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3 A AUTO-IMAGEM DOS TORCEDORES REPLICANTES

3.3 BAÊA X NEGÔ: O GRITO DO TORCEDOR

Além do tempo e das cores, o torcedor se identifica como tal pelo falar. A identificação mais elementar ocorre pelo nome do clube. O torcedor sabe tratar-se de seu time pela simples menção do nome da agremiação: “Nas arquibancadas da Fonte Nova, quase que lotadas por torcedores tricolores, os gritos de “Bahia” abafavam a pequena vibração da torcida adversária”69

. No caso do Bahia, o nome do clube passa por uma leve alteração: pode sofrer uma mudança da grafia original para “Baêa”, mais próximo foneticamente de como os torcedores costumam gritar, nos momentos de incentivo e comemoração:

Na saída do estádio, os torcedores continuavam a esperar os jogadores para fazerem a passeata até a Igreja do Bonfim. Muitas faixas e bandeiras do Bahia eram carregadas pelo povo que chorava, ria e cantava: Bahêa, Bahêa, Bahêa, mais um título de glória(TRIBUNA DA BAHIA, 1974).70

Os gritos de „Baêa‟ facilmente identificam o torcedor deste time e tornam-se um importante meio de incentivo aos seus jogadores:

Os tricolores encarregavam-se de espantar o sono da cidade pelas ruas. “Eu sou Bahia, com muito orgulho, com muito amor” era cantado. Gritos de “Baêêêêêêaaa” misturavam-se com o hino do clube, intercalados com as constantes repetições dos gols do time(CORREIO DA BAHIA, 1998).71

Os cantos de guerra e frases de efeito gritadas em conjunto pelos torcedores ajudam a perceber de que lado estão. A torcida do Vitória tem a sua manifestação preferida na expressão “Negô!”: “Aos gritos de Negô, Negô!, os torcedores incentivaram os jogadores até o final da partida”72. Não se sabe ao certo como surgiu o grito de “Negô!”, mas é provável que tenha ocorrido por influência da torcida do Flamengo do Rio, a maior do Brasil, e que costuma gritar „Mengô!” para incentivar seu time. Mas a torcida do Vitória também chama pelo nome original do time: “Léo e Fischer eram os atletas mais festejados pelos torcedores que gritavam toda hora: “Vitória, Vitória, Vitória...”73

A partilha das gírias e dos chavões que constituem este futebolês (LEAL, 2010) faz com que o torcedor se veja na terceira pessoa, como um falante daquele código tão peculiar.

69O Bahia ganhou antes do jogo começar. Jornal da Bahia, Salvador, 23 ago. 1976. 70A festa terminou no Bonfim. Tribuna da Bahia, Salvador, 19 dez. 1974.

71

É o Baêa! Coreio da Bahia, Salvador, 25 mai. 1998.

72

VITÓRIA mantém freguesia. Bahia Hoje, Salvador, 12 jun. 1995.

O “eu” do torcedor se vê como um “ele” ao perceber no outro uma forma de se comunicar tão própria que exclui outros “eles” que não têm acesso ao dicionário do futebolês. Os jargões e expressões construídas no convívio da arquibancada constituem uma linguagem própria, que os jornais assimilam e distribuem de volta aos componentes desta comunidade, no caso os leitores-torcedores, como se observa na manchete: “Gude prêso, ontem, na Fonte Nova”74. A expressão “gude preso” significa um placar apertado: 1x0. A metáfora é assimilada do popular jogo de gude, praticado pelas crianças com pequenas bolas de vidro e muito comum em Salvador, no período de origem e consolidação do Ba-Vi. O “gude preso” ocorre na modalidade triângulo, quando o jogador faz um bom lance e mantém a vantagem conquistada até o fim da partida. Assim como “gude preso”, outras expressões permitem pensar em um dialeto „futebolês‟, falado pelos torcedores e apropriado pelos jornalistas em suas crônicas.

A utilização destas expressões restritas ao ambiente explica, em contraste, o afastamento de pessoas que tentam torcer, mas terminam não se enxergando como torcedor, por não saber falar aquela linguagem, muito estranha para quem não conhece. É difícil, de um dia para o outro, aprender e falar tantas expressões carregadas de metáfora que o rádio esportivo, com seus criativos narradores, se esmera em produzir a cada cobertura de jogo (SOARES,2000). A palavra “virada”, por exemplo, significa, na linguagem do torcedor, que um time vence outro, depois de tomar um ou mais gols, assumindo a responsabilidade de “virar” o placar, ou seja, fazer mais gols que a quantidade sofrida inicialmente. Se leva um gol, a virada ocorre com dois ou mais gols em seguida, revertendo o marcador: “Quando o Bahia marcou o segundo gol, muitos torcedores do Vitória começaram a deixar o Estádio da Fonte Nova, porque não acreditavam mais na virada do seu time”.75

O placar dobrado a partir de 4x2 era chamado de rolha nos anos 1940 e 1950, mas somente os iniciados no ritual do estádio, os torcedores, seriam capazes de entender o texto sem recorrer a um especialista em linguagem de futebol: “A última vez que estive na Graça, num encontro desse tipo, foi no ano em que o nosso freguez de maior credito pegou uma rolha autentica, de cortiça legítima, com um escore de 6x3, iniludíveis”. 76

Quando um time perde algumas vezes seguidas do rival, leva a pecha de “freguês”, uma das grandes humilhações registradas na linguagem dos torcedores: “A galera deixou o estádio feliz e chamando os rubro-negros de “fregueses”.77 Chamar o adversário de freguês, como se diz na feira livre, dos clientes que costumam voltar para comprar os mesmos

74 GUDE preso, ontem, na Fonte Nova. A Tarde, Salvador, 20 dez. 1954

75

DESTRUIÇÃO e tumulto no final do clássico. Jornal da Bahia, Salvador, 26 jul. 1976

76 O Bahia progrediu pouco. A Tarde, Salvador, 25 jan. 1952 77 UM gol fulminante. A Tarde, Salvador, 31 mai 1988.

produtos, é uma das delícias do ato de torcer, desde que o time esteja vencendo e tomando o rival como “freguês de caderno”, ou seja, perde tanto que torna-se possível escrever num caderno a série de resultados:

A resposta de Sergipinho, torcedor do Vitória:

- Desde aqueles três a um, no campo da Graça, não tem mais time pra ganhar da gente. Ganhou aquele quadrangular da inauguração, porque o juiz quis. Vencemos outro, inverteu a freguesia:

- Um, dois, três, o Bahia é freguês!(TRIBUNA DA BAHIA, 1971)78

O jogador que conquista a simpatia da torcida é comumente chamado de “rei”, como forma de homenagear o ídolo com um título de nobreza, vestígio da era em que os monarcas estavam na alta hierarquia, antes da Revolução Burguesa de 1789 e que permanece na linguagem capaz de identificar o torcedor: “No final, o jogador recebeu o calor da torcida, que não deixou o campo, enquanto Hugo não foi até perto da arquibancada ouvir o refrão: “... rei, rei, rei, Hugo é nosso rei”79.

As variantes regionais tornam ainda mais necessário o conhecimento prévio de uma linguagem específica para acessar o subcampo torcida dentro do campo esportivo. O lance conhecido por banho de cuia, na Bahia, por exemplo, é o mesmo que se chama chapéu nos Estados do Sudeste brasileiro. A goleira do Rio Grande do Sul tem o nome de trave na maioria dos Estados brasileiros. Por estes exemplos, e tantos outros que se pode citar, fica demonstrado que a linguagem, como aspecto de auto-imagem, é relevante a ponto de inspirar a edição de uma série de livros e dicionários acerca do tema da linguagem das arquibancadas, que provisoriamente rotulamos de futebolês (ALBUQUERQUE, 2007, GOMES e FACÓ, 2007, LEAL, 2010). Há situações de adaptação de refrão de música muito conhecida, o chamado sucesso: “O estádio inteiro, tirando a „muqueca‟ tricolor, acabou embalado pelo ritmo do Chiclete: “Tu, tá, tá, tu, tu, ta ra rá, o Bahia é Série B e o Vitória é Série A”80

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