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POSTULADOS ENTRE O LÚDICO E A CULTURA: A NECESSIDADE DO PRAZER DE VENCER

4O DELÍRIO NO ESTÁDIO E A TORCIDA NO COTIDIANO

4.3 POSTULADOS ENTRE O LÚDICO E A CULTURA: A NECESSIDADE DO PRAZER DE VENCER

Uma interpretação dos textos dos jornais indica que a reunião de pessoas para vibrar juntas em um jogo entre Bahia e Vitória configura-se muito mais que um fenômeno fisiológico ou biológico. Trata-se de uma manifestação localizada no âmbito da cultura. A torcida , assim, representa esta dimensão da vida em que se torce, ou melhor, se distorce a chamada “realidade”; atraindo em si e para si, indivíduos dispostos a partilhar emoções e símbolos, mediante a crença em um determinado jogo entre Bahia e Vitória. De acordo com as representações do clássico Ba-Vi encontradas nos textos dos jornalistas, as pessoas da torcida colocam mesmo em jogo um algo diferenciado da realidade cotidiana. Este algo-mais representa a superação das necessidades objetivas da vida e dá uma sensação de vitória, o prazer de vencer o rival, representante metafórico das adversidades da existência, como um enigma a ser decifrado num mito: é esta emoção que parece resultar no maior sentido à existência da torcida, como verificaremos a seguir, em um exercício que pode recuperar no torcedor sensações ancestrais relacionadas à sobrevivência e à vitória sobre ameaças originárias da vivência na natureza das selvas originais e das primeiras cavernas, em ambientes inamistosos repletos de perigos. (FREUD, 1912)

Este algo-mais está fortemente relacionado ao desejo de vencer o outro, em situações de jogo só estabelecidas caso o torcedor aceite o convívio do ambiente do estádio, embora salte este mesmo ambiente para produzir sentido também no pós-jogo. O algo-mais é o próprio sentido da torcida, imersa em um ambiente de intensa competição. É o sentido da torcida, enquanto estima, um significado compartilhado que permite a identificação, o pertencimento e a intersubjetividade. É a sensação de ser superior porque “meu time venceu o da torcida rival”. É uma sensação extensiva ao jogo do cotidiano, mesmo depois de encerrada a partida. É a hora do divertimento, quando o torcedor escarnece de seu contrário. Mais que a vitória de seu time, o torcedor fica muito feliz com a derrota alheia. Esta sensação é localizada no material de pesquisa, em metáforas que, na interpretação dos jornais, ajudam a desenhar os seus contornos difíceis de definir: “A goleada sobre o maior rival “lavou a alma” da torcida rubro-negra”125.

Talvez se possa chegar mais próximo do que se pretende dizer com a expressão sabor ou prazer de vencer. Provisoriamente, vamos chamar o algo-mais que se ganha no clássico Ba-Vi, de prazer de vencer, seguindo a trilha para alcançar o delírio tão almejado. A partir de postulados que levam em conta a relação entre a esfera do lúdico e da cultura (HUIZINGA, 2007), foi possível identificar algumas das tentativas de explicar a torcida e que tornam-se impossíveis de sustentar por não levarem em conta o algo-mais, aquilo que se coloca em jogo quando é configurado o duelo de torcidas em um Ba-Vi: o prazer de vencer.

A torcida seria um resultado de descarga de energia vital superabundante. Mas, sem a busca do êxtase dos estádios, gerada na vibração suprema dos gols e das vitórias, bastaria a utilização desta descarga durante os jogos e, logo, o agrupamento humano voltaria a se aquietar. Não é isso que ocorre; ao contrário, o prazer de vencer leva a torcida a se animar ainda mais nas grandes vitórias depois dos jogos.

É possível pensar a torcida também como a satisfação de uma tendência à imitação. Assim, funcionaria como reprodutora de situações do cotidiano. Mas, sem o algo-mais, o prazer de vencer, esta proposta quase cênica para entender a convivência social nas arquibancadas, ficaria esgotada ao final do jogo que, assim, seria comparável a uma peça teatral. Após cada partida, vista aqui como uma ferramenta de catarse coletiva, os torcedores estariam tranquilos, depois de terem desempenhado, cada qual, o seu papel; no entanto, o que acontece é uma vibração intensa nos momentos das vitórias que levam ao delírio.

Outro postulado derivado da inserção do lúdico na cultura aponta que a torcida seria resultado de uma necessidade coletiva de distensão: um meio de escoar emoções represadas no cotidiano, como em um gigantesco psicodrama coletivo. Ocorre que, sem o sabor especial das vitórias, esta função implicaria uma enfadonha terapêutica de massas, cujo resultado seria a conformação das pessoas em um perfil de equilíbrio e moderação, o oposto do que se vê no comportamento de ensandecidos torcedores dispostos a conquistar o prazer de vencer e a consequente sensação do delírio.

A torcida seria ainda uma forma positiva de incluir as pessoas na preparação de tarefas e na elaboração coletiva de emoções, como um treinamento da vida real. Mas, sem o algo- mais, o prazer de vencer, não haveria como estimular o torcedor em busca do êxtase neste cenário similar a um exercício obrigatório. A torcida seria, assim, uma instituição regida por severos códigos de disciplina, e não uma massa informe, flexível e mutante, sempre ávida pela indisciplina emocional.

Esta indisciplina se revela no descontrole verificado na sensação do delírio que produz o comportamento coletivo rotulado de anormal em relação ao padrão do cotidiano sério e

controlado do dia a dia dos torcedores quando são cidadãos em seus afazeres sociais, fora do estádio. O povo das arquibancadas pode também ser pensado como um exercício de autocontrole indispensável para o indivíduo ajustar-se às necessidades cotidianas de partilhar emoções. No entanto, a ausência, nesta definição, do algo-mais, do prazer de vencer, não permite encontrar sentido em um objetivo tão racional. Originada de um determinado impulso de jogo, a torcida teria também uma capacidade de competir e dominar. Mas, como esta dominação seria exercida se não houvessse um prêmio especial para festejar as vitórias? Como perceber e sentir este controle, sem o interesse pelo algo-mais e o prazer de vencer, que é o objetivo da vitória?

Outra oportunidade de pensar a torcida, esta bem aceita no cotidiano, talvez por ser mais fácil de entender, é a metáfora da válvula de escape para emoções reprimidas e que poderiam colocar em risco a nossa sobrevivência. Mas, assim, como seria possível deslocar o “real” para o “escape” sem um prêmio especial para viabilizar esta transferência?

É possível pensar a torcida, também, como realização do desejo contido ou uma ficção partilhada destinada a preservar os valores da coletividade, mas ainda assim, ficaria, como em todas as outras explicações, uma lacuna do algo-mais, a falta do prazer de vencer, que indica uma sensação mais intensa e se revela como a melhor recompensa emocional para dar motivo de existência à torcida no clássico Ba-Vi. Embora não seja a proposta deste trabalho discutir a torcida em relação ao existencialismo, a intensidade da dedicação dos torcedores ao time remete à celebre frase do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1995): “Somente um interesse apaixonado pode levar o sujeito a existir plenamente”.

Não há como aceitar alguma destas tentativas de definir a torcida de futebol, sem o interesse apaixonado pelo algo-mais, ou o acréscimo da sensação que descrevemos provisoriamente como o prazer de vencer e, em consequência, tripudiar do adversário vencido. Este era um dos valores básicos da origem do esporte moderno, que a torcida inverteu, instituída como local de intensa rivalidade e antipatia mútua. Na transição da assistência para a torcida, humilhar o adversário, tanto quanto possível, e com a maior intensidade, passou a ser o objetivo primeiro de um torcedor: vibrar pelo time vencedor e extrair do efeito desta vitória uma sensação de existir mais feliz, superior ao adversário, o algo-mais tão desejado no estádio e no cotidiano.

As definições reducionistas com base na psicologia e na biologia também são limitadas por não levarem em conta este algo-mais, que não se encontra nas funções de descarga de energia excessiva, de distensão após esforço ou de preparação para a vida. A compensação aos desejos insatisfeitos, em exercício de sublimação, também nos parece

incompleta, por não explicar por que, mesmo ao satisfazer desejos, simbolicamente, ainda assim, voltamos a sentir o desejo irrefreável do algo-mais no próximo embate, como uma pulsão incessante por gols e vitórias: um sucesso pleno, mas temporário, sempre colocado em jogo, sem uma garantia de ser duradouro, pois logo após um Ba-Vi, virá o próximo e o time que ganhou um clássico, pode ser o derrotado a seguir. O torcedor está estimulado, sempre, num fluxo permanente, a buscar continuamente este algo-mais. Uma busca incessante e obsessiva pela vitória. A única certeza é a luta permanente pelo sucesso, e é esta busca contínua que dá o sentido de existir da torcida.

4.4 META-TORCIDA: A TORCIDA ALÉM DELA PRÓPRIA E OS CAMINHOS PARA