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UM TEMPO PRÓPRIO REGULA O RELÓGIO DO TORCEDOR

3 A AUTO-IMAGEM DOS TORCEDORES REPLICANTES

3.1 UM TEMPO PRÓPRIO REGULA O RELÓGIO DO TORCEDOR

O tempo é resultado da transformação social. Não se pode reduzir o pressuposto do tempo como mais uma categoria fixa e imutável; não, o tempo está incluído no processo da transformação social. Elias (1994) admite a limitação que reduz o alcance de sua proposta metodológica: “...ainda faltam teorias empiricamente baseadas para explicar o tipo de mudanças sociais de longo prazo que assumem a forma de processo e, acima de tudo, de desenvolvimento” (ELIAS, 1994, p. 216). Assim, admite este autor que a ciência ainda não conseguiu criar instrumentos para lidar com este tema de forma processual e multidisciplinar.

As referências divulgadas pela imprensa ajudam a perceber a construção de um campo autônomo do esporte e, dentro dele, o futebol e o Ba-Vi. O tempo é um destes referenciais. Em um primeiro momento, na vigência da assistência, o relógio do cotidiano, da vida fora do estádio, coincide com o tempo do jogo: “O prélio foi iniciado, sob grande expectativa, às 15 horas e 35 minutos”43

. Mas, mesmo quando os futebolistas coincidiam o tempo do mundo fora dos estádios com o relógio do árbitro, já havia um tempo especial, um tempo vivido apenas em caso de se aceitar a submissão ao ambiente do jogo.

Uma partida de futebol de 90 minutos se divide ao meio em dois tempos de 45 minutos, cada, mais os acréscimos de tempo para compensar alguma paralisação para atendimento médico a algum jogador machucado ou outra circunstância que impede a sequência do jogo: “Nesse momento, a partida ficou parada três minutos porque na hora do empate a torcida do Vitória estava atirando garrafas no goleiro Jean, criando a maior confusão”44

.

Entre estes dois tempos, há um intervalo de 15 minutos. A demarcação em duas etapas distintas de jogo provoca no torcedor a sensação de pertencimento a um mundo à parte, no qual o relógio tem um movimento diferente do mundo “real”. Esta sensação é básica para o torcedor sentir-se integrante do mundo do jogo e se enxergar como um habitante das arquibancadas: “O primeiro tempo terminou sem abertura de placar”.45

A torcida vê-se fora dela mesma, observando esta variável. O torcedor sabe que está imerso ao jogo se o relógio passar a marcar dois tempos de 45 minutos mais os acréscimos, com intervalo de 15, conforme está na regra do futebol. Este tempo suspenso dos estádios é um referencial decisivo, pois o resultado da partida estará definido ao final daquele período e durante o transcorrer dos 90 minutos, soma de 45 mais 45, o torcedor sabe que ficará sujeito ao ambiente do jogo, vivenciando as emoções geradas pela sensação de vitória ou derrota. É

43

O Vitória às portas do campeonato. A Tarde, Salvador, 15 mar. 1954.

44 BA-VI agitado. Correio da Bahia, Salvador, 18 mar. 1996. 45 VITÓRIA vence Ba-Vi. A Tarde, Salvador, 18 fev. 1991

um torcedor porque se vê como terceira pessoa, entregue ao ritual do tempo do jogo. O que muitas vezes se considera como a primeira pessoa, um eu falante, refere-se, na verdade, à primeira pessoa do singular e do plural ao mesmo tempo: o eu-nós, conforme Elias, uma expressão que reflete uma partilha de valores e sentimentos construídos em coletivo.

Ao enxergar sua auto-imagem em um tempo fora do tempo convencional, o torcedor se vê como tal: “Nos 15 minutos finais, a torcida do Bahia ensaiava um “olé” a qualquer troca de passes entre os tricolores, enquanto a do adversário começou a deixar o estádio mais cedo”46

. Não há como se enxergar como torcedor, sem se colocar sob o domínio deste tempo diferenciado e finito, que ajuda a regular as emoções, pois à medida que ele passa, o placar do jogo vai se mantendo ou pode ser alterado, e esta indefinição é estruturante do comportamento da torcida: “O grito de gol da galera rubro-negra somente foi ensaiado aos 20 minutos. Aos 15, a torcida do Vitória pediu a presença de Iedo e o técnico Carlos Gainete, expulso do banco a 11 minutos do primeiro tempo, mandou recado para que o júnior entrasse”47. Neste sentido, ainda que o objeto de estudo desta tese seja a torcida do clássico Ba-Vi conforme referenciada nas páginas esportivas, seu comportamento é similar a qualquer outra no que se relaciona ao quesito tempo de jogo.

A submissão à lei do tempo do jogo ocorria também na era da assistência, pois condicionar-se à regra dos 90 minutos é condição básica para a realização de uma partida. No entanto, os efeitos do resultado ao final destes 90 minutos é um sinalizador da mudança. O final do jogo traz uma satisfação ou uma tristeza, a depender do resultado obtido pelo time para o qual se torce. Ao apontar para o centro do campo e apitar forte, o árbitro do jogo decreta o fim do tempo sob o qual aceitou submeter-se, conforme a lógica do jogo e seu regulamento: “A festa era rubro-negra e todos os jogadores foram agradecer à torcida no final do jogo”48

. As mudanças no placar, que provocam grandes comoções, em razão de alterar o rumo de decisões de títulos, passaram a ser lembradas pelos torcedores para sempre, quando ocorrem em momentos como os finais dos períodos de jogo, seja nos últimos minutos, ou nos acréscimos do segundo tempo: “Raudinei empatou o clássico aos 45 minutos do segundo tempo, fazendo explodir a Fonte Nova”49

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Os gols marcados rapidamente, logo no início do jogo, provocam uma sensação específica nos torcedores. Os fãs do time que fez o gol torcem pela resistência ou ampliação

46 BAHIA vai decidir turno. A Tarde, Salvador, 9 mar. 1990 47 VITÓRIA ganha o Ba-Vi. A Tarde, Salvador, 18 fev. 1990 48

VITÓRIA ganha jogo. A Tarde, Salvador, 12 out. 1992.

49 BAÊA, 40 vezes Baêa. Bahia Hoje, Salvador, 8 ago. 1994. Na verdade, o gol foi assinalado nos acréscimos

do placar favorável; os adeptos do time que sofreu o gol passam a torcer intensamente pelo empate no marcador.

[...] o público ainda se ajeitava nos seus lugares para presenciar o encontro quando um estrondo ainda mais ensurdecedor que antes voltou a colocar em festa o “estádio Octávio Mangabeira”: era o 1º gol do Bahia, aos 25 segundos de jogo. Nova vibração no estádio, agora com milhares de lenços brancos acenando para os rubro-negros (ATARDE, 1956)50

Nas ocorrências que não permitem ao futebol ser regulado por seu tempo próprio, como na decisão de 1999, quando o Ba-Vi decisivo não foi realizado, por causa de questões judiciais, o torcedor fica impossibilitado de se ver como tal porque o relógio não passa a funcionar como o cronômetro do jogo, mantendo-se no mecanismo convencional: “Às 16h55, os jogadores do Bahia entram em campo. O estádio, no entanto, estava vazio”51. Neste exemplo, o tempo “mágico” ou ritualizado do futebol não se instalou e o torcedor também não se pôde materializar, pois não conseguiu se enxergar como tal, sem o relógio diferenciado.

O tempo, portanto, é fundamental para que a torcida possa construir uma identidade própria, uma vez que apenas sob a égide deste “tempo do futebol”, pode-se torcer pelo time, naqueles 90 minutos especiais que relacionam o cidadão comum ao ambiente do jogo. O tempo dos gols é registrado como um tempo especial: “... 35min-Gol! Gilmar faz grande jogada pela direita e cruza para Samir, debaixo do gol...”52

.

Se antes, no período de referência do Campo da Graça, a assistência tinha reações mais amenas, a despeito do andamento do relógio, na transformação para a torcida, a vivência do tempo tornou-se intensa, do primeiro minuto aos acréscimos do jogo.