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Jean Bodin, responsável pelo moderno conceito de soberania, inicia o último d’Os seis livros da República com um capítulo dedicado à

2. Constituere et praecipere

2.8. Jean Bodin, responsável pelo moderno conceito de soberania, inicia o último d’Os seis livros da República com um capítulo dedicado à

magistratura do censor (e suas duas funções primordiais: a de promover o censo e a de praticar a censura dos costumes). Ali, ele afirma sem pestanejar que “a reforma periódica dos abusos foi uma das melhores e mais excelentes medidas que já se introduziu em qualquer Estado, e que muito contribuiu para a preservação do Império romano”: “as “melhores e mais prósperas cidades não podem subsistir por muito sem Censores”.

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Faço uso da tradução realizada por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, contida em LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma

leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p.

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O motivo para tal louvação do poder censório é a capacidade que ele teria de atingir uma região que a lei não alcança: “é suficientemente óbvio que os mais detestáveis vícios que envenenam o corpo político não podem ser punidos pela lei”. Os censores, como seus modelos romanos que “se ocupavam sempre daqueles abusos que não eram apresentados aos tribunais”, deveriam agir neste espaço: “Pode-se ver como a maioria dos Estados são atormentados por vagabundos, andarilhos, e rufiões que corrompem os bons cidadãos pelos seus feitos e seu exemplo. Não há meios para se livrar de tais vermes salvo pelo censor”.

Justo Lípsio, contemporâneo de Bodin, sumarizará tal campo de atuação “com uma definição sintética e eficaz, que constituirá um ponto firme nas sucessivas teorias sobre o Estado da primeira idade moderna: ‘Et appello Censuram, animadversionem in mores aut luxus eos, qui

legibus non arcentur”70: a censura chega lá aonde a lei não chega. “Que homem”, pergunta Bodin, “está tão enganado a ponto de medir a honra e a virtude apenas pelas regras da lei?”: a honra e a virtude possuem outro metro e outra forma de controle. O Estado não é ameaçado apenas pelos crimes puníveis pelos tribunais: os pequenos vícios podem se espalhar pelo exemplo, minando a autoridade pública. A virtude e a honra são

envenenadas por pequenos gestos de corrupção e caberia ao censor

vigiá-los e puni-los. Essa punição não deveria se dar pela via processual, mas pela reprimenda pública – “uma palavra, um olhar, um risco da caneta” do censor romano “inspirava um pavor muito mais vivo que todas as sentenças e punições dos magistrados”. Daí a necessidade do censor ser uma figura exemplar e não poder ser responsabilizado pelos seus atos. Apesar dessa esfera pára-legal de atuação, a importância da censura, para Bodin, não pode ser menosprezada. É como se os crimes e as sedições nascessem dos pequenos vícios, como se estes contagiassem e fizessem ruir a esfera política: “Uma vez que a censura é negligenciada, as leis, a virtude e a religião são desprezadas, como aconteceu em Roma pouco tempo antes do Império cair em ruínas.”

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Neste capítulo, todas as citações d’Os seis libros da república são referentes ao primeiro capítulo do sexto livro, e a edição utilizada é: BODIN, Jean. Les six

livres de la republique. Lyon: Jean de Tournes, 1579. 70

BIANCHIN, Lucia. Dove non arriva la legge. p. 235. Bianchin é responsável por uma genealogia da censura na primeira modernidade, Dove non arriva la

legge, que aborda, além de Bodin e Lípsio, Grégoire, Althusius e Werdenhagen.

Como se pode notar, apesar do diferente recorte temporal, a breve genealogia aqui proposta deve muito a de Bianchin.

É importante ressaltar que, fiel aos romanos, Bodin mantém unidos, com o nome de censure, tanto a censura aos costumes, quanto o censo, que seriam indissociáveis. A modernidade irá separar estas duas funções do poder censório, ignorando o laço que as une: não há censura que não dependa de uma contagem, de um escrutínio baseado em informações tomadas (algo que fica mais claro nos momentos de exceção, nos quais o aparato de censura dos costumes se ampara em uma rede policial de espionagem, os chamados “serviços de informação”), assim como não há censo que não implique certa escala valorativa político-moral da conduta dos cidadãos (o voto censitário, que vigorou em muitos países até recentemente, é uma expressão literal disso: a contagem dos bens enlaça-se com um posicionamento na ordem representativa, de cunho político-moral). Desse modo, ainda que o resgate do censor romano por Bodin tenha fins político-administrativos, visando um incremento gerencial na captação de impostos, nos ofícios de guerra, na ordenação energética da população (com um controle da produtividade dos seus integrantes), e, por meio do registro dos domicílios de cada cidadão, no controle dos movimentos dos subordinados ao soberano (integrando os primórdios daquele processo chamado por John Torpey de “monopólio dos meios legítimos de movimento”71), constituindo, desse modo, uma das raízes do Estado de população, ou biopolítico, no sentido mais amplo dado ao termo por Michel Foucault72, estas funções todas são indissociáveis da intenção de regular e controlar o modo como os súditos aparecem e se dão a ver. Assim, o censo, para Bodin, não serve apenas para ordenar melhor os impostos e os serviços de guerra, ou seja, não tem apenas finalidade administrativo-gerencial. O recenseamento da população e de sua fortuna permite, por exemplo, identificar os falsos nobres, aqueles que forjam títulos senhoriais ou de linhagem; além disso,

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TORPEY, John. The invention of the passport: Surveillance, Citizenship and

the State. Cambridge: Cambridge University Press. 2000. p. 7. O livro de

Torpey é essencial para compreender a relação entre os dispositivos de controle do movimento e os regimes políticos de exceção, em especial o uso que o nazismo fez de registros, contagens, censos, etc., tanto para otimizar as ações de guerra e de ocupação, quanto para possibilitar a infame “solução final”.

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“A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 293).

um dos maiores e mais necessários frutos que se pode colher nesse recenseamento e contagem dos sujeitos é a descoberta da fortuna e faculdade de cada homem, e como ele se sustenta, e, portanto, de expelir para fora da República todos os

zangões, que sugam o mel das abelhas, e de banir

vagabundos, pessoas ociosas, ladrões e rufiões, que vivem e convivem entre os homens bons,

como lobos entre ovelhas, gastando suas vidas no

roubo, jogo, gatunagem, bebida e prostituição; os

quais, embora caminhem na escuridão, devem mesmo assim de agora em diante serem vistos, notados e conhecidos [grifos nossos].

Como Antonio Serrano González demonstrou, o que está em jogo na reivindicação da censura por Bodin é um “problema teatral de encenação: tudo pode ir bem em princípio se são dadas umas condições tais que permitam que tudo aquilo que aparece – por exemplo: reis, ricos, vagabundos – resulte o suficientemente representativo para que reste identificado e situado no cenário da República”.73

Os homens de bem, diz Bodin “não temem a luz, [e] ficarão contentes em ter suas fortunas conhecidas, bem como suas qualidades, riqueza e modo de vida”. O censor deve trazer à luz aqueles que se escondem dela e atribuir um status negativo, por meio da censura, àqueles que forjam seu status imiscuindo-se entre as pessoas de bem. Desse modo, como bem definiu Serrano González, a censura para Bodin

Constitui um princípio técnico de repartição da ordem. Contudo, não pode consistir exclusivamente em uma serie de operações quantitativas de grande escala, pois não se pode esquecer que o lobo já se encontra camuflado entre as ovelhas. A desordem convive diariamente com a ordem, viciando o jogo da representação. (...) A confusão insere algo assim como um veneno no corpo da República, razão pela qual a censura destes componentes instáveis e falsários também deve consistir em um fornecimento constante e cotidiano de antídotos. (...) Esta instituição não deve apenas iluminar o corpo

73

SERRANO GONZÁLEZ, Antonio. Como lobo entre ovejas: soberanos y

marginados en Bodin, Shakespeare, Vives. Madri: Centro de Estudios

social de modo estruturante, mas também lançar luz, aqui e ali, em grandes doses, sobre as “tristes tabernas”. Os censores possuem assim uma função específica, que os distingue do resto dos magistrados e os assemelha até certo ponto aos eclesiásticos: dotados de uma maior sensibilidade na hora de detectar o artifício, são os mais encarregados de que a representação da ordem se leve a cabo nos substratos mais baixos, mais capilares da República.74

No esquema da representação da soberania, figuras como o vagabundo, o andarilho e o mendigo aparecem como censuráveis não apenas por serem zangões ociosos que sugam o mel das abelhas trabalhadoras, mas por se imiscuírem como lobos entre ovelhas, por se camuflarem, andarem na escuridão, não possuírem um lugar (físico e representativo) na ordem soberana. Esta liberdade em relação à “partilha política do sensível”, uma liberdade de criar e mudar o seu lugar nela, faz com que eles apareçam, em última instância, como figuras invertidas do soberano. Erasmo de Roterdã captou isto perfeitamente no seu

Diálogo de Mendigos. Ali lemos que “Não há nada mais parecido a um

Rei que a vida de um mendigo”, pois a felicidade dos Reis é a de “fazer o que lhes apraz”:

Sobre esta liberdade, em relação a qual nada é mais doce, nós temos mais dela que qualquer Rei na Terra; e não duvido que há muitos Reis que invejam nós mendigos. Haja guerra ou paz, vivemos seguros, não somos convocados (...) nem taxados. Enquanto as pessoas são sobrecarregadas por impostos, não há nenhum escrutínio sobre nosso modo de vida. Se cometemos qualquer ato ilegal, quem processará um mendigo? Se batemos num homem, não terá ele vergonha de brigar com um mendigo? Reis não podem viver com tranqüilidade nem na guerra nem na paz, e quanto mais grandiosos são, maiores são seus medos. (...) Nós devemos nossa felicidade a esses farrapos.75

74

Ibidem, p. 95-96. 75

O Diálogo de Erasmo participa da elaboração literária da figura do mendigo, que, como mostrou Chartier, teria grandes conseqüências na percepção moderna sobre os vagabundos. Cf., para uma leitura recente do tema, CHARTIER,

Percebe-se claramente, por trás do tom satírico e zombeteiro de Erasmo, como os mendigos e vagabundos podem ser vistos como exemplos negativos capazes de levar a sedições: eles coabitam, corajosamente, o espaço da anomia em que transita e opera o soberano. A censura, atuando nesta zona alegal, deve evitar que o exemplo se propague e os vagabundos, rufiões, falsificadores, etc., convertam-se, de fato, no anverso da soberania, ou seja, em piratas.76 A censura deve retirar os farrapos do mendigo para dar a ver seus vícios morais, e, assim, classificá-lo na ordem vigente.

2.9. Em Bodin, aparecem sumarizados a maioria dos tópicos que estarão

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