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Ou seja, na exceção, a distinção entre “mera expressão” e “conduta” se desfaz: nas palavras de um escritor soviético perseguido pela censura,

5. Guerras espirituais: eufemização, o paradigma da censura

5.4. Ou seja, na exceção, a distinção entre “mera expressão” e “conduta” se desfaz: nas palavras de um escritor soviético perseguido pela censura,

“a literatura” se torna “uma forma de propaganda”.355 Mas não é só isso: ao tomar como plano de combate o terreno da “guerra psicológica” ou “guerra espiritual”, em que as palavras e os corpos, as falas e as ações se

353

Citada por: Citado por: SOUZA, Miliandre Garcia de Souza. “‘Ou vocês mudam ou acabam’: aspectos políticos da censura teatral”. p. 243; grifo nosso. 354

VALABREGA, Jean-Paul. “Fundamento psico-político da censura”. p. 11. 355

Trata-se de uma alegação de defesa por parte Andrei Siniavski, no processo movido contra ele e Juli Daniel em 1966. Trechos da audiência encontram-se traduzidas em MORETTI, Franco (org.). O romance, 1: A cultura do romance. pp. 233-240; citação na página 239.

indistinguem, o poder deixa de ser apenas um leitor que faz uma triagem das obras, e passa a ser também co-autor delas.

David Viñas observou que a censura “pertence à mesma família de coações que a tortura”, ainda que se distingam: “No espaço da censura aquilo que o amo busca, a partir do poder, é que o outro cale a boca e não emita a palavra crítica, heterodoxa ou subversiva; na tortura, por sua vez, o que o carrasco visa, a partir do alto, é arrancar a palavra perigosa do corpo silencioso da vítima”.356 Podemos dizer que, nas “guerras espirituais”, a censura passa a agir de outro modo, que a aproxima ainda mais da tortura, na medida em que não apenas proíbe a palavra herética, mas obriga o sujeito a emitir a palavra autorizada, ou emitir de forma autorizada a palavra – assim como a tortura passa a operar como sistema privilegiado da censura enquanto proibição, já que a palavra proibida se converte em uma conduta sediciosa que deve ser combatida a qualquer preço. Por isso, na exceção, o “impedir de dizer” e o “obrigar a dizer”, que caracterizariam, para Roland Barthes357, o autoritarismo e o fascismo respectivamente, não são mais diferenciáveis. A máquina que Kafka descreve em Na colônia penal358, uma máquina de escrever que é, ao mesmo tempo, uma máquina de torturar, uma máquina que, no mesmo ato, escreve a sentença no acusado e inflige a sentença, em uma tatuagem que também consiste em uma tortura, é o emblema da arma que o poder utiliza quando das guerras espirituais.

Dito de outro modo: nas guerras espirituais, a censura se converte em Terror. Por Terror, devemos entender não apenas a paradigmática prática política dos jacobinos, mas toda aquela que transforma o

aparecer e o pensar imediatamente em condutas e no campo de batalha

mais importante.359 Como vimos, para Saint-Just, a situação

356

VIÑAS, David. “¿Censura en Buenos Aires?”. Em: Menemato y otros

suburbios. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2000. pp. 143-145. 357

BARTHES, Roland. Aula. 11. ed. Tradução e posfácio de Leyla Perrone- Moisés. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 14. Estamos descontextualizando e ampliando o horizonte da afirmação de Barthes.

358

KAFKA, Franz. O Veredicto e Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

359

Desse modo, o poder espiritual cristão seria uma forma de Terror permanente. Devemos notar, porém, que a equação, no cristianismo, entre pensamento e ação, apesar de estar metafisicamente fundada na fusão entre vida e lei no Messias, forma-se por uma normalização de mecanismos excepcionais da antiga Roma, onde não se costumava punir o mero conhecimento de doutrinas proibidas ou a mera posse de obras a elas relacionadas (ainda que se expulsassem constantemente adivinhos e filósofos). O modus operandi jurídico

revolucionária exigia que o Estado fosse salvo ou pela força, por meio da ditadura, ou pela virtude, por meio da censura exercida por cada um dos revolucionários sobre os demais com vistas a criar e vigiar o

exemplo. Todavia, a bem da verdade, para os jacobinos, virtude e força,

censura e Terror, precisam ser conjugados na revolução. Nas palavras de Robespierre:

A primeira máxima de vossa política deve ser que se conduza o povo pela razão, e os inimigos do povo pelo terror.

Se a força moral do governo popular na paz é a virtude, a força moral do governo popular em revolução é ao mesmo tempo virtude e terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto, uma emanação da virtude. Mais que um princípio particular, é uma conseqüência do princípio geral da democracia aplicado às mais prementes necessidades da pátria.360

Como demonstrou Carl Schmitt, a virtude, que deveria ser, conforme vimos, o amor pela igualdade em uma república, converte-se em instrumento de diferenciação por meio do Terror: para a ditadura jacobina, “o oponente político não possuía ‘virtude’, isto é, a devida da prática persecutória do poder espiritual cristão deriva da generalização de um longo processo iniciado nos tempos imperiais. Entre os momentos dessa escalada, cabe mencionar o senatus consultum decretado durante o império de Tibério que, além de expulsar os feiticeiros e adivinhos, proibia a todos o contato com eles; o comentário de Ulpiano (“Non tantum huius artis professio,

sed atiam scientia prohibita est”) que condenava não apenas a prática e o

ensinamento da magia, mas seu próprio conhecimento; a Lex

Quisquis,promulgada por Arcádio e que condenava à pena de morte os

participantes de uma conspiração, bem como aqueles que só pensaram em

participar, mesmo que nem tivessem planejado algo; e, por fim, a ordenação de

Teodósio II que estabelecia a cremação dos livros de Nestório assim como a pena de morte para quem conservasse ou lesse seus escritos (cf. GIL, Luis.

Censura en el mundo antiguo. pp. 184, 285, 338 e 401, respectivamente). 360

ROBESPIERRE, Maximilien. Virtude e terror. Apresentação de Slavoj Zizek; seleção e comentários dos textos por Jean Ducange; tradução de José Maurício Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 185. A citação provém do famoso discurso “Sobre os princípios de moralidade política que devem guiar a Convenção Nacional na administração interna da República”.

atitude política, não possuía ‘civismo’. Ele não era um patriota, e, portanto, estava hors de loi [fora da lei]. O grau em que uma instância de desigualdade corresponde à igualdade política como um correlato necessário aqui se torna manifesto de um modo especialmente claro”.361 Ou seja, opera-se uma binarização total da sociedade (os contra- revolucionários tratados com o Terror e os revolucionários tendo seu sentimento reforçado pela virtude, em um processo em que uma medida reforça a outra), que deixa, porém, um resto: os aparentemente

indiferentes, os que não se mostraram nem revolucionários nem contra-

revolucionários. Deste modo, a Lei dos Suspeitos, aprovada pela Convenção Nacional da recém instaurada República francesa em 1793, declarava suspeitos e, portanto, sujeitos ao Terror e não à virtude, não só aqueles que “nas assembléias do povo, detêm a energia destas por meio de discursos astuciosos, gritos turbulentos ou ameaças”, ou “que assinam petições contra-revolucionárias ou freqüentam sociedades e clubes anti-cívicos”, mas também “aqueles que receberam com

indiferença a constituição republicana e manifestaram falsos temores

sobre seu estabelecimento e sua duração” (grifo nosso) e “aqueles que, não tendo feito nada contra a liberdade, também não fizeram nada a favor dela”. O Terror visa eliminar toda indiferença, toda neutralidade, capturando-a no sistema binário amigo-inimigo, incluindo-a “unicamente através de sua exclusão”362: o indiferente tornava-se um inimigo sujeito ao Tribunal revolucionário, no qual, como mostrou Salvatore Satta, “o mistério do processo” se esfumava, com a conversão do Juiz em uma das partes, como parte da ação.363 Mas não é só isso: na prática, o Terror forçava – sob pena de morte – que se mostrasse ou

fingisse (ou seja: que se exteriorizasse, manifestasse) apoio à

Revolução, isto é, que se exibisse a virtude para não sofrer o Terror. É evidente como isso só poderia resultar na mais flagrante hipocrisia, exatamente a maior inimiga dos revolucionários364, e em uma disputa

361

SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. §17. The Theory of Democracy: Fundamental concepts; II. The concept of equality (general human equality, substantive equality); 4.

362

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer I. p. 26. 363

SATTA, Salvatore. Il mistero del processo. Milão: Adelphi, 1994. 364

“É bem mais cômodo usar a máscara do patriotismo para desfigurar, por

insolentes paródias, o drama sublime da revolução, para comprometer a causa

da liberdade por uma moderação hipócrita ou pelas extravagâncias estudadas (...) Se todos os corações não mudaram, quantos rostos estão mascarados! Quantos traidores se misturam em nossas questões para arruiná-las” (ROBESPIERRE, Maximilien. Virtude e terror. p. 191; grifo nosso).

sem fim sobre a virtude e suas manifestações, que terminaria com os próprios Robespierre e Saint-Just sofrendo pelo Terror que catapultaram. Em páginas brilhantes, Hannah Arendt argumentou justamente que, ao fundar a Revolução sobre a compaixão e o sentimento de amor público365, os jacobinos terminaram por desencadear uma “guerra à hipocrisia que transformou a ditadura de Robespierre em um Reino de Terror”.366 Isto porque, sendo o coração humano, no limite, insondável, “o reino da virtude estava destinado a ser, no pior caso, o governo da hipocrisia, e, no melhor, a luta interminável para des-cobrir [ferret out] os hipócritas, uma luta que só poderia terminar em derrota pelo simples fato de que era impossível distinguir entre verdadeiros e falsos patriotas”367:

É claro que todo feito tem seus motivos bem como sua finalidade e seu princípio; mas o ato em si, ainda que proclame sua finalidade e manifesta seu princípio, não revela a motivação mais íntima de seu agente. Seus motivos permanecem obscuros, eles não brilham mas são escondidos não apenas dos demais mas, na maior parte do tempo, do próprio agente, bem como de sua auto-inspeção. Portanto, a busca por motivos, a exigência que todos exibam em público sua motivação mais íntima, na medida em que, na verdade, exige o impossível, transforma todos os atores [agentes,

actors] em hipócritas; o momento em que a

exibição de motivos começa, a hipocrisia começa a envenenar todas as relações humanas. O esforço, além disso, de arrastar o obscuro e o escondido para a luz do dia só pode resultar em uma manifestação aberta e descarada daqueles atos cuja própria natureza faz com que busquem a proteção da escuridão; é, infelizmente, a essência dessas coisas que todo esforço de fazer a bondade manifestar-se em público termine com a aparição

365

“esse zelo compassivo pelos oprimidos, esse amor sagrado pela pátria, esse amor mais sublime e mais santo da humanidade, sem o qual uma grande revolução nada mais é que um crime espetacular que destrói um outro crime; ela existe, essa ambição generosa de fundar sobre a terra a primeira República do mundo” (ROBESPIERRE, Maximilien. Virtude e terror. p. 204).

366

ARENDT, Hannah. On revolution. Nova Iorque: Penguin Books, 2006. p. 89.

367

do crime e da criminalidade na cena política. Na política, mais que em qualquer outro lugar, não temos nenhuma possibilidade de distinguir entre ser e aparência. No reino dos negócios humanos, ser e aparência são, de fato, uma e única coisa.368 Auto-concebidos como protetores e vigias da virtude, os regimes de Terror terminam por produzir uma legião de hipócritas, e esvaziar de sentido as palavras e ideais que os inspiraram, a começar pela própria

virtude. Terminam, portanto, por vias tortas, dando aos homens aquele

mesmo conselho que um cínico personagem da Teoria do Medalhão de Machado de Assis dava a seu pupilo: “Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do schibboleth bíblico”369, isto é, como elemento de pertencimento, de distinção.

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