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Em 1882, Machado de Assis publica um de seus mais densos contos, “O espelho”, que continha, conforme indicava seu subtítulo, o

5. Guerras espirituais: eufemização, o paradigma da censura

6.1. Em 1882, Machado de Assis publica um de seus mais densos contos, “O espelho”, que continha, conforme indicava seu subtítulo, o

“Esboço de uma nova teoria da alma humana”. Nele, o protagonista, instado a palpitar em um debate entre alguns amigos sobre a “natureza da alma”, expõe a tese da duplicidade da psique humana: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”, uma “alma interior” e outra “alma exterior”:

A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... (...); muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano.

Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis... (...) Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião.399 Ou seja, segundo essa interessante teoria, a “alma exterior”, como seu nome deixa ver, é externa ao sujeito, ainda que sirva para fornecer um sopro de vida essencial sem o qual ele não pode existir. Mas essa exterioridade é também uma via de mão dupla: por um lado, exerce a função de prover o alento vital a partir do mundo; e, por outro, consiste no objeto, pessoa, idéia pelo qual o sujeito se exterioriza no mundo. A natureza da “alma exterior” pode ser melhor compreendida se nos atermos ao relato que justifica o título do conto e que diz respeito à própria vida do protagonista. Quando jovem – conta aos amigos que debatem – foi nomeado alferes da Guarda Nacional, o que despertou a alegria e o orgulho de seus familiares, os quais não mais lhe chamavam pelo nome ou pelo apelido, e sim por “senhor alferes”. Sua tia, querendo ver-lhe de farda, convidou-o então para que passasse uns tempos em seu sítio, chegando a colocar no quarto que lhe receberia um “grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples”400 e que pertencera à gente próxima da família real portuguesa. O resultado de tanta bajulação foi que

O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.

Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado (...) ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa.

399

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “O espelho. Esboço de uma nova teoria da alma humana”. Em: Obra completa. v. II: Conto e Teatro. pp. 345- 352; citação: p. 294.

400

As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.401

Todavia, essa situação muda quando sua tia têm de se ausentar da fazenda. O protagonista, então, sente sua “alma exterior” se reduzir: “O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil”. A fraqueza se agrava no dia seguinte, com a fuga dos escravos. Sem ninguém para lhe chamar de alferes, torna-se “um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”.402 Nesse tempo, absteve-se de se olhar no espelho por “um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo”. Contudo, o protagonista não resiste ao impulso contrário e decide encarar-se no espelho, confirmando o medo de ver-se cindido: “O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”.403 Aqui se mostra claramente a duplicidade da relação entre mundo e “alma exterior”: de um lado, uma corrente proveniente de fora que anima (e, portanto, enfraquece quando essa força externa se ausenta: no caso, quando não resta ninguém para chamar o protagonista de alferes); de outro, uma corrente que parte de dentro para exteriorizar (e que igualmente desaparece com a desaparição do mundo – social, no caso). Os dois movimentos, porém, são combinados e co-dependentes: sem o mundo externo que alenta, não é possível projetar uma imagem

401

Ibidem, p. 348. 402

Por razões que veremos adiante, é interessante notar que o narrador relata que essa falta de vida desaparecia ao sonhar: “Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia- me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar” (Ibidem, p. 349-350). Apesar de argumentar que o sono dava vazão à alma interior mitigando a necessidade da exterior, esta parece continuar agindo, tendo em vista que a posição social de alferes não cessa de se manifestar nos sonhos.

403

nele. Podemos dizer, portanto, que, de certa forma, a alma interior equivale, mais ou menos, ao ser, e a exterior, em maior ou menor medida, ao estar-no-mundo, ao aparecer, sublinhando, contudo, a relação dialética entre ambos, a influência recíproca que exercem, em que o pólo que metafisicamente parece mais fraco, a imagem, pode dominar completamente. Aliás, tal domínio é explicitada pelo protagonista ao narrar a solução que encontrou para se re-animar: vestir a farda de alferes e olhar-se novamente no espelho. A roupa devolve-lhe não só a imagem, mas também o próprio ser:

o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado.404 O espelho, desse modo, é o instrumento que afere a passagem do ser ao aparecer, refletindo não o ser como tal, mas a sua “alma exterior”, conformando o sujeito a uma imagem.

Uma chave de leitura possível de “O espelho” seria ver nele, como sugere Antonio Candido, um “eco do conte philosophique, à maneira de Voltaire”, com a retomada do tema da “velha alegoria da sombra perdida”.405 Porém, ainda que a ficção possa pertencer a essa

404

Ibidem, p. 351-352. 405

CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. Em: Vários escritos. 4. ed. reorganizada pelo autor. Rio de Janeiro; São Paulo: Ouro sobre Azul; Duas Cidades, 2004. pp. 15-32; citação nas páginas 22 e 23. John Gledson afirma que o conto não possibilita só interpretações psicológicas, mas talvez a questão da nacionalidade que ele propõe no lugar delas não seja a melhor chave de leitura (GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 74 e ss).

tradição, não se deve perder de vista, por um lado, que ela se conecta com a maioria das narrativas machadianas, e, por outro, que estas dialogam com a atmosfera cultural da segunda metade do século XIX e começo do século XX, a qual se debruçava sobre a dimensão psico- política de uma questão metafísica da maior grandeza. Como mostrou Lúcia Miguel Pereira, o que está em jogo, não só nesse, mas em vários contos de Machado de Assis, é “o contraste entre a substância e a aparência, entre os móveis e as ações”.406 A onipresença desse contraste em suas ficções não implica, entretanto, uma crítica à ideologia por parte de Machado, ou seja, não consiste na tematização ou formalização narrativa do topos que Roberto Schwarz chamou de “idéias fora do lugar”: o descompasso tropical entre discurso (aparência) e realidade social (substância).407 Isto porque, para usar a inversão feita por Maria

406

PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção:

de 1870 a 1920. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EdUSP, 1988. p. 98. 407

“Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmadas já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim, o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa entre outras, muito da época mas desnecessariamente apertada” (SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. p. 27). Um caso em que “a intenção universal” das idéias burguesas foi desmentida é o da Revolução Haitiana (que influiu na redação da dialética hegeliana do amo e do escravo: cf. BUCK-MORSS, Susan. “Hegel and Haiti”. Critical Inquiry. v. 26, n.4. Chicago: University of Chicago Press, verão de 2000. pp. 821-865). A leitura adorniana-luckacsiana (com aportes de close reading) de Schwarz possui muitos méritos e está solidamente construída, mas isola Machado de Assis (para colocá-lo numa posição excepcional superior, fundador de uma tradição de grandes escritores brasileiros, a qual se vinculariam os mais recentes Antonio Callado e Chico Buarque, que, como Machado, criticariam formal e tematicamente em seus romances a posição descompassada do intelectual nos trópicos) da mais frutífera linha de reflexão artística sobre a literatura nos trópicos, em que o erro, o

desvio, o fora do lugar aparecem como estratégias político-culturais e ganham

inclusive contornos metafísicos. Pense-se, por exemplo, na idéia de “obnubilação brasílica” de Araripe Jr., ou na sua afirmação de que “o realismo de Zola cederia à “realidade do lirismo ou o lirismo da realidade” em Aluísio de Azevedo, pois no “Estilo Tropical”, “a incorreção (...) converte-se numa eminente qualidade” (ARARIPE Jr., T. A. Araripe Júnior: Teoria, crítica e

Sylvia de Carvalho Franco ao responder Schwarz, “as idéias estão no

lugar”408: ainda que as ficções machadianas por vezes ironizem o

história literária. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro:

Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: EdUSP, 1978. p. 124; sobre a “obnubilação”, cf. as páginas 300 e ss. do mesmo livro e também, do mesmo autor: Gregório de Matos. 2. ed. Paris: Garnier, 1910. p. 37-38). Ou então, na “contribuição milionária de todos os erros” preceituada pelo Manifesto da

Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Ou ainda, na proposta estético-

política do Tropicalismo, que Schwarz tão ferrenhamente critica como “a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra-revolução [leia-se

ditadura militar, pois o texto foi escrito em 1969-1970] cristalizou”

(SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 90). Dito de outro modo: Schwarz situa Machado hierarquicamente acima desta linha político-cultural que tem como

figuras o “jagunço civilizado” (Araripe Jr.), o Antropófago ou “primitivo

tecnizado” (Oswald de Andrade), em suma, uma relação bárbara com a modernidade e que postula a constitutividade do erro, questionando a posição dependente do acidente em relação à essência, o lugar do fora do lugar. Para fazer uso da distinção oriunda de A tempestade, de Shakespeare, Schwarz renega a brutalidade de Caliban, em nome da coerência e lucidez de Ariel (posição explícita de um intelectual da tradição a que Schwarz pertence: Sérgio Buarque de Holanda – cf. o seu “Ariel”. Em: O espírito e a letra. Vol I. São Paulo: Companhia das Letras, 1996), o que, devemos salientar, contraria o próprio Machado, que no poema “No alto” caracteriza Ariel como “Um pensamento vão” – e quem ajuda o poeta que “chegara ao alto da montanha” é o não-nomeado canibal: “Para descer a encosta / O outro lhe deu a mão”. 408

Cf. CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de. “As idéias estão no lugar

(entrevista)”. Caderno de debates. v. 1. São Paulo: 1976. Schwarz se baseia em outro livro de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata (4. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1997), para conceber a tese das “idéias fora do lugar” e amparar sociologicamente a centralidade do favor e do arbítrio, isto é, da dominação pessoal, na ficção machadiana. A argumentação de Carvalho Franco na sua resposta é de que na “nova teoria do pensamento brasileiro como

idéias fora do lugar (...) Ainda (...) reconhecemos uma variante das

interpretações que combinam diferentes modos de produção: a sociedade e a economia brasileiras no século XIX aparecem como escravistas e articuladas aos grandes mercados mundiais, estes sim capitalistas, estabelecendo-se relações entre essas partes heterogêneas de um todo que as transcende. (...) Para evitar esse risco, é preciso partir de uma teoria que diverge, ponto por ponto, do esquema atrás explicitado: colônia e metrópole não recobrem modos de produção essencialmente diferentes, mas são situações particulares que se determinam no processo interno de diferenciação do sistema capitalista mundial, no movimento imanente de sua constituição e reprodução” (“As idéias estão no lugar”, p. 61-62). Como se verá, não é esse o nosso argumento.

contraste entre ser e aparência, elas não constituem necessariamente

uma crítica (visando uma reconciliação coerente de ambas), mas buscam lançar luz sobre o seu regime de funcionamento. Dito de outro modo: Machado de Assis sonda o poder dos costumes, das opiniões, dos rituais sociais, que operam perfeitamente mesmo quando em flagrante

contradição com as condições ditas infra-estruturais.409

Um conto enuncia bem o projeto de investigação das ficções de Machado, o núcleo de seu interesse. Trata-se de uma narrativa que, junto à “Teoria do Medalhão”, formaria uma trilogia com “O espelho”, a saber, “O segredo do Bonzo”, que trata, como o título aponta, de um dos

arcana imperii do poder espiritual, o segredo que o bonzo (monge,

sacerdote) expõe aos personagens: “se uma coisa pode existir na

opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”.410 A curiosa doutrina é, a seguir, secularizada pelos protagonistas e – em um processo incrivelmente condizente com o percurso da censura moderna – transferida, por estes, à imprensa: um deles se põe a colocá-la em prática no rudimentar “jornal” local, em que inventa relatos fictícios da qualidade de suas alparcatas, lucrando com a operação. O subtítulo do conto, “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”, isto é, das famosas Peregrinações, relato quase fantástico do explorador português, não deixa dúvidas: em Machado de Assis, como argumentou Raúl Antelo, “a história é mera exterioridade da ficção”.411 Uma leitura ideológica poderia ver neste conto uma crítica ao caráter irreal das narrações de Mendes Pinto, bem como à falsificação do discurso religioso e midiático, que são (as três) aproximadas no relato de Machado. Entretanto, esta perspectiva perderia de vista que a “irrealidade” da opinião, da ficção, da imagem ou do jornal constitui

409

Se estamos corretos, então haveria que se questionar a divisão entre o jovem Machado de Assis, concebido como escritor de contos ditos românticos, agradáveis à alta sociedade letrada, e o Machado de Assis maduro, suposto autor de romances de forte crítica ideológica, em que a tematização da contradição dá lugar a um trabalho de formalização dialética da mesma. Basta ver, por exemplo, a onipresença da temática do ciúme (motivo por excelência do chamado teatro de costumes, à voga então e por muito tempo depois), presente em todas as “fases” do autor.

410

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “O segredo do Bonzo. Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. Em: Obra completa. v. II: Conto e Teatro. pp. 323-328; citação: p. 325; grifo nosso.

411

(dialeticamente) a própria realidade que serviria como suposto parâmetro de crítica.412

Além disso, a reflexão machadiana sobre os costumes, sobre o admirável poder da opinião e da aparência, participa, como adiantamos, de uma atmosfera de especulação sobre a temática, que envolve não só a predominância do teatro dos costumes, mas também parte da filosofia, da etnografia (com seu levantamento dos usos e hábitos de distintos povos), da embrionária sociologia, da psicologia, etc. Assim, por exemplo, Nietzsche enunciaria, em 1886, uma tese semelhante à d’“O espelho”: “nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas”.413 E menos de uma década depois, Gabriel Tarde definiria a sociedade como “a possessão recíproca, sob extremamente variadas, de todos por cada um”.414 Ou seja, no final do século XIX, fenômenos como as multidões, o poder dos jornais, a moda, etc., levam à reflexão sobre o poder dos costumes e das opiniões sobre as vontades individuais, e sua capacidade de dar forma à vida subjetiva e coletiva. E mais: faz-se uso de um vocabulário comum: alma, exterioridade, possessão, etc. No mesmo ano de Monadologia e sociologia, 1895, aparecem As regras do método sociológico, de Émile Durkheim, o qual, ainda que tenha sido filiado a uma tradição oposta a de Tarde, partilha com este muito do vocabulário e na abordagem do fenômeno social:

as maneiras coletivas de agir e de pensar têm uma

realidade exterior aos indivíduos que, a cada

momento do tempo, conformam-se a elas. São coisas que têm sua existência própria. O

412

É o famoso paradoxo em que cai a postulação do marxismo vulgar de que a infra-estrutura sócio-econômica determina a super-estrutura, na qual se inserem as opiniões e conceitos: a conclusão lógica desse postulado é que a própria idéia de que a infra-estrutura determina a super-estrutura seria determinada pela infra- estrutura.

413

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do

futuro. Cap. 1: “Dos Preconceitos dos Filósofos”, 19. p. 25. 414

TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia – e outros ensaios. Tradução de Paulo Neves. São Paulo Cosac Naify, 2007. p. 112. A temática da possessão também estava no ar. No conto “Decadência de dois grandes homens”, de 1873, Machado narra as desventuras de Jaime, homem tido por louco e que acredita ser, por “metempsicose”, Marco Bruto, o Brutus (e que seu gato seria a encarnação de Júlio César): “a vida é uma eterna repetição. Todos inventam o inventado”. No seu inacabado livro sobre A propriedade, também do final do século XIX, José de Alencar caracteriza o caráter de equivalência da moeda como a “metempsicose do dinheiro” (ALENCAR, José de. A propriedade.).

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