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Para justificar seu resgate da censura romana, Bodin aduz uma série de motivos históricos À época, ela seria “mais necessária do que já fo

2. Constituere et praecipere

3.3. Para justificar seu resgate da censura romana, Bodin aduz uma série de motivos históricos À época, ela seria “mais necessária do que já fo

antes”, pois o declínio do pater potestas, o poder familiar do pai sobre a família e a casa (entendida no sentido amplo de oikos), e a “negligência da religião” estavam provocando uma “infinidade de crimes, tais como o assassinato, o parricídio, a traição, o perjúrio, o adultério e o incesto”.136 A bem da verdade, estes “poderes intermediários” (e outros, como a honra senhorial da nobreza, conforme apontará Montesquieu) estavam se esfacelando devido a uma corrente maior de reconfigurações históricas que iam da Reforma protestante à invenção da imprensa, e que abrangia também a centralização do poder estatal, na qual Bodin desempenhou um papel fundamental. Devemos a ele, não custa lembrar, o moderno conceito de soberania como “o poder absoluto e perpétuo de uma República”.137 O caráter absoluto da soberania serve para neutralizar poderes intermediários e difusos, submetendo-os a um poder mais alto e único. Por isso, “O príncipe soberano está sujeito somente a Deus” – e não à religião. A constituição do Estado absolutista que dá origem ao Estado moderno tem como objetivo resolver um problema concreto e imediato: pôr fim às guerras civis religiosas. Como lembra o coletivo Tiqqun, “Os seis livros da República de Bodin aparecem [em

135

ORWELL, George. 1984. 12. ed. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979. p. 157.

136

BODIN, Jean. Les six livres de la republique. Livro VI; Cap. 1. 137

1576] quatro anos depois da Noite de São Bartolomeu, e o Leviatã, de Hobbes, em 1651, ou seja, onze anos depois do começo do Long

Parliament. A continuidade do Estado moderno, do Absolutismo ao

Estado Providência, será de uma incessante guerra inacabada travada à guerra civil”.138 A tarefa, porém, não implicava somente a afirmação de um poder acima dos poderes, mas a neutralização do poder temporal das Igrejas. Para tanto, era preciso privatizar as questões confessionais, e os “poderes intermediários” mais em geral, cindindo o homem em uma faceta pública e outra privada – uma operação cujas conseqüências permanecem até hoje e que não foram investigadas em sua completude. A melhor formulação desta privatização foi feita por Hobbes, no capítulo do Leviatã dedicado a investigar as “coisas que Enfraquecem ou levam à DISSOLUÇÃO de uma República”. Dentre as “doenças de uma república que derivam do veneno das doutrinas sediciosas” estaria a “Consciência errônea”:

Outra doutrina incompatível com a sociedade civil é a de que é pecado o que alguém fizer contra a

sua consciência, e depende do pressuposto de que

o homem é juiz do bem e do mal. Pois a consciência de um homem e o seu julgamento são uma e mesma coisa, e tal como o julgamento também a consciência pode ser errônea. Portanto, muito embora aquele que não está sujeito à lei civil peque em tudo o que fizer contra a sua consciência, porque não possui nenhuma outra regra que deva seguir senão a sua própria razão, o mesmo não acontece com aquele que vive numa república, porque a lei é a consciência pública, pela qual ele já aceitou ser conduzido. Do contrário, em meio a tal diversidade de consciências particulares, que não passam de opiniões particulares, a república tem necessariamente de ser perturbada, e ninguém ousa obedecer ao poder soberano senão na medida em que isso se afigurar bom aos seus próprios olhos.139

138

Tiqqun. Organe de liason au sein du Parti Imaginaire. Zone d’Opacité

Offensive. Paris: Belles-Letres, 2001. p. 11. 139

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma república

eclesiástica e civil. Organização de Richard Tuck. Edição brasileira

A terminologia utilizada por Hobbes é precisa e visa desmontar o aparato político cristão que atendia pelo nome de “poder espiritual”. Ou seja, quando Hobbes afirma que a “consciência pode ser errônea”, ele está desarticulando a relação que o poder espiritual cristão estabeleceu entre a vontade e a verdade: a verdade não é uma questão de fé; a verdade depende de um julgamento, passível de falha. Na definição moderna do Estado não está em jogo a disputa de dois poderes pelo mesmo domínio, mas o desmanche do espaço da lei em que agia o poder espiritual e sua substituição por outro, baseado na soberania, no poder indivisível do julgamento do soberano. A consciência, o saber e a opinião dos sujeitos deixam de ser praxeis passíveis de serem submetidas à lei para se tornarem questões privadas. A única consciência válida para a política é a lei decretada pelo soberano, “porque a lei é a consciência pública”, enquanto “consciências particulares (...) não passam de opiniões particulares”. A inversão com o poder espiritual aqui é total e não poderia ser mais drástica: ao tratar “Do Poder Eclesiástico”, Hobbes não hesitará em dizer que “não há nenhum juiz da heresia entre os súditos a não ser o seu próprio soberano civil”140, resolvendo assim o problema derivado do fato de “que os homens dêem nomes diferentes a uma única e mesma coisa, por causa das diferenças entre as suas próprias paixões”: “Quando aprovam uma opinião particular, chamam-lhe opinião, e quando não gostam dela chamam-lhe heresia; contudo, heresia significa simplesmente uma opinião particular, apenas com mais algumas tintas de cólera”.141 A soberania não pode ser dividida, e, para tanto, o “poder temporal” deve eliminar o “poder espiritual”:

como o poder espiritual reclama o direito de declarar o que é pecado, reclama por conseqüência o direito de declarar o que é lei (nada mais sendo o pecado do que a transgressão da lei) e dado que, por outro lado, o poder civil reclama o direito de declarar o que é lei, todo súdito tem de obedecer a dois senhores, ambos os quais querem ver as suas ordens cumpridas como leis, o que é impossível. Ora, se houver apenas um Beatriz Nizza da Silva, Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 274.

140

Ibidem, p. 485. 141

reino, ou o civil, que é o poder da república, tem de estar subordinado ao espiritual, e então não há nenhuma soberania exceto a espiritual; ou o

espiritual tem de estar subordinado ao temporal e

então não existe outra supremacia senão a

temporal. Quando portanto estes dois poderes se

opõem um ao outro, a república só pode estar em grande perigo de guerra civil e dissolução.142 Não é preciso ter certeza voluntária (fé) da verdade enunciada pelo soberano civil; ou melhor, nem a verdade está mais em jogo – basta

agir de acordo com uma consciência que não é mais auto-gerada pelo

sujeito, a “Consciência pública”, isto é, a lei. Pensamento (privado) e ação (pública) se apartam. Pode-se pensar qualquer coisa, desde que publicamente se aja conforme a lei. Na modernidade, para usar as palavras lapidares de Montaigne, “a razão privada tem jurisdição privada”: a lei “nada tem a ver com o nosso pensamento, mas o resto, nossas ações, nosso trabalho, nossas fortunas, e nossa própria vida, cumpre-nos colocá-lo a serviço da coletividade e submetê-lo à sua aprovação”.143

3.4. Se a privatização da consciência e a afirmação da soberania

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