel. A opinião e as massas.Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.p. 55. Tarde está se referindo à imprensa enquanto órgão da mídia, mas creio que esta generalização para a impressão em si seja fiel à sua argumentação.

gráficos caracteres. O pensamento ‘tipificante’ não se impôs à consciência naquela época”.162 Mas o que caracteriza tal pensamento tipificante? A etimologia de “tipo” indica um caráter ambíguo, entre a empiria e a abstração: o grego typos significa imagem, vestígio, rastro, ou seja, ausência, índice de uma presença imemorial. Para usar um exemplo de Flusser: os “typoi são como vestígios que os pés de um pássaro deixam na área da praia. Então, a palavra significa que esses vestígios podem ser utilizados como modelos para classificação do pássaro mencionado”.163 Nesse sentido, haveria dois traços característicos da tipografia:

1) “A tipografia mostra que os tipos não são formas invariáveis ‘eternas’ (como queriam Platão e os realistas medievais), mas, ao contrário, que elas podem ser modeladas, aprimoradas e rejeitadas”;

2) “Um impresso é uma coisa típica e não uma coisa particular, incomparável, singular. Um impresso é um ‘exemplar’, um entre muitos exemplos de uma coisa singular (de um manuscrito, por exemplo). Não é como uma coisa particular (como essa folha de papel singular), mas é como tipo que o impresso tem valor. Não é a produção da coisa impressa (da folha, da impressão escrita) que a torna interessante, mas sim a produção dos tipos (do texto)”.164

Ou seja, os tipos podem ser produzidos, não correspondendo necessariamente a uma realidade, ainda que sejam baseados nela: o que conta é a sua (re)produtibilidade intrínseca. Quando Max Weber sedimenta seu método com os chamados “tipos ideais”, tal ambigüidade se faz presente. Para ele, os tipos “puros” ou “ideais” não poderiam ser encontrados “na realidade”; o que existia “de fato” era sempre um compósito, mais ou menos híbrido, de tipos que – e daí a sua natureza circular – se construíam a partir de elementos dispersos nesta mesma

162

FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? Tradução de Murilo Jardelino da Costa. São Paulo: Annablume, 2010. p. 62. Uma das fontes de Flusser é, evidentemente, McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a

formação do homem tipográfico. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho e

Anísio Teixeira. São Paulo: Editora Nacional, 1977. 163

FLUSSER, Vilém. A escrita. p. 61. 164

“realidade” em que eram aplicados.165 O essencial, portanto, não é tanto a natureza do “tipo” quanto sua (re)produtibilidade – é a possibilidade de ele servir de modelo de explicação a situações diferenciadas que o torna válido epistemologicamente.

Nesse sentido, a concepção moderna de tipo é uma secularização ou transformação estrutural da concepção figural cristã (a qual, por sua vez, é uma teologização da noção greco-romana), na qual o

typos ou a figura apresenta-se como “algo real e histórico que anuncia

alguma outra coisa que também é real e histórica”.166 Ou seja, na concepção cristã, o exemplar não pode ser produzido – aliás, no máximo, pode ser extraído, a partir da interpretação figural, de uma pessoa ou evento históricos: a exemplaridade derivava do caractere, do

caráter, não era (re)produzida artificialmente. Mesmo que se

reproduzissem textos antes da invenção da imprensa (e antes do pensamento tipográfico), era sempre a partir de um original, ou melhor, de um objeto singular. O que diferencia a reprodução tipográfica é que tal original reproduzido já é um molde: “Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente”, diz Benjamin, “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única no lugar em que ela se encontra”.167 Por isso, poder-se-ia dizer que o impresso é a primeira mercadoria

165

“No que diz respeito à investigação, o conceito de tipo ideal propõe-se a formar o juízo de atribuição. Não é uma ‘hipótese’, mas pretende apontar o caminho para a formação de hipóteses. Embora não constitua uma exposição da realidade, pretende conferir a ela meios expressivos unívocos. (...) Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia” (WEBER, Max. “A objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política”. Em:

Metodologia das ciências sociais. Parte I. 2. ed. Tradução de Augustin Wernet;

introdução à edição brasileira de Maurício Tragtenberg. São Paulo; Campinas: Cortez; Editora da UNICAMP, 1993. pp. 107-154; citação extraída das páginas 137-138).

166

AUERBACH, Erich. Figura. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Ática, 1997. p. 27.

167

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão). Em: Magia e técnica, arte e política. (Obras escolhidas, vol. I). Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp. 165- 196; citação: p. 167.

industrial: “A primeira conseqüência (...) dessa supervalorização do tipificar é a revolução industrial, portanto, a instalação de máquinas. A tipografia pode ser compreendida como o modelo e o embrião da revolução industrial: informações não devem ser impressas apenas em livros, mas também em têxteis, metais e plásticos”.168 A mercadoria é sempre um tipo que demanda reprodução, que demanda a imitação (talvez aqui se encontre a origem do fetiche da mercadoria). Que os tipos, não só de impressão ou de produtos, mas também de condutas podem ser produzidos é algo que os mass media, em especial o ramo da propaganda, sabem muito bem, e grande parte do trabalho destes consiste precisamente em criar estereó-tipos, nem singulares, nem universais, mas exemplares.169

168

FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? p. 66. 169

D.H. Lawrence formula uma interessante teoria sobre a linguagem, ao afirmar que toda palavra possui um sentido individual e um sentido-de-massas (mob meaning), argumentando que a propaganda estaria descobrindo como lidar com este sentido individual, ainda que, de certo modo, falsificando-o (na medida em que o falso sentido individual por ela produzida visaria despertar um comportamento homogeneizado): “When it comes to the meaning of anything, even the simplest word, then you must pause. Because there are two great categories of meaning, forever separate. There is mob-meaning, and there is individual meaning. Take even the word bread. The mob-meaning is merely: stuff made with white flour into loaves that you eat. But take the individual meaning of the word bread: the white, the brown, the corn-pone, the homemade, the smell of bread out of the oven, the crust, the crumb, the unleavened bread, the shew-bread, the staff of life, sour-dough bread, cottage loaves, French bread, Viennese bread, black bread, a yesterday's loaf, rye, Graham, barley, rolls, Bretzeln, Krineln, scones, damper, masten – there is no end to it all, and the word bread will take you to the ends of time and space, and far-off down avenues of memory. But this is individual. The word bread will take the individual off on his own journey, and its meaning will be his own meaning, based on his own genuine imaginative reactions. And when a word comes to us in its individual character, and starts in us the individual responses, it is a great pleasure to us. The American advertisers have discovered this, and some of the cunningest American literature is to be found in advertisements of soap-suds, for example. These advertisements are almost prose-poems. They give the word soap-suds a bubbly, shiny individual meaning, which is very skillfully poetic, would, perhaps, be quite poetic to the mind which could forget that the poetry was bait on a hook” (D.H. LAWRENCE, D. H. Sex, Literature and Censorship. (ensaios editados por Harry T. Moore). Nova Iorque: Twayne Publishers, 1953. p. 70-71).

3.8. É no censo moderno da expressão (entendido como a divisão entre

Outline

Documentos relacionados