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A crítica platônica à arte e aos jogos, ou melhor, a crítica platônica ao poder de alteração dos costumes que a arte, a mentira e os jogos

4. Mala carmina: a literatura diante da le

4.4. A crítica platônica à arte e aos jogos, ou melhor, a crítica platônica ao poder de alteração dos costumes que a arte, a mentira e os jogos

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Rousseau também fará essa associação: “O exemplo da antiga Atenas, cidade incomparavelmente mais populosa do que Genebra, oferece-nos uma lição impressionante: foi no teatro que se urdiu o exílio de vários grandes homens e a morte de Sócrates; foi graças ao furor do teatro que Atenas pereceu, e seus desastres justificaram até demais a tristeza mostrada por Sólon quando das primeiras representações de Téspis” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a

D’Alembert. p. 125). 221

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’Alembert. p. 125; grifo nosso. 222

Ibidem, p. 126. Rousseau dizia que isso aconteceria em, no máximo, “trinta anos” na cidade de Genebra, caso ali se instalasse um teatro.

possuem, e ao caráter político de tal poder (presente já no vocabulário: “tribo dos poetas”, “outro modo de vida”), se encontrará, na modernidade223, com uma tradição cristã semelhante, que tinha como expoente máximo o libelo De spectaculis, de Tertuliano, escrito na passagem do século II ao III. Como vimos, para o “cristianismo todos os atos pessoais, incluídos os aparentemente mais triviais, transformam-se imediatamente em ações políticas”224, e, por isso, não só os espetáculos, mas até mesmo o vestuário era politicamente relevante, a ponto de Tertuliano ter dedicado um tratado ao tema. Apesar de terem, em sua história, uma complexa relação de aproximações e afastamentos, na modernidade, ambas as tradições irão praticamente se confundir, e o cristianismo converterá o banimento platônico em um exemplo a ser seguido. Assim, na edição estabelecida por Francisco Peña, no século XVI, do Manual dos Inquisidores redigido dois séculos antes por Eymeric, o Directorium Inquisitorum, diante da constatação da existência de poetas antigos e recentes que dizem coisas obscenas e contrárias à moral, e que são corruptores da juventude (iuuentutis

corruptores), parasitas (parasitis) e rufiões (lenonibus) – ou seja, os

mesmos contra os quais Bodin concebe o resgate da censura –, evoca-se a autoridade do grande Platão, que não permitiria que estes vivessem em sua República.225 No mesmo século XVI, Juan Luis Vives redigirá (ecoando Tertuliano em muitos pontos) um tratado sobre a instrução da mulher cristã (que, pela sua suposta fragilidade, por ser “naturalmente” efeminada, sempre recebeu uma atenção obsessiva por parte dos cristãos, moralistas e censores), dedicando um capítulo a examinar quais autores deveriam ser lidos e quais não (Qui non legendi scriptores qui

legendi), em que não só a República platônica é trazida à baila como

modelo diante do qual “uma cidade cristã” se empalidece pela frouxidão com que trata os corruptores da juventude, como também o vocabulário métrico do filósofo grego é utilizado para justificar a necessidade de punição dos maus poetas:

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Já na própria antiguidade, a crítica platônica fará uma larga fortuna, não só no plano teórico, mas também no político-prático. Assim, por exemplo, Calígula cogitou “suprimir em todas as bibliotecas do Império [romano] os exemplares de Homero, alegando a favor da proposta o precedente de Platão, que desterrou o poeta de sua cidade ideal” (GIL, Luis. Censura en el mundo antiguo. p. 195). 224

LUDUEÑA ROMANDINI, Fabián. A comunidade dos espectros. I. p. 108. 225

EYMERIC, Nicolau; PEÑA, Francisco. Directorium Inquisitorum cum

commentariis. Veneza: 1607. Livro II, Quaest XVII, comm. LII, p. 315. A

Vivemos em uma cidade cristã. Quem expressa o desprazer mínimo que seja com um autor de tais poemas hoje em dia? Disse desprazer? Quem não os abraça com entusiasmo e os elogia? Platão expulsa Homero e Hesíodo da república dos homens bons que ele instituiu. Mas que imoralidade pode se encontrar neles em comparação com A arte de amar, de Ovídio, que lemos, temos à mão, usamos até gastar e aprendemos de cor? (...) O exílio é a punição para aqueles que adulteram pesos e medidas. Alguém que falsifica moeda ou falsifica um documento é queimado. (...) E deve-se honrar na cidade e tomar como mestre da sabedoria um corruptor da juventude?226

O poeta que corrompe a juventude, desse modo, é igualado a quem desrespeita um sistema de padrões de medida, como o adulterador do peso de uma mercadoria ou o falsificador de moedas, devendo, portanto, ser punido da mesma maneira que estes. Não devemos nos espantar, fazendo uso de nossas lentes modernas, da dureza da comparação. Se João do Rio pôde dizer que em 1905 havia “mais poetas que homens”, pode-se, sem muito esforço, afirmar que, nos primórdios da modernidade, era o número de partidários da censura que superava o de homens.

A dureza cristã no trato com os poetas atinge o hiperbólico no

Diálogo contra os poetas, de Francesco Berni227 e datado do mesmo século, em que o autor lamenta que Platão não tenha vivido o suficiente para ver concretizado o que havia proposto na República. Todavia, aqui se aventa uma solução alternativa ao banimento, a qual, ainda que hoje pareça cômica, é totalitária, e, de certo modo, arrisca ainda estar em funcionamento. No Diálogo, Berni argumenta que os poetas transgridem cada um dos dez mandamentos, especialmente o que ordena não roubar, transgressão da qual, aliás, eles muito se orgulham: os poetas, pois,

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VIVES, Juan Luis. De institutione feminae christianae. Livro I. Edição bilíngüe (latim/inglês), editada por C. Fantazzi (tradutor ao inglês) e C. Matheeusen. Leiden: E.J. Brill, 1996. Cap V., p. 48-51.

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Berni foi autor de uma paródia a Orlando innamorato, de Matteo Boiardo. Não se trata de um acaso: como veremos, os “Orlandos” eram alvo dos espíritos censores da época.

glorificam o roubar (...) dizendo que quem não rouba não pode ser bom poeta. Não roubam casacos, nem outras roupas, (...) mas roubam os belos traços e as invenções uns dos outros. Comece por Virgílio, e se encontrará as setes coisas que ele diz saber não serem suas, mas ou de Homero, ou de Lucrécio, ou de Ênio, ou de Catulo. É pois de crer ainda que estes as tomaram de outros, pois dizem que ninguém pode dizer algo que não tenha sido dito anteriormente. (...) Eis porque os poetas são ladrões.228

A primeira solução que Berni propõe para lidar com estes “loucos” (“furiosi”, “pazzi”) é caracterizá-los como uma “seita”, o que remonta a Platão, quando este, como vimos, fala de uma “tribo de poetas”. No entanto, o cenário histórico e o próprio texto apontam também para uma relação com o discurso religioso corrente à época. Isso fica mais patente na conclusão que Berni tira dessa caracterização, a saber, a necessidade de “uma inquisição particular sobre os poetas, como se faz com os hereges ou os marranos na Espanha”.229 Porém, ela remete também ao nascente discurso do Estado moderno, que arroga a si o direito exclusivo de decidir quando se dá uma “heresia”, e o que caracteriza uma “seita” nociva. Pois, continua Berni, do mesmo modo que a manutenção do “bem viver” estava sendo obtida pelas “proibições de portar armas”, ela poderia ser reforçada pela proibição de “mostrar versos”. A proibição de portar armas é uma referência direta à centralização do poder estatal (lembremos da clássica definição weberiana do Estado como monopólio da força física). Se levássemos o paralelo de Berni até as últimas conseqüências, poderíamos inferir que, assim como a proibição de portar armas se dá com vistas à monopolização da violência pelo Estado, a proibição de mostrar versos implicaria uma concentração da arte nas mãos do soberano, o que de fato é, como vimos, algo reivindicado por Platão. Mas, ainda nos atendo ao paralelo, o que significa comparar os versos poéticos às armas? Por que a arte é descrita como se fosse tão ameaçadora quanto um poderio militar? Não custa repetir que devemos entrever, na forma hiperbólica do diálogo, certas marcas discursivas pertencentes à tradição, por um lado, e, por outro, distintivas de um determinado campo no qual a

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BERNI, Francesco. Opere. vol. I. Milão: G. Daelli e C. Editori, 1864. p. 18- 19.

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censura age. Além disso, devemos tentar ver como a extrapolação, o excesso, a forma caricatural adotada por Berni, permite compreender melhor elementos e soluções sobre e para o problema moderno da arte.

Desse modo, se voltarmos ao capítulo que Bodin dedica à censura (e cabe lembrar que Os seis livros da república também datam do século XVI), nos depararemos claramente com uma descrição de quão perigosa a arte aparecia ao Estado: “les Comiques & Jongleurs”, isto é, os atores, são caracterizados como uma das

mais perniciosas pestes [que assola uma República] que se possa imaginar: pois não há nada que desgaste [corrompa] mais os bons costumes, a simplicidade e bondade natural de um povo; que têm mais efeitos e poder, pois suas palavras, entonações, gestos, movimentos e ações conduzidos com todos os artifícios que se possa imaginar, e com o assunto mais repugnante e desonesto que se possa escolher, deixam uma impressão viva nas almas daqueles que atinge pelos sentidos. Em suma, se pode dizer que o

theatre des joueurs é um aprendizado de toda

impudência, lubricidade, obscenidade, astúcia, ligeireza e perversidade.230

O teatro é, para Bodin, a escola da sedição: ao corromper os bons costumes, ameaça o próprio fundamento da República. O vocabulário comum entre partidários da Inquisição, da censura eclesiástica, e Bodin (e os demais teóricos pioneiros do Estado moderno), não aponta para uma secularização do discurso e prática censórias (pois teríamos que afirmar a anterioridade de um processo inverso, a teologização da censura, já que parte deste vocabulário era moeda corrente nas invectivas platônicas e no mundo antigo em geral), e também não indica apenas uma certa consonância entre os interesses eclesiásticos e os estatais. Mais do que isso, indica a especificidade de um terreno comum, aquele sobre o qual a censura age.

Seja como for, Bodin advoga a solução extrema de Platão, no mesmo gesto em que “corrige” Aristóteles: não se deve apenas, como este sugeria, controlar o assunto encenado pelas comédias; deve-se “botar abaixo os teatros, e fechar os portões da cidade aos atores [joueurs]”. Contudo, Bodin estava ciente de que isso era

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contextualmente impossível, pois “não se pode esperar que os espetáculos [ieux] sejam proibidos pelos magistrados, porque normalmente estes são os primeiros a ir assisti-los”. 231 De fato, era inviável acabar não só com os teatros (até porque eles poderiam, segundo até mesmo um de seus opositores, como era Rousseau, cumprir uma função positiva em alguns Estados, e, além do mais, a instalação de um teatro parecia ser uma rua de mão única, um ponto a partir do qual não se poderia voltar), mas também com a poesia (a invenção da “tão amaldiçoada máquina chamada de imprensa”, para usar as palavras de Charles Teste232, tornara a empreitada uma missão quase impossível). Por isso, uma segunda solução proposta por Berni para lidar com a poesia lhe parecia – por trás de sua figuração caricatural – mais viável. Seguindo a caracterização dos poetas como uma seita, Berni sugere implementar uma prática utilizada pela Inquisição (a qual, ademais, prenuncia uma levada a cabo pelo nazismo), a saber, a identificação exterior dos poetas, que evitaria que os demais se aproximassem deles e se contagiassem: “como os Judeus, para serem assinalados pelos cristãos como gente infame e odiosa, usam chapéus amarelos (...), assim os poetas usarão chapéu verde, para assinalar a infâmia e para que se possa melhor evitá-los, e não deixá-los se aproximar”.233 Se já não era mais possível acabar com a peste artística que assolava as cidades humanas, ao menos ainda era possível isolá-la por meio da identificação de seus portadores.

Nossa hipótese é que devemos ver nesta hipérbole totalitária a descrição de um procedimento estrutural que foi, de certo modo, implantado na modernidade. Talvez possamos entendê-lo melhor recorrendo a um episódio de um romance escrito à mesma época (tanto da recuperação cristã da crítica platônica, e da Inquisição, quanto da formulação teórica do Estado moderno), e no mesmo cenário, a Espanha (de Vives, Peña e evocada por Berni). Estamos falando de Dom Quixote, publicado em 1605 e considerado o fundador do romance, ainda que não se tenha refletido o suficiente sobre essa coincidência entre o nascimento da literatura e do Estado modernos. Na obra de Cervantes, até mesmo o vocabulário, por muitas vezes, se assemelha ao que viemos analisando. Não por acaso, a certa altura, os escritores são descritos pejorativamente por um personagem como “inventores de novas seitas e

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Idem. 232

Em: BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da servidão voluntária. p. 69. 233

de um novo modo de vida”. 234 A facção poética, a poesia como facção: nos deparamos, novamente, com o poder político da arte. Como lidar com esses professores da sedição? Um episódio de Dom Quixote parece apresentar uma resposta sinistramente similar a de Berni.

4.5. Um decreto da Coroa espanhola, datado de 1543 e direcionado às

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