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A NECESSIDADE DE COMUNICAR VISUALMENTE

No documento Criação livre e criação dedicada (páginas 86-90)

Vivemos num mundo eminentemente visual. A visão ocupa 30% da actividade do nosso cérebro (3% para a audição e 8% para o tacto) e domina o modo como nos relacionamos com o mundo, permitindo até a alguns conduzir um carro a mais de 200Km/h. Os outros sentidos adicionam matizes expressivas à vida e têm uma muito maior capacidade de memorização, sobretudo num tempo em que a memória se associa à afectividade: lembramo-nos do cheiro do armário de casa da nossa avó e do sabor das batatas fritas que comíamos na praia na infância. Porém, a enorme quantidade de in- formação visual que o cérebro recebe e processa, parte significativa sem estabelecer elos de sentido com a nossa experiência, faz com que seja menos fácil de registar (felizmente, o esquecimento é uma das funções essenciais da memória, mesmo de um adulto saudável). É hoje muito difícil – senão impossível – reconstituir o modo de funcionamento do cérebro dos primeiros hominídios quando tentavam comunicar entre si. O progressivo domínio do aparelho vocal permitiu iniciar um processo de atribuir sons a fenómenos, acções, situações, animais, etc. A necessidade de partilhar infor- mação para sobreviver fez com que se usassem todos os recursos disponíveis para comunicar. As primeiras histórias contadas ficaram na memória dos que as contaram e ouviram e sabemos hoje que este método é o mais eficiente para a construção do que designamos de memória colectiva:

From documented oral traditions in Australia, the Balkans and other parts of the world we know that specialized storytellers and poets can recite from memory literally thousands of lines, in verse or prose, verbatim – word of mouth. 33(Spivey 2005, p. 85).

Para este autor, a produção de imagens é paralela aos bastões de memória polinésios em que uma série de nós e de incisões ajudam o contador a lembrar-se das etapas sucessivas da recitação. Assim, da portabilidade dos papiros ou dos rolos dos índios norte-ame- ricanos Ojibway, passámos para as representações permanentes, respondendo à vontade de fixar informação, não deixando que ela se adultere ou perca fruto de passagens sucessivas. A ideia de eternizar uma pessoa, factos ou de estabelecer ligações com a terra

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tradução livre: Das tradições orais australianas que estão documentadas, das dos balcans e das de outras partes do mundo em que elementos das comunida- des se especializaram como contadores de histórias ou poetas, verificamos que con- seguem recitar de memória – literalmente – milhares de linhas, em verso ou em prosa, verbatim – que são passadas de boca em boca.

e com o cosmos, através de registos, responde a uma forma de ser- mos humanos: necessitamos do (nosso) passado para achar o nosso lugar no mundo e a nossa razão de existir. As imagens seriam uma continuação do propósito descrito por Aristóteles na Poética, quan- do a forma da narrativa suspende a descrença. Para Spivey (2005),

o desejo de fixar a história é o fio que une as imagens aborígenes australianas de Oenpelli fig. 10 e a Tapeçaria de Bayeux fig. 11.

FIG 10

PINTURAS NA PEDRA DE ABORÍGENES DE OENPELLI

Fonte: wikipedia.org/wiki/American-Australian_Scientific_Expedition_to_Ar- nhem_Land

FIG 11

A TAPEÇARIA DE BAYEUX

é uma obra com 70 metros, datada do século xi, que narra os eventos da conquista de Inglaterra pelo rei Normando Guilherme ii (14 de Outubro de 1066)

Fonte: bayeuxmuseum.com

Seja para fins mnemónicos, ritualísticos, pedagógicos, de marcação de território ou outros que não conseguimos agora imaginar (nem conhecer), os primeiros registos visuais fizeram parte de um proces- so de comunicação (visual). A vontade de comunicar – com os deu- ses, com os companheiros, com outros animais, ou outra dimensão temporal – levou a adicionar elementos visuais à voz, aos gestos, às expressões – neste esforço conjunto de produzir comunicação. Rapidamente percebemos que a comunicação visual tinha particu- laridades mágicas, pois permitia trazer ao cérebro uma imagem, i.e., a presença de uma realidade ausente, tornando-a real. Por não ter de passar pelo filtro das emoções e dos sentimentos (pela expressi- vidade individual), as imagens poderão ter sido consideradas como o registo mais eficaz para registar uma história, um acontecimento, uma pessoa, sem ter de passar por códigos escritos ou orais, sendo assim muito mais acessíveis (não necessitavam da aprendizagem de um código) nem de amplificadores (porque chegavam a muito mais gente do que a voz).

Com as primeiras civilizações – Egipto, Mesoptâmia, Assíria, Pérsia – o papel da imagem foi determinante na exibição de poder, de ri- queza e de grandes feitos. Teve, também, um papel essencial na hu-

manização do sagrado, trazendo até nós narrativas construídas para explicar o mistério da vida. Alguns especializam-se na produção des- tas formas de comunicação, desenvolvendo capacidades notáveis no trabalho de pedra, no corte e manuseamento de tesselæ para a execu- ção de revestimentos em mosaico, na pintura a fresco, na cinzelagem de metais, entre muitos outros. A especialização correspondeu a um impulso natural das sociedades que respondeu não só à procura de obras cada vez mais depuradas, como também às exigências inerentes da crescente complexidade dos processos produtivos (i.e. para operar com destreza e eficiência materiais e tecnologias). Por isso, a especia- lização residiu não só na aprendizagem de técnicas de representação, mas também nas de fixação dessas imagens em diferentes materiais. Assim, a complexidade dos modos de vida em sociedade possibi- litou a especialização de algumas artes (mecânicas) – correeiros, fundidores, ferradores, caçadores, pescadores, tecelões, cesteiros, ceramistas – fazendo com que estes especialistas pudessem, também eles, complexificar os produtos da sua actividade. A sociedade deixou de se movimentar em conjunto para a caça, para a festa, para as re- feições, para o culto e para a construção e passou a adjudicar saberes específicos a pessoas que — por via dessa especialização — eram capazes de os executar melhor.

Para sobreviver, estes fabricantes precisavam de trocar o produto do seu trabalho, por outros produtos ou por moeda. A troca fazia-se, preferencialmente, em feiras, nas oficinas dos diversos mesteres, nas ruas ou à porta de casa dos compradores.

As praças mercantis são os motores decisivos da vida económica: quebram a hostilidade do espaço, lançam as grandes circulações que, à velocidade permitida pela época, triunfam custe o que cus- tar sobre as distâncias. Outras actividades se coligam às suas, em primeiro lugar a das feiras, de que convém falar como se se tratasse ainda de cidades, de praças mercantis temporárias, muito diferentes entre si, à imagem das próprias cidades, umas medíocres, outras médias, algumas excepcionais, passando então de feiras de merca- dorias para as feiras de câmbio. (Braudel [1966] 1983, p. 425)

Entretanto, aparece um novo tipo de necessidade, vender o que (ainda) não está fabricado. Surge a ideia de adiantar: “Adiantar a matéria-prima, adiantar o dinheiro dos salários” (Braudel [1966] 1983, p. 477)

Assim, num primeiro momento, o comprador apenas adquiria o que estava produzido; com o crescimento e a intensificação do comércio no Mediterrâneo foi possível fazer sentir ao produtor a necessidade

de fabricar mais do que podia escoar num dado momento, prevendo flutuações na oferta e na procura (e possíveis ganhos inesperados), integrar diferenças (mais ou menos subtis) na produção para a distinguir do que estava disponível para vender nas oficinas con- correntes, fabricar de acordo com os desejos de um determinado cliente.

A partir de 1520 — 1540 houve um desenvolvimento decisivo das indústrias urbanas do Mediterrânico: um segundo sopro do capita- lismo que interessa simultaneamente ao Mediterrânico e à Europa. A primeira ‘revolução industrial’ (Braudel [1966] 1983, p. 476)

Foi também possível, através da separação entre a comercialização e a distribuição promover o enriquecimento de mercadores que investiam na compra de produto com a expectativa de conseguir colocá-lo nos diversos mercados nos quais se movimentava. Foi assim possível encontrar muita cerâmica fina das oficinas atenienses na orla norte e sul do Mediterrâneo. O acesso ao produto criou a necessidade de o consumir, i.e. a relação entre produto e mercado torna-se objecto de especialização e de profissionalização, gerando riqueza e estimulando a pirataria (e depois o seu sucedâneo, o corso, patrocinado por alguns estados, como a Inglaterra). Foi a pirataria no Mediterrâneo que tornou cada vez mais caros certos produtos, transformando-os em objectos de desejo.

Depois da tomada de Ceuta, que lhes abriu completamente a porta do Mediterrâneo, os barcos portugueses tornaram-se tão numerosos e em breve tão activos como os biscainhos. Antes mesmo que aí che- guem as suas armadas, os seus navios mercantes oferecem os seus serviços e os seus corsários impõem os seus. (Braudel [1966] 1983, p. 660)

Começaram a misturar-se, de modo progressivo e mais complexo, o valor material da coisa (o valor da matéria-prima), o valor produ- tivo da coisa (que inclui as particularidades do produtor) e o valor simbólico da coisa (que a situa num articulado de bens de uma sociedade). “Consumption was a reality well before the industrial and commercial revolution that began in the eighteenth century” 34

(Roche [1997] 2000, p. 16). O caminho até à actualidade (em que há um

valor para a água e para o ar que respiramos) foi longo.

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tradução livre: o consu- mo era uma realidade muito antes da revolução industrial e comercial que começou no século XVIII.

O QUE É UMA ENCOMENDA DE

No documento Criação livre e criação dedicada (páginas 86-90)