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Em nossa breve genealogia da censura, ignoramos completamente a Idade Média cristã – a não ser pela menção ao adágio segundo o qual o

2. Constituere et praecipere

3.1. Em nossa breve genealogia da censura, ignoramos completamente a Idade Média cristã – a não ser pela menção ao adágio segundo o qual o

exemplo de vida do príncipe é a melhor censura. Não porque a censura não tivesse sido formulada e exercida na medievalidade. Pelo contrário, pode-se dizer, sem grandes riscos de erro, que a Igreja católica foi capaz de construir um sistema político-jurídico que equivalia, no limite, à censura total. Tecnicamente, no vocabulário da Igreja romana, a censura designava, e ainda designa, um dos dois grandes conjuntos de punições ou penas do Direito Canônico, que eram, por um lado, as medicinais, e, por outro, as expiatórias (as quais tinham como objetivo reparar o dano feito à comunidade e punir o ofensor). As penas que se reuniam sob o manto da censura – excommunicatio, interdito e suspensão (sendo as duas primeiras aplicáveis a todos, a segunda até mesmo a lugares, e a última apenas ao clero) – eram “medicinais” porque visavam curar a alma do ofensor. A sua aplicação pelo membro eclesiástico era regida por uma grande dose de arbitrariedade, e, como a ignomínia censória da Roma antiga, a censura católica era, em tese, limitada no tempo, durando até o arrependimento e/ou penitência do ofensor. Como uma punição (a ignomínia ou infâmia) que originalmente possuía um caráter jurídico fraco, e que se caracterizava por estar ligada à lei de modo excepcional, como um suplemento a ela, veio se tornar uma das duas formas de penas previstas pelo Direito Canônico?

Como vimos, condutas repetidamente consideradas indignas pelos censores romanos passaram a ser praticamente tipos penais previstos pelos editos pretorianos e punidos com a infâmia permanente, havendo, portanto, uma passagem da censura à lei. Todavia, na censura da Igreja, estamos diante de algo distinto, na medida em que ela não se aplicava a condutas tipificadas, restando grande dose de arbitrariedade

quando da determinação dos comportamentos que implicavam uma censura. O que é marcante é a proeminência jurídica da censura no Direito Canônico, como se isso dissesse respeito à própria natureza jurídica do cristianismo. Conforme argumenta Fabián Ludueña, no cristianismo se dá a “inédita coincidência entre vida e lei no corpo do Messias”: a vida de Cristo é, nesse sentido, a “primeira e autêntica

biografia jurídica (no sentido literal) que o Ocidente conheceu”.127 O Novo Testamento é composto por quatro biografias (algo que, como apontou Emanuele Coccia, ainda não foi suficientemente sublinhado128) da lei vivente que Jesus representa para o cristianismo: os evangelhos. A lei do Messias é a sua vida, que deve ser tomada como exemplo a ser seguido. Porém, como vimos no “paradoxo de Catão”, se o exemplo, por um lado, é algo que merece ou deve ser imitado, por outro, ele é, pela sua própria exemplaridade, inimitável: o exemplo, diz Agamben, “é excluído do caso normal não porque não faça parte dele, mas, pelo contrário, porque exibe seu pertencer a ele”.129 Dito de outro modo: se o

exemplo de Jesus pode e deve ser seguido, é, contudo, impossível estar à

altura dele, imitá-lo plenamente (ele adquiriu um caráter exemplar justamente pela grandeza de seus méritos, por exceder a normalidade, por brilhar mais que ela: deste modo, o exemplo constitui o próprio

parâmetro – literalmente, medida que está ao lado: ao lado da medida –

do caso normal, ao colocar-se como medida perfeita deste). Para tentar contornar este problema, gestou-se, nos monastérios, a noção de regra, de obscura natureza jurídica, na medida em que não podia ser uma lei no sentido antigo, que fosse separada da (e aplicada sobre a) vida, devendo, ao contrário, ser interior a esta, uma norma a qual se servisse voluntariamente130, e cuja desobediência deveria dar lugar a punições com “um significado essencialmente moral e corretivo, comparáveis à terapia prescrita por um médico”.131 Não surpreende que, no contexto

127

LUDUEÑA ROMANDINI, Fabián. A comunidade dos espectros. I.

Antropotecnia. p. 120, 121. 128

COCCIA, Emanuele. “El mito de la biografía, o sobre la imposibilidad de toda teología política”. Revista Pléyade, n. 8, prevista para abril de 2012. 129

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer I. O poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p. 29. 130

Estou me apoiando aqui em reflexões que Fabián Ludueña está desenvolvendo, e que, em parte, foram expostas no seminário “Sacro Poder”, ministrado junto com Emanuele Coccia no segundo semestre de 2011 na Universidade de Buenos Aires.

131

AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Regole monastiche e forma de vita. (Homo sacer, IV, I). Veneza: Neri Pozza, 2011. p. 44.

mais amplo, fora dos monastérios, a censura tenha sido o nome dado a este remédio receitado pelos sacerdotes que servia para interiorizar, na vida de cada um, a nova lei, na medida em que ela atua justamente sobre as formas de vida, os costumes (Biôn), visando fazer a imagem de cada um coincidir com o exemplo de Cristo. A (antiga) lei externa à vida é, portanto, “incluída no caso normal” (aqui constituído pela abolição da exterioridade da lei através da coincidência desta com a vida), “justamente porque não faz parte dele”, isto é, como exceção, arbitrariedade censória. Como Agamben argumentava ao começo do projeto Homo sacer, “exceção e exemplo são conceitos correlatos, que tendem, no limite, a confundir-se e entram em jogo toda vez que se trata de definir o próprio sentido da participação dos indivíduos, do seu fazer comunidade. Tão complexa é, em todo sistema lógico como em cada sistema social, a relação entre o dentro e o fora, a estranheza e a intimidade”.132 Por esta vizinhança entre exceção e exemplo, também não causa estranhamento que houvessem muitos médicos-monstros aplicando em doses cavalares o remédio censório, a ponto de Bodin atribuir ao “abuso da censura” eclesiástica o descrédito (mais um) em que recaía, o qual seria responsável pelo fato dos venezianos, ao instituírem vigias dos costumes em 1566, optarem por não adotar esta designação, “pois o nome do Censor em uma cidade livre repleta de prazeres parecia duro e severo”.133

3.2. Contudo, a “censura total” da Igreja não se produziu apenas por

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