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Se a censura é a tentativa de controlar os efeitos do sensível,

5. Guerras espirituais: eufemização, o paradigma da censura

5.5. Se a censura é a tentativa de controlar os efeitos do sensível,

neutralizando-os quando são vistos como politicamente infecciosos,

como exemplos que podem se reproduzir e abalar os costumes (moral) que sustentam o corpo público (político), e seu paradigma pode ser visto no Terror, então podemos afirmar que seu objetivo é a eufemização. Por eufemização devemos entender o vasto processo que visa purificar os costumes, depurá-los, higienizá-los, torná-los um bem-aparecer, mas que termina por criar uma regra ritual-formal (vazia de conteúdo) da manifestação, ou seja, devemos entendê-lo como aquela força que Benveniste chamou de “eufemia” e que retira da palavra blasfêmica, da palavra proibida e herética, a sua “realidade fêmica, portanto sua eficácia sêmica, tornando-a literalmente destituída de sentido”.370

O habitat natural dos eufemismos é a linguagem burocrática da política e do direito. Em uma formulação esplêndida, Guy Patin afirmou que “os políticos têm uma linguagem à parte e que lhes é própria; entre eles, os termos e a frases não significam as mesmas coisas que entre os

368

Ibidem, p. 88. 369

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “Teoria do medalhão”. Em: Obra

completa. v. II: Conto e Teatro. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp. 288-295; citação: p. 294. 370

BENVENISTE, Émile. “A blasfemia e a eufemia”. Em: Problemas de

lingüística geral, II. Tradução de Eduardo Guimarães et. al. Campinas: Pontes,

demais homens”.371 Ítalo Calvino forneceu uma descrição acuradíssima do modus operandi dessa linguagem, em que vige o “terror semântico”, ou “antilíngua”, “a fuga diante de cada vocábulo que tenha por si só um significado”:

O escrivão está diante da máquina de escrever. O interrogado, sentado em frente a ele, responde às perguntas gaguejando ligeiramente, mas preocupado em dizer, com a maior exatidão possível, tudo o que tem de dizer e nem uma palavra a mais: “De manhã cedo, estava indo ao porão para ligar o aquecedor quando encontrei todos aqueles frascos de vinho atrás da caixa de carvão. Peguei um para tomar no jantar. Não estava sabendo que a casa de bebidas lá em cima havia sido arrombada”. Impassível, o escrivão bate rápido nas teclas sua fiel transcrição: “O abaixo assinado, tendo se dirigido ao porão nas primeiras horas da manhã para dar início ao funcionamento da instalação térmica, declara ter casualmente deparado com boa quantidade de produtos vinícolas, localizados na parte posterior do recepiente destinado ao armazenamento do combustível, e ter efetuado a retirada de um dos referidos artigos com a intenção de consumi-lo durante a refeição vespertina, não estando a par do acontecido arrombamento do estabelecimento comercial sobranceiro”.372

Calvino está descrevendo aqui, claramente, um processo de

tradução, em que o escrivão transcreve o texto da língua cotidiana à

linguagem jurídica, ao juridiquês, como popularmente se nomeia a verborragia dos juristas. Como mostrou Salvatore Satta em um texto justamente sobre o escrivão, o brocardo jurídico Da mihi factum, dabo

tibi jus (“Exponha o fato e te direi o direito”) revela a existência de um hiato não só entre os fatos e o direito, quanto entre a linguagem

cotidiana e a jurídica. A tarefa do escrivão seria a redução do “escopo

371

Citado em: BAYLE, Pierre. “Dissertation sur les libelles diffamatoires”. Em:

Dictionairre historique et critique. Tomo XV. Paris: Desoer, 1820. pp. 148-189;

p. 182. 372

CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 148- 149.

prático que a parte se propõe a atingir” a uma “vontade jurídica e juridicamente tipificada”373, ou seja, a tradução de uma vontade, um fato, um ato da vida, para tipos jurídicos. O Direito não lida propriamente com fatos ou atos, mas com fatos ou atos jurídicos, que correspondam a certos tipos previstos. Passar um ato ou fato da vida ao Direito é tipificá-lo. Mas esse tipo jurídico tem de ser suficiente geral,

amplo, e, no limite, vago, para que possa ser aplicado a distintos casos singulares. A linguagem jurídica é eufêmica, abstrata, formal justamente

para que uma decisão possa subsumi-la ao caso concreto (o mesmo vale para a linguagem política, em que o sentido concreto de termos como interesse e ordem públicas, segurança estatal, etc. são atribuídos arbitrariamente). Ou seja, a linguagem político-jurídica suspende os efeitos sensíveis e as referências diretas da linguagem cotidiana ao tipificar e eufemizá-las, permitindo, assim, produzir com mais eficácia

efeitos performativos.

A substituição censória de palavras fortes por mais fracas, ou de pronomes pessoais por impessoais, a alteração de nomes de lugares, serve, do mesmo modo, para impedir a atribuição de uma referencialidade direta, para virtualizar e tornar vago o sentido, mitigando o efeito dos significantes. Porém, esse caso paradigmático de substituição pelo eufemismo propriamente dito é apenas uma das formas de manifestação da eufemização. Se, como diz Benveniste, o eufemismo não pode ser identificado per se, se é “só a situação [que] determina o eufemismo”374, então talvez possamos dizer que o processo mais geral de eufemização que caracteriza a censura também se manifeste de diferentes modos, de acordo com o contexto. Assim, até mesmo a supressão censória de obras seria uma forma (extrema) de eufemização, na medida em que produz uma ascese da aparência, por meio da proibição do baixo, do excessivo, etc.: só se dá a ver aquilo que está de acordo com a decência, a moderação, o decoro. Todavia, a supressão apresenta um problema: nas palavras de Marx, ela se revela “uma má

medida policial, porque não consegue o que quer, nem quer o que

consegue”.375 Ao censor, cabe declarar infame um escrito, um filme,

373

SATTA, Salvatore. “Poesia e verdade na vida do notário”. Tradução de Diego Cervelin. Sopro. n. 17. Dez/2009. p. 5.

374

BENVENISTE, Émile. “Eufemismos antigos e modernos”. Em: Problemas

de lingüística geral, I. 2. ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza

Neri. Campinas: Pontes; Editora da UNICAMP, 1988. pp. 340-347; citação na p. 342.

375

uma obra de arte: mas, ao fazê-lo, acaba por produzir o efeito contrário, conferindo-lhe fama. Tal paradoxo foi magistralmente apresentado por Borges em sua História universal da infâmia, na qual os feitos mais infames, por sua própria infâmia, tornam seus executores famosos. Trata-se de um topos clássico, enunciado com maestria por Tácito em uma fórmula que será sucessivamente invocada ao longo da modernidade: “nam contra punitis ingeniis gliscit auctoritas”376 (“a punição do gênio fortalece sua autoridade”). Assim, já em seu

Areopagitica, Milton afirma que a supressão de libelos sediciosos, “em

vez de suprimir seitas e cismas, (...) os provoca e os investe de uma reputação”.377 A eufemização pela substituição (da palavra blasfêmica pelo eufemismo propriamente dito), pela co-autoria por parte do censor, também provoca esse efeito, ainda que não de modo tão agravado. Contudo, talvez ela não constitua a estratégia limite do poder censório, mas apenas o meio-termo entre a eufemização pela proibição (contra- produtiva) e o seu oposto, a eufemização pela liberação, que estaríamos assistindo hoje em dia.

5.6. Ao tratar dos “dejetos” lingüísticos, Os palavrões, Ítalo Calvino,

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