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AQUARELA DA TORCIDA TEM RUBRO-NEGROS E TRICOLORES

3 A AUTO-IMAGEM DOS TORCEDORES REPLICANTES

3.2 AQUARELA DA TORCIDA TEM RUBRO-NEGROS E TRICOLORES

O segundo aspecto, verificado neste trabalho, para estabelecer a auto-imagem do torcedor, diz respeito às cores. O futebol, como fenômeno de caráter moderno e urbano, está vinculado às condições históricas que marcaram o final do século XIX e o início do XX. O fenômeno é tão urbano que o hábito de andar em grupos de indivíduos vestidos com a camisa do time caracteriza um território simbólico que diferencia estes torcedores do todo formado

50 BAHIA e Botafogo na conquista do 1º turno. A Tarde, Salvador. 25 jun. 1956. 51

CAMPEONATO tem desfecho medíocre com WO na final. Correio da Bahia, Salvador, 14 jun. 1999.

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ALEX Santos. O povão já sabia. A Tarde, Salvador, 13 out. 2003. Suplemento A Tarde Esporte Clube (ATEC).

pela sociedade e constrói para o grupo uma nova forma de identidade e sociabilidade (BAUDRILLARD, 1992).

A escolha das cores constituiu importante debate para a identidade dos clubes nas reuniões de fundação. Segundo Reis e Casaes (1969), foi a escolha das cores e não o nome do clube que inspirou os fundadores a identificar o Bahia com o Estado da Bahia. Os fundadores queriam homenagear os clubes de origem com o azul da Associação e o preto do Bahiano, mas mudaram de ideia, pois acreditavam que o preto dava azar em camisa de time.

Quanto às cores, as azul e preto foram aceitas em parte... mas Waldemar Costa não aprovou... Lembrou o vermelho para substituir o preto, o que despertou o entusiasmo de Júlio Almeida, que pressentindo a combinação com azul, gritou: Bahia! Bahia! Bahia!(REIS E CASAIS, 1969, p.15)

No Vitória, a idéia inicial era representar o Brasil, com o nome de Brasileiro, como oposição aos ingleses que excluíam os baianos de suas partidas de cricket: “Alberto Teixeira lembra o verde-e-amarelo para as cores distintivas do clube. Ótimo! Gritaram todos”(PROTASIO,1998, p.11). Foi a dificuldade de encontrar material nestas cores que fez a primeira diretoria optar pelo preto e branco, em lugar do verde-amarelo. Em outubro de 1901, Cesar Godinho Spínola propôs a criação da seção náutica com as cores preta e vermelha, como as do Clube de Regatas do Flamengo. E, assim, o remo rubro-negro transmitiu as cores para o time de futebol.

A camisa e as cores identificavam o Vitória com o Flamengo. O Bahia é chamado tricolor como o Fluminense – verde, grená e branco -, e ambos usam camisa branca. A transposição de símbolos do Rio para Salvador não foi difícil, muito embora se possa contrapor a seguinte argumentação: o perfil elitista do Vitória está mais próximo ao perfil do Fluminense. Ambos são mais antigos e fundadores do futebol em seus estados, e criados pelas elites, enquanto Bahia e Flamengo estão mais associados às camadas populares.

Comprovar que um suposto decalque do Fla-Flu pelo Ba-Vi estabelece uma relação de causa e efeito não é tarefa fácil. Pode-se afirmar que houve uma forte influência do Fla-Flu no Ba-Vi. É certo que apenas a identificação com as cores seria insuficiente para fazer do jogo a potência de público em que se transformou. Outras pequenas, mas significativas diferenças (FREUD, 1912) atiçaram a dicotomia, lançando as bases para o sentimento intenso de rivalidade que caracteriza o contexto com a consolidação da metamorfose da assistência para a torcida.

Inegável, no entanto, é a influência das cores nas representações simbólicas do mundo do futebol. O uso de uniformes nas mesmas cores e desenhos é uma referência relevante para a torcida sentir-se como tal. Vestir roupas referentes ao time preferido torna-se primordial para a construção da ideia homogênea de torcida: “Ao lado de tudo isto a combinação de cores das vestimentas dos aficcionados, um todo colorido [...] a tarde esportiva que passou ficará gravada como uma das maiores desses últimos tempos”53.

A combinação cromática é tão relevante para a identificação dos torcedores que tornou-se comum a utilização das cores como sinônimo para o clube, na expressão “defender suas cores”, ou seja, “jogar pelo time”. O fato de empunhar a bandeira de um clube, e não do outro, representa esta defesa das cores, o vermelho-e-preto, no caso do Vitória, também chamado rubro-negro, e o azul-vermelho-e-branco, no caso do Bahia, referenciado como tricolor: “Em todos os cantos da cidade, viam-se automóveis conduzindo bandeiras tricolores e rubro-negras[...] de acordo com a preferência de cada um pela sua equipe”.54

As cores identificam tão rápido quanto possível a preferência de quem as veste e tornam-se também uma implícita declaração de antipatia pelas cores do rival. As refregas verbais e físicas advindas deste choque de cores resultam em polêmicas infindáveis transformadas em pautas e notícias:

[...] um torcedor do Vitória, com uma grande bandeira quadriculada vermelha e preta, tentou dar a volta olímpica. Quando encontrava-se perto de concluir o trajeto, um torcedor do Bahia saltou o muro e arrancou a bandeira do adversário, entrando os dois em luta corporal. Antes que a polícia chegasse, surgiram mais torcedores do Bahia que carregaram a bandeira do Vitória e a lascaram... Procurando revidar o episódio com a sua camisa, a torcida do Vitória conseguiu pegar um boné com as cores do Bahia e o estraçalhou (ATARDE, 1971)55.

O torcedor se vê como tal ao desfraldar as bandeiras nas mesmas cores do distintivo e do uniforme de seu clube preferido: “Os rubro-negros até tentavam se superar na criatividade, mas os gritos eram ofuscados pelas vaias dos tricolores, que fizeram o estádio estremecer com o emocionante “Bahia, Bahia minha vida, Bahia meu orgulho, Bahia meu amor!”56

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Nos momentos de intensa felicidade, nas tardes de grande vitória, o ritual coletivo das cores faz do estádio um imenso mosaico, com cada pedacinho da grande aquarela imaginária composta de camisas e bandeiras dos torcedores, nas mesmas cores do time: “Nas

53 PELA primeira vez, o estádio super-lotado. A Tarde, Salvador, 15 ago. 1954

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A cidade em festa, Bahia é bicampeão. A Tarde, Salvador, 2 ago. 1971

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A cidade em festa, Bahia é bicampeão. A Tarde, Salvador, 2 ago. 1971

56 BAHIA detido por professor vilão. A Tarde, Salvador, 12 fev. 2007. Suplemento A Tarde Esporte Clube

arquibancadas, os gritos de euforia, as bandeiras rubro-negras agitadas com entusiasmo, a certeza de um triunfo e um campeonato”57; “o estádio se agitava e as bandeiras tricolores faziam a festa”.58

Nos momentos de revés e infortúnio, as cores derrotadas saem de cena, deixando o visual das arquibancadas para os vencedores. O reconhecimento da derrota se dá, no ambiente da torcida, com a retirada das camisas e das bandeiras que identificam o clube perdedor: “Todo o estádio sentiu que o Bahia deveria ganhar o jogo. As camisas rubro-negras desapareciam, intimidadas com o barulho dos torcedores nas arquibancadas, com a vontade, a garra da turma do Bahia”59

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As cores são tão relevantes no processo de constituição de uma imagem do torcedor que funcionam como uma senha para quem deseja entrar no ambiente de determinada torcida. Para alguém vestido de vermelho-e-preto, torna-se impraticável comemorar junto aos tricolores do Bahia, exceto se esta pessoa admite despir-se de suas vestes que denunciam sua incômoda preferência: “Indiferente, um bêbado de camisa e chapeuzinho vermelho e preto, entra na festa e às primeiras tentativas de ser quase linchado, concorda em tirar a camisa, queimar a bandeira, jogar fora o chapéu e gritar eufórico: “O que eu quero mesmo é sambar”60

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O Bahia é referenciado como o tricolor, adjetivo utilizado para sinônimo do time: “Aos 20, o artilheiro Marcelo empatou para fazer ecoar o quase esquecido grito de guerra: É tricolor! É tricolor! Olé, olé, olé!”61

. Da mesma forma, dizer “rubro-negro” é o mesmo que “Vitória”: “Quando o mineiro Márcio Rezende de Freitas, árbitro da Fifa, encerrou a partida, a torcida rubro-negra extravasou toda a emoção”.62

As cores são o sinal mais evidente para a torcida se perceber no estádio, em relação à ocupação do território. Quanto mais espaços coloridos por azul, vermelho e branco, mais tricolores; quanto mais espaços coloridos por vermelho e preto, mais rubro-negros:

A Fonte Nova foi tricolor no Ba-Vi de ontem. Até a torcida rubro-negra reconheceu a predominância azul, vermelha e branca nas arquibancadas. O líder da “Raça Rubro-negra”, Railton Silva, estimou em 70% de tricolores e 30% de rubro-negros prestigiando o jogo (ATARDE, 1993)63

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UM campeão, Tribuna da Bahia, Salvador, 18 dez. 1972

58 BAHIA campeão, Tribuna da Bahia, Salvador, 27 mar. 1972 59 FOI assim a festa do Bahia, Tribuna da Bahia, 24 abr. 1972

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O velho clássico e seu encanto. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 ago. 1975.

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VITÓRIA campeão de ponta a ponta. A Tarde, Salvador, 14 dez. 1992.

62VITÓRIA campeão de ponta a ponta. A Tarde, Salvador, 14 dez. 1992. 63O título foi ganho com antecedência. A Tarde, Salvador, 28 jun. 1993.

São as cores que definem que torcida está em vantagem no duelo desenvolvido à parte do jogo: “Nas arquibancadas o duelo das torcidas era desigual, o estádio quase todo azul, vermelho e branco e uma pequena parte, do lado esquerdo das numeradas a aplaudir o Vitória”64

. Nos momentos de superioridade, as torcidas exibem suas cores. É uma forma de mostrar a satisfação e o orgulho pela vantagem obtida no confronto com o maior adversário. Amar as cores do clube é também tirar vantagem da exibição delas: “A torcida do clube está em festa e se enche de orgulho para vestir as cores vermelho e preto para comemorar um título inédito em sua história”.65

O investimento em novos equipamentos, acessórios e tecnologias fortalece a identificação pelas cores. Esta estratégia funciona também como incentivo ao time: “A torcida rubro-negra ontem inovou num bonito espetáculo, de fumaça colorida, alternando as cores vermelha e preta, ao estilo da torcida flamenguista, do Rio de Janeiro”66

. Nas ocasiões de conquista de título, as cores sinalizam a alegria dos vencedores: “O povo começa a pular, gritar, se identificar unido na mesma festa azul, vermelha e branca, comemorando mais um campeonato – o terceiro consecutivo – do Esporte Clube Bahia.”67

Da mesma forma, são as cores que identificam quem é inimigo e amigo no duelo das torcidas: “Na arquibancada um torcedor de boné vermelho e preto levanta e xinga o atacante do Bahia, recebe um tapa de um crioulo forte e sem alguns dentes, que de bermuda e uma camisa tricolor discorda do seu comportamento”68

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As cores, portanto, constituem um aspecto relevante para a construção da auto- imagem do torcedor e a produção de sentido que elas inspiram dão acesso ou não à determinada torcida, além de constituir importante referencial de identidade dos clubes. O uso das cores para identificar os grupos de adeptos de determinado time evidencia a transformação do estágio de assistência, pois nesta fase da metamorfose, não se percebia com tanta intensidade quem era Bahia ou Vitória pelo fato de vestir-se de tricolor ou rubro-negro. Os jornais fortaleceram a importância das cores na identificação dos torcedores, por meio da repetição das expressões “tricolor”, “rubro-negro” e similares. Portanto, ao tempo em que refletia o comportamento dos torcedores, que se vestem com as cores de seu clube, os jornais ajudaram a instituir esta tendência como padrão.

64O velho clássico e seu encanto. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 ago. 1975. 65VITÓRIA festeja tri inédito. Correio da Bahia, Salvador, 16 jun. 1997. 66

CHUVAS ameaçam realização do jogo. A Tarde, Salvador, 31 mar. 1986

67OUTRO empate no Ba-Vi. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 set. 1975. 68Idem e ibidem.