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A TORCIDA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL DE ALTO PODER DE INCLUSÃO

4O DELÍRIO NO ESTÁDIO E A TORCIDA NO COTIDIANO

4.7 A TORCIDA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL DE ALTO PODER DE INCLUSÃO

Estas fontes de emoção intensa, associadas ao interesse apaixonado e permanente pela sensação de delírio, fazem da torcida uma manifestação cultural de alto poder de inclusão, pois suas características permitem que alcance todas as classes sociais, tornando-se, assim, capaz de reduzir as fricções entre segmentos diferenciados por gênero e etnia. Como prova deste grande poder de inserção social, a torcida de futebol reflete e é refletida no contexto da cultura. A torcida cresce e agita, de tal forma intensa, a ponto de não se limitar ao território do estádio. Passa a integrar o cotidiano da cidade. Salvador acolhe as cores, os hinos, o jeito de ser e de vibrar dos torcedores, seus habitantes mais barulhentos. A torcida, por sua vez, transcende a proposta inicial de apreciar o espetáculo do jogo, como era seu perfil original, e passa a fazer parte dele, em suas manifestações, cantos e coreografias. O jornal registra este encontro de torcida e cidade a cada cobertura de clássico. E, assim, ao descrever aspectos desta mistura, institui seu casamento duradouro.

Observa-se o seguinte fenômeno: segue o jogo, mesmo após seu apito final, tornando a atmosfera do duelo uma sensação constante na vida em sociedade. O jogo não para; o resultado de mais um clássico fornece a matéria-prima para novas produções de sentido e representações entre os torcedores, mas não se limita ao período em que permanecem nas arquibancadas. O alcance da torcida vai além da sensação de delírio, cujo ápice se verifica no ambiente do estádio. O ritual do Ba-Vi transcende ao clima de uma disputa, de uma competição, e alcança ares de um panorama carregado de misticismo. O ritual do clássico oferece, em seu rastro, a imaginação de algo difícil de definir, uma ordem elevada de sentimentos e sensações, levando o torcedor a perder a calma, na sofreguidão por alcançar a plenitude do delírio no estádio.

Capaz de despertar e estimular interesses apaixonados, a torcida Ba-Vi ultrapassa a si própria e causa impacto em espaços sociais que não são propriamente o do futebol. Chegar ao delírio não basta: a felicidade intensa alcança outros ambientes.

Desde cedo em conseqüência do „clássico dos clássicos‟, a cidade sofreu movimento incomum. Por volta das 13 horas veículos de toda a espécie partiam dos bairros e, da Praça Municipal, então a afluência era das maiores, provocando verdadeiro assalto aos veículos coletivos, a despeito do grande numero destes. À porta do campo, graças a providencias que já tardavam, filas enormes eram organisadas, evitando o congestionamento e o ingresso dos terríveis “caronas”(ATARDE, 1947)180

Pela manhã de ontem, ao passarmos por um grupo de gente, ouvimos a recomendação de um rubro-negro da velha guarda a alguns amigos, torcedores do Esquadrão de Aço: - Se vocês vão à Fonte Nova, levem suas aspirinas. O Vitória está com tudo e não perde para o Bahia, naquele campo(ATARDE, 1952)181.

No movimento inverso, da cidade para o estádio, desenha-se um mosaico dos diferentes aspectos que constituem a cidade, em um panorama sócio-cultural capaz de construir um perfil mais aproximado da Salvador futebolística:

Daí, a minha assertiva de que o encontro Bahia x Vitória foi um “clássico” dos que agradam os esportistas. Além disso, o espetáculo pitoresco e bahianíssmo da assistencia enchendo o Estadium, com uma variedade de grupos, clubes e sociais, encontráveis nas casas simples da Estrada da Liberdade, ou nos ricos palacetes da Barra Avenida, Graça ou Vitória [...] (ATARDE, 1953) 182

A metamorfose de Salvador, no dia do grande clássico, dá bem uma idéia da força do Ba-Vi como manifestação cultural capaz de mobilizar milhares de torcedores em busca do delírio oferecido pelo seu time preferido:

Desde o meio dia, que a cidade perdeu a sua tranqüilidade domingueira, quando centenas de veículos de todos os bairros cortavam as ruas centrais da capital, superlotados e diretos para a nossa praça de esportes. Os portões do estádio foram abertos às 11,30 e, àquela hora, já vários espectadores madrugavam ávidos para assistir ao grande jogo denominado, em boa hora “O Clássico das Multidões”. E pela tarde a romaria foi imensa e ininterrupta, avolumando-se o número de pessoas e veículos extravasando, enchendo tudo. Uns levavam almofadas, outros, revistas e jornais, cadeirinhas que proporcionam melhor conforto no cimento das arquibancadas, todos levando consigo o desejo de presenciar um dos mais comentados espetáculos futebolísticos dos últimos tempos(ATARDE, 1957)183.

O fato desses dois rivais encontrarem-se frente a frente, no campo da luta, principalmente quando em disputa de um título, como na tarde de ontem, transforma o panorama geral da cidade, em todas as suas camadas. Dos bairros mais distantes, dos subúrbios e até mesmo do interior, formam-se caravanas que se convergem para a nossa grande praça de esportes, onde o

180 SUCESSO tricolor no grande “clássico”. A Tarde, Salvador. 12 mai 1947. 181

A maior “surra” de 1952! A Tarde, Salvador, 14 jul. 1952.

182 FUTEBOL Soberbo. A Tarde, Salvador. 28 set. 1953.

espetáculo se transforma em autêntica festa do esporte baiano(ATARDE, 1958)184.

O transporte coletivo de massas atende, por meio dos ônibus ou marinetes185, como este meio de transporte era também chamado em Salvador, formando o contorno de uma metrópole regional para a outrora pacata capital baiana:

Enormes filas formavam-se nos pontos das ruas mais distantes enquanto no centro cortejos de torcedores rumaram em demanda ao estádio, convergindo para a grande praça de esportes, de todas as direções. Logo às 14 horas formaram-se grandes filas nas imediações das bilheterias. Já às 15 horas as arquibancadas e gerais estavam quase literalmente lotadas (ATARDE, 1958)

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Logo após o término do embate, verdadeiro carnaval tomou conta da cidade proporcionado pelos fans do Vitória. A alegria entre os rubro-negros era imensa. O campo foi invadido pela torcida tendo à frente a Charanga do Almério com outros elementos da Orquestra de Britinho e Seus Strukas, fazendo a volta olímpica com multidão de acompanhantes seguindo depois pela Vasco da Gama, em demanda a cidade, desfilando com cartazes e faixas, prosseguindo o carnaval até altas horas da madrugada. Na rua Carlos Gomes, onde está situado o Escritório Central do Vitória, outras comemorações foram realizadas ficando aquela artéria interrompida ao tráfego (ATARDE, 1958)187.

A festa pela cidade dá continuidade à sensação de delírio conquistada pelo resultado dentro do estádio. A presença dos trios elétricos nos arredores do estádio é a certeza de prosseguir o delírio após o final da partida.

Terminada a partida, os torcedores foram “curtir” a festa do título ao som de dois trios-elétricos contratados pela diretoria do Bahia e que permaneceram próximos ao Dique e na Ladeira da Fonte Nova, desde o jogo preliminar entre Bahia x Fluminense, pela categoria de juniores(ATARDE, 1986)188. Embora una todas as torcidas em um perfil semelhante, a sensação do delírio, com sua inseparável carga emocional, é alcançada de forma variada, a ponto de se observar flutuações de comportamento entre os torcedores. Estas alterações sofrem a influência dos fatores que levaram a assistência a transformar-se em torcida. É o que vamos verificar no próximo e último capítulo, por meio do estudo da narrativa dos jornais que ajudam a instituir a torcida, na metamorfose em fluxo contínuo que parte da assistência e pode chegar, nos próximos anos, a consolidar a pós-torcida como resultado da metamorfose contínua.

184 UM foguete de Carlito reacendeu a estrela do Esporte Clube Bahia. A Tarde, Salvador. 24 fev 1958. 185 OS baianos chamavam os primeiros ônibus de marinete, porque o uso deste meio de locomoção coincidiu

com a chegada a Salvador de um famoso ator italiano chamado Marineti.

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E.C. Bahia campeão virtual de 1958. A Tarde, Salvador. 20 out 1958.

187 CARNAVAL rubro-negro na cidade. A Tarde, Salvador. 17 mar 1958.