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AS ARTES E A ARTE

No documento Criação livre e criação dedicada (páginas 70-86)

Como vimos a palavra design teve oscilações de significação ao longo do tempo e conforme os lugares e os contextos de uso. Este é um processo comum que vemos acontecer com muitas outras palavras, pois a especialização e aceleração introduzidas pela aplicação industrial da máquina a vapor no século xViii, trouxe consigo a necessidade de nomear modos de trabalho que anteriormente não existiam ou que não requeriam especialização, como por exemplo a dactilografia, que empregava mulheres cuja profissão era exclu- sivamente a de escrever à máquina, que tinham cursos e formação para o efeito.

Arte industrial, artes aplicadas, artesanato, tudo isto são palavras

usadas para designar atividades fronteiriças do design, com as quais se reconhece um fazer específico com características de origi- nalidade e singularidade. Poderá perguntar-se se esta necessidade de concretizar não é comum a todas as áreas da actividade humana. No projecto, como em outras áreas, surgem conhecimentos e es- pecializações cujas designações lhes ficam curtas: um engenheiro agrónomo não é um agricultor, um fiscalista não é um advogado. Notamos que à medida que os saberes se vão academizando, surge a necessidade de uma designação mais nítida. A palavra Arte, por exemplo, surge no português no século xiii com significações ex- tremamente amplas: “talento, saber, habilidade, arte (em sentido geral e moral)” como também “aquilo em que se aplica o talento; a profissão; o mister; arte, ciência; conhecimentos técnicos, teoria, corpo de doutrinas, sistema, arte”. Arte, no português arcaico, é sinónimo de artifício, fingimento (“...pelo amor sem arte a mui sobejo, que havia a Boos..” (séc. xiii). (Machado 2003a, p. 323)

Há outras áreas cuja designação se manteve constante mesmo quando todos os pressupostos são alterados: a música, por exemplo. Chama-se música a Ordo Virtutum de Hildegard Von Bingen (séc. xii) e a 4’33’’ de John Cage (séc. xx) bem como a Aus den

Sieben Tagen de Karlheinz Stockhausen ou a Variations Pour Une Porte Et Un Soupir de Pierre Henry. Em todos estes casos dizemos

que é música, apesar de o primeiro ser uma escrita exclusivamente para vozes femininas; no segundo o intérprete senta-se ao piano mas não produz nenhum som; no terceiro o compositor não escreve qualquer nota, pedindo ao intérprete que “toque uma vibração no ritmo do universo” e, no quarto, onde se dispensam os músicos e

a escrita, é uma peça constituída pela gravação do ranger de uma porta e de um suspiro; Maurício Kagel tem uma peça para contra- baixo e cão; Satie uma outra cuja execução é quase impossível por durar vinte e oito horas; John Zorn uma em que fere os tímpanos com ultrassons; Frank Zappa uma opereta em que os personagens principais são duas batatas... Em todos estes casos estamos perante

música, embora como vimos, sejam retirados elementos que até

ao século xx eram fundamentais: a produção de som por seres humanos ou por instrumentos musicais, a determinação dos sons pelo compositor, a presença de músicos e de instrumentos musicais (fundamental antes da invenção da electricidade, da rádio e da tele- visão): apesar de todas estas diferenças estruturais as designações usadas são as mesmas no século xV: música (peça, mas também pode ser a partitura gráfica), músico (intérprete, compositor). Como vimos, noutros campos da atividade humana não aconteceu o mesmo. As artes designavam uma série de saberes que pres- supunham uma téchnê (a palavra grega que designa saber fazer e o conhecimento prévio à acção): as artes da pesca, as artes da

guerra, as artes gráficas, entre outras. O Dicionário etimológico faz

remontar ao século xiii, a Afonso x o aparecimento da palavra na nossa língua, na frase: “Ca non a mais na arte de fader | do que nos liuros, que el tem, iaz…” (Machado 2003a, p. 323). No fundo são os

“conhecimentos mais ou menos rigorosos destinados a aplicação prática” (Academia das Ciências de Lisboa 2001, p.366).

A palavra Arte é particularmente importante para este estudo, pois é nossa firme convicção que aquilo que atualmente designa poderá englobar conceitos e objectos do passado que são úteis ao estudo do design de comunicação e à sua história. Se não a considerarmos podemos estar a colocar um filtro de exclusão que irá eliminar objectos que, eventualmente, fazem falta para compreender outras representações da cultura material e imaterial. A título de exemplo, não considerar a música ou a literatura, apenas porque o estudo está focado no design de comunicação e na produção de projectos de comunicação visual é, no mínimo, empobrecedor.

Arte deriva do latim ars que por sua vez é uma tradução da palavra

grega τέχνη (téknê). O significado original desta palavra era bas- tante distante daquele que tem hoje.

Graphein, é a palavra usada por Plínio e aquela que mais o intriga,

pois ela significa tanto ‘escrever’ como ‘pintar’. A palavra latina sobreviveu até ao renascimento com o significado de destreza:

La destreza que se requeria para construir un objeto, una casa, una estatua, un barco, el armazón de una cama, un recipiente, una pren- da de vestir, y además la destreza que se requeria para mandar tam- bién un ejército, para medir un campo, para dominar una audiencia.

19(Tatarkiewicz [1976], 2001, p. 39)

(na tradução inglesa feita por Dzieje Szesċiu Pojeċ a partir do original polaco, a palavra inglesa usada é skill; na tradução espanhola destreza, uma tradução que parece correcta, paralela a proficiência).

Even in the linguistic usage of the time, the designation arte is not understood as an art or even as fine art, but rather, simply as handicraft, manual skill, or special trade and trade organization (such as Arte della Lana, Arte della Seta, etc., as the guild names of wool workers and silk manufacturers, respectively). 20 (Wackernagel [1938] 1981)

Pedro Cortesão Monteiro, na sua tese de doutoramento sentiu igualmente necessidade de falar do sistema das artes para poder centrar-se no design. Ao reportar-se à Antiguidade na procura do sentido inicial do termo nota que as artes tinham um estatuto inferior ao dos ofícios:

Demonstrativo deste estatuto inferior é, entre outros, o facto de ne- nhuma destas actividades (Pintura, Escultura ou Arquitectura), ter uma musa. São actividades que dependem da prática e da repetição de acções, e não da inspiração divina, como a poesia, a música ou a dança. (Monteiro 2014, p. 37).

Uma leitura errada sobre a importância das escultura ou da pintura na Antiguidade pode ter sido impulsionada pelo valor extraor- dinário que as obras gregas e romanas vieram a ter mais tarde e a influência que exerceram. Tartarkiewicz continua:

Una destreza se basa en el conocimiento de unas reglas, y por tanto no existía ningún tipo de arte sin reglas, sin preceptos (…) De este modo, el concepto de regla se incorporó al concepto de arte, a su definición. Hacer algo que no se atuviera a unas reglas, algo que fuera sencillamente producto de la inspiración o de la fantasía, no se trataba de arte para los antiguos o para los escolásticos: se trataba de la antítesis del arte (…) 21(Tatarkiewicz, [1976] 2001, p. 39 — 40)

como pode ser lido nos escritos de Platão, Galeno, Ramus (no Rena- scimento) e ainda mais tarde por Goclenius (enciclopédia de 1607).

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tradução livre: a destreza necessária para construir um objeto, uma casa, uma estátua, um barco, armação de uma cama, um recipiente, uma vestimenta, bem como a destreza necessária para con- duzir um exército, para medir um campo, para convencer uma audiência.

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tradução livre: Mes- mo no significado usado na altura, a designação arte não é entendida como tal, nem sequer como belas-artes, mas simplesmente como uma habilidade manual, uma arte- sania, um comércio particular ou a organização comercial desse comércio (como a arte da lã, arte da seda, etc. que são os nomes das guildas dos trabalhadores de lã e dos fabricantes de seda, respec- tivamente.

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tradução livre: Uma destreza baseia-se no conhe- cimento de regras e portanto não existia nenhum tipo de arte sem regras (livre), sem preceitos (...). Deste modo, o conceito de regra incorporou o conceito original de arte (...) Fazer alguma coisa fora de um conjunto de regras, alguma coisa que fosse o resultado da inspiração ou da fantasia, não era arte para os antigos ou para os escolásticos: seria a antítese da arte.

“Aqui chegados é importante referir que no decorrer do século quinze e até ao século dezasseis, no contexto da vida económica, to- dos os ramos das belas-artes se mantém classificados como ofícios.”

22(Wackernagel [1938] 1981, p. 8)

e ainda

This shows clearly that all these applied arts (household, painted chests, wall tabernacles, furniture, figurally painted panelling, lar- ge-scale wall painting, woven Wall hangings, etc) are by no means regarded essentially as arts of the second rank. And this is also apparent in the participation of artists in decoration, apparatus, cos- tumes, and the like for festivities and processions, tournaments, the theater, etc 23(Wackernagel [1938] 1981, p. 11)

A primeira tentativa de reordenamento deste sistema de valores remonta à Idade Média:

Essa primeira divisão agrega, sob a designação de artes, actividades que a Antiguidade tinha consagrado como particularmente rele- vantes e que tinham ocupado os mais notáveis dos seus pensadores. Assim, num primeiro momento, continuavam excluídas do conjunto das disciplinas mais nobres aquelas que já haviam, àquela data, dado origem a algumas das mais notáveis produções humanas na Arqui- tectura, na Escultura ou na Literatura.”(…) (Perdurará) “durante quase toda a Idade Média, e que abrangia sete domínios organi- zados segundo dois grupos e assim ensinadas nas primeiras uni- versidades: o Trivium, que agregava as disciplinas ligadas à língua (Gramática, Retórica e Lógica) e o Quadrivium, que juntava as que se relacionavam com a matemática (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia/Astrologia). Hoje classificaríamos seis destas artes como sendo dos domínios das humanidades ou das ciências, apenas a mú- sica pertencendo ao domínio daquilo a que chamamos arte (mesmo se Música se referia essencialmente ao estudo da composição e har- monia — assim se relacionando com a geometria e a matemática.)” (Monteiro 2014, p. 38 — 39).

Todas as outras são artes mecânicas e foram sendo associadas de diversas maneiras, nunca se conseguindo a redução a sete, como foi feito nas suas irmãs liberais.

A palavra Arte tinha um espectro alargado e não estava adstrita às Belas-Artes, como hoje. A pintura era uma arte muito mais impor- tante do que a cestaria e o que estava em causa não eram apenas a destreza para a produção do artefacto mas o conhecimento pro- fundo das regras e técnicas sobre as quais assenta a proficiência do

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At this point, let it only be noted that all the branches of the fine arts through the fifteenth century and into the sixteenth remain classified in the general economic life as crafts.

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tradução livre: Fica assim claro que todas as artes apli- cadas ( pintura doméstica, pintura de baús, tabernáculos de parede, móveis, painéis de figura humana, frescos, tape- çarias, etc ) não são generi- camente consideradas como artes menores ou de segunda ordem. E esta conclusão fica reforçada pela participação de artistas na decoração de aparelhos, trajes, e afins para festas, procissões, torneios, teatro, etc .

artista (também estava em causa o esforço físico envolvido na razão inversa da importância da arte). Neste sentido, não só se considerava a pintura e a cestaria como artes (que mais tarde se dividiram em

maiores e menores, separando o grau de finura necessário para as

executar) como

También la gramática y la lógica en tanto en cuanto son conjuntos de reglas, tipos de habilidades. De este modo, el arte tuvo en un tiempo un campo mucho más amplio: era más amplio porque incluía no sólo los oficios manuales, sino también parte de las ciencias. 24

(Tatarkiewicz, [1976] 2001, p. 40).

Nas listagens das artes até à Idade Média, a pintura e a escultura não figuram como artes, nem mecânicas e muito menos liberais. Nas atividades que hoje incluiríamos sob o chapéu de artes só ocorria a música (porque se construiu como uma atividade teórica sobre a harmonia e a composição, muito próxima da poesia e da dança, manifestações que não dependiam da vontade de criar dos homens mas da vontade das Musas e, por isso, superiores) e o teatro (como arte mecânica, na classificação de Hugo de São Vítor (1096 — 1141), de acordo com o seu Didascalicon – no entanto, o conceito de teatro era muito diferente do actual (hoje pode fazer parte das actividades de entretenimento colectivo, como o circo, as competições desportivas entre outras). Para os Gregos, o poeta recebia por via divina as palavras que debitava. Daqui decorre o sentido ora profético da poesia e a possibilidade de exegese para o público que a escutava. A experiência do poeta, fruto da idade, da aquisição de novos conhecimentos e a destreza no cumprimento de preceitos não garantiam o aperfeiçoamento da sua actividade porque ficava como que anestesiado ou em transe para receber a inspiração das deusas.

E a pintura e a escultura? Eram certamente vistas como artes porque eram produto de uma destreza que se realizava segundo um grupo de regras ou preceitos. Não eram artes liberais porque exigiam algum esforço físico. A explicação para esta ausência é fácil de enquadrar:

Las clasificaciones de estas artes, limitadas de modo programático como estaban a siete, sólo se mencionarían las siete más importan- tes, y en lo referente a las artes mecánicas el test de importancia fue la utilidad, mientras que la utilidad de las artes visuales, de la pintura o de la escultura, era algo marginal. 25(Tatarkiewicz [1976]

2001, p. 43).

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tradução livre: também a gramática e a lógica porque são igualmente conjuntos de regras, tipos de habilidades. Deste modo, a arte tinha um campo muito mais amplo: mais amplo porque incluía não só os ofícios manuais como também as ciências.

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tradução livre: Estas classificações são limitadas porque foram programati- camente reduzidas a sete; assim só se mencionavam as mais importantes. Como já vimos, nas artes mecânicas, a importância está relacionada com a utilidade para a vida do homem; neste sentido a importância da pintura é algo marginal.

Uma das maiores fontes de reflexão sobre as artes liberais é a obra de Martianus Capella (séc. IV/V d.C.) Núpcias de Filologia e de Mercúrio

(De nuptiis Philologiae et Mercurii), uma tentativa (com o absurdo e

a impossibilidade que necessariamente acarretava) de resumir toda a cultura da sua época num livro (alegadamente para a explicar ao filho). A obra é uma paisagem mental de um homem culto do período epigo- nal do Império Romano e define como as sete artes liberais a gramática, a dialéctica (ou lógica), a retórica (o Trivium), a geometria, a aritmética, astronomia e a harmonia (música) (que constituíam o Quadrivium). Na Idade Média, as artes vulgares incluíam a vestiaria, a agri- cultura, a arquitectura, a guerra e a caça, mercatura (comércio), a coquinaria (culinária), a metallaria (de ferreiro a ourives). Esta classificação foi revista por Hugo de São Vitor no Didascalicon (Libri septem eruditiones didascaliae) e serviu como referência para a criação dos curricula das recém-abertas escolas catedráticas da Europa medieval. Neste tratado o comércio, a agricultura e a culinária são substituídas pela navegação, medicina e teatro, numa perspectiva de atividades que contribuem mais decisivamente para o bem comum. Ora foi precisamente com o Renascimento que estas concepções, que vieram da antiguidade e sobreviveram durante quase vinte séculos, se alteraram. E para que essa mudança pudesse ocorrer foi necessário que duas coisas se modificassem:

En primer lugar, los oficios y las ciencias tuvieron que eliminarse del ámbito del arte, e incluirse la poesía; y en segundo lugar, hubo que tomar conciencia de que lo que queda de las artes una vez purgados los oficios y las ciencias constituye una entidad coherente, una clase separada de destrezas, funciones y producciones humanas. 26

(Tatarkiewicz, [1976] 2001, p. 43)

A construção de um enquadramento mental para as actividades, acreditando que são diferentes e particulares é um trabalho social que tem que ser primeiramente instalado e posteriormente justificado. Para muitos dos lavrantes coimbrões a sua atividade nada diferia da do seu vizinho, tecelão ou correeiro. O conceito de arte, o esta- tuto de artista, era algo que não cabia nos seus quadros mentais. Só o Renascimento alterou este estado de coisas. Citando – tradu- zindo – Jean Gimpel (Les Batisseurs de Cathédrales) diremos que

também os intelectuais medievais nunca se exprimem nas suas obras sobre questões de estética. Se tratam o que nós hoje chamamos Arte, fazem-no do ponto de vista teológico ou filosófico. Não se co-

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tradução livre: em primeiro lugar os ofícios e as ciências tiveram que sair do âmbito da arte e a poesia teve que ser incluída e em segundo lugar foi necessário criar a consciência do que o que sobrava – depois de purgado dos ofícios e das ciências – constitui uma classe separada de destrezas, funções e pro- duções humanas.

nhecem escritos em que os intelectuais medievos tratam os esculto- res como artistas. (Dias 1979, p. 121 — 122)

(Re)classificar a poesia no sistema das artes não foi difícil, pois já tinha sido proposto por Aristóteles (a Poética foi publicada no início do século XVI em Itália, o que teve, seguramente, muita importân- cia por diversas razões e, em particular, para a revisão do sistema das artes). A separação das belas-artes foi impulsionada por uma nova sociedade que tem novas necessidades de comunicação (a abordar no próximo capítulo), a par de uma consciência profissional por parte dos criadores, suscitando o desejo de ascenção social. A interiorização de que a sua capacidade artística atingiu patamares de excelência sem precedentes (nem sequer comparáveis aos que já tinham sido alcançados em grandes obras da Antiguidade), a necessidade de diferenciação (entre famílias poderosas) ou de promoção (sobretudo daquelas famílias sem nobilitação e que atingiam o poder pela força das armas), a constituição progressiva de um corpo de saberes autónomo (a perspectiva, por exemplo), a necessidade de produzir bens passíveis de ser transaccionáveis (e.g. trabalhos que não ficam dependentes da arquitectura), a valoriza- ção e o reconhecimento de um cânone de beleza cujos modelos se encontram em obras romanas (originais ou cópias de obras gregas), a consciência de um tempo novo, que não é só de renascimento artístico mas também de renascimento do homem, a existência de encomendadores e de artistas, por um lado, e de quem é capaz de executar bem (i.e. mão-de-obra qualificada, como diríamos hoje) constituem alguns dos aspectos fundamentais para que se tenha operado o divórcio entre as belas-artes e as outras artes. Porém a separação entre belas-artes e ciência não foi fácil, precisa- mente porque os pintores reclamavam para a sua destreza uma série de saberes científicos que passavam pela química (dos pigmentos para fabricar as cores) até à perspectiva, mas também pela capaci- dade de representar o real para efeitos de estudo (o desenho teve essa função, de meio para atingir um conhecimento). “Enfrentando a opção de serem tratados como artesãos ou como eruditos, esco- lheram a segunda pois a situação social dos eruditos era incompa- ravelmente superior” 27(Tatarkiewicz [1976] 2001, p.44). Ainda porque a

representação estava adstrita a uma série de leis e de regras que têm como expoente máximo a De Divina Proportione de Luca Pacioli em 1497. Piero della Francesca tinha escrito De perspectiva Pingendi (circa 1487) e Leonardo é a melhor imagem deste espírito que per- manentemente questiona a natureza na procura das leis universais da perfeição. Da Pintura Antiga (1548 — 49) de Francisco de Hollanda é

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Enfrentados a la opción de que se les tratara como artesanos o como eruditos, eligieron la segunda opción pues la situación social de los eruditos era incomparable- mente superior.

um outro exemplo nacional deste esforço teórico de elevação social e intelectual dos fazedores de comunicação visual que viviam em con- dições de paridade com a população. Num texto de 1447, refere-se assim o autor a Gil Eanes e a Afonso Martins:

...He estam em o dicto lagar Gill Eannes e Afom Martins pyntores que pintam em o dicto lagar santos e os fazem de novo e ainda dizem que pintam hy estando hua gayolla da cidade e inda see em o dicto lagar....cubeta vazia e he esta...hua cama levantada em que dormem os pintores e hua messa alevantada em que comem e honde fazem o fogo e inda dentro da dicta cassa logar pera estar hua besta e palheiro pera ele he estavam em o dicto (‘lagar’) alguns santos pintados e deles por pintar.

Note-se que Gil Eannes e Afom[so] Martins não produziam escul- tura como a entendemos hoje: executavam pintura e carpintaria. A

gaiola que o texto refere é o andor da procissão de Corpus Cristi,

que seria feito em madeira (Dias 1979, p. 124). Como se lê, viviam

humildemente, instalados num lagar, em condições similares à do lavrador. Muito diferente da idealização romântica do contexto de trabalho dos artistas do Renascimento.

No seu estudo sobre a arte florentina no Renascimento, Wackernagel

([1938] 1981) começa por criar um vestíbulo para deixarmos os nossos

No documento Criação livre e criação dedicada (páginas 70-86)