CAPÍTULO IV: A EXPERIÊNCIA DA UNIÃO EUROPÉIA
2. COMPREENDENDO A CEE
3.1. As condições para integrar o sistema de moeda única
A adoção da moeda única foi condicionada a que o Estado- membro sinalizasse, com providências efetivas, a adoção de um caminho economicamente convergente para os interesses da Comunidade Econômica Européia.
Foram estabelecidos os seguintes critérios de convergência116:
1. deveria ser evitados os déficits públicos excessivos, admitindo-se o índice máximo de 3% do Produto Interno Bruto para o déficit público anual e 60% do Produto Interno Bruto para o endividamento público;
116 Pedro Valls Feu Rosa. União econômica e monetária – a adoção de uma moeda única. In: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (coord.). Direito comunitário e jurisdição supranacional – o papel do
2. a inflação não poderia ser superior a 1,5% em relação às três melhores performances nacionais da União, no ano de referência;
3. a moeda deveria ter respeitado, por pelo menos dois anos, as margens normais de flutuação do Sistema Monetário Europeu;
4. as taxas de juros a longo prazo não deveriam ultrapassar 2% da média dos três Estados-membros que tivessem os menores índices da União Européia.
Os técnicos da União Européia negaram o rigor dos critérios de convergência acima referidos, que seriam, a seu ver, apenas realistas. Segundo a doutrina, “o objetivo fundamental desse pacto é dar ao euro status
de moeda forte, capaz de competir com o dólar americano e o iene japonês no mercado internacional.” 117
Os ajustes eram tidos por necessários e passavam por corte de benefícios sociais e aumento da carga tributária. A dificuldade de cumpri-los pode ser vista pelos dados relativos ao ano de 1997, sintetizados no Anexo I.
Pedro Valls Feu Rosa118 comenta a fixação desses critérios de convergência:
“Em verdade, e vistos estes índices, constata-se que o caminho apontado pela União Européia é a solução para o desenvolvimento econômico dito saudável, o qual, em última análise, será elemento valioso de combate ao desemprego, o mais grave problema da União Monetária no momento. E, a propósito, acentuam os economistas da União Européia que o combate ao desemprego com o agravamento dos déficits públicos não é medida recomendável, considerado mesmo um prazo médio. Exemplificam a tese com o caso da Dinamarca, Estado-Membro onde o índice de desemprego é mínimo, fruto de economia desenvolvida sobre bases sólidas, e sem excessiva interferência do Estado (leia-se endividamento).”
As pressões, porém, contra a adoção da moeda única não foram poucas. A população dos Estados-membros via a argumentação dada pelos técnicos da União Européia como mera tentativa de legitimar a adoção de medidas recessivas e impopulares com vistas a cumprir os critérios de convergência, para viabilizar as mudanças necessárias na velha Europa. O ressentimento da população foi bem expressado pela imprensa da época 119:
“Cerca de dois terços da população mundial ganharam pouca ou nenhuma vantagem com o rápido crescimento econômico. No mundo desenvolvido, o mais baixo quartil de assalariados testemunhou mais um respingar para cima que um respingar para baixo.”
As dificuldades para a implantação da moeda única linhas atrás demonstradas motivaram discussões no âmbito do Conselho Europeu, que terminou por estabelecer os seguintes princípios norteadores do sistema:
a) os Estados-membros que ingressassem no sistema posteriormente à data prevista deveriam sujeitar-se às mesmas exigências impostas aos demais;
b) o sistema de moeda única deveria oferecer uma solidariedade monetária ativa;
c) o sistema deveria ser flexível a ponto de permitir redução nos níveis dos critérios antes estabelecidos, especialmente em face da perspectiva futura de ampliação da União Européia;
d) a estabilidade dos preços não poderia ser ameaçada pelo funcionamento do sistema.
Em 1º de janeiro de 1999 foi iniciado o processo final de lançamento da moeda única para os Estados-membros que satisfizeram esses
119 Editorial do Financial Times de 24.12.1993, invocado por Pedro Valls Feu Rosa em União econômica e
critérios econômicos de convergência, com a entrada em vigor das medidas a seguir:
1. a fixação, de maneira irrevogável, das taxas de conversão das moedas dos Estados-membros participantes do sistema;
2. a definição e execução, pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais120, de política monetária única, cujas operações monetárias e de câmbio passariam a ser feitas em EUROS;
3. a conversão em EUROS dos débitos públicos dos Estados-membros participantes do sistema de moeda única;
4. a utilização do EURO pelos mercados financeiros.
Já competia e continuaria competindo ao Conselho da União Européia a coordenação das políticas econômicas dos quinze Estados- membros, definindo e adotando as grandes orientações da política econômica, tais quais objetivos comuns para a inflação, finanças públicas e estabilidade das taxas de câmbio. O Conselho também analisa os déficits das finanças públicas dos Estados-membros, dirigindo recomendações – e, a partir de
1999, sanções - àqueles que contenham níveis considerados excessivos. Tem, outrossim, a responsabilidade pela política externa de câmbio do EURO, reservada, não obstante, ao Banco Central Europeu as intervenções diretas no mercado de câmbio e a gestão cotidiana da reserva de divisas.
Este último órgão, como condutor da política monetária, tem por primeira missão garantir a estabilidade dos preços e forma, juntamente com os Bancos Centrais Nacionais, o Sistema Europeu de Bancos Centrais, a quem cabe:
1. definir e executar a política monetária da União;
2. conduzir as operações de câmbio, de acordo com as orientações do Conselho de Ministros; e
3. guardar e gerir as reservas oficiais de câmbio dos participantes do sistema de moeda única.
Dessas poucas linhas se constata que a implantação de uma moeda única apresenta-se como processo complexo e longo, que exige cautelas, sob pena de comprometer a estabilidade e a segurança jurídica na
região abrangida. Ilustrativa neste sentido é a cronologia da implantação do EURO trazida no Anexo II.
Paulo de Pitta Cunha121 discorre sobre as fases estabelecidas para a implantação da moeda única e vislumbra essa atitude como imperativo econômico, ligado à operacionalidade do mercado interno, livre de obstáculos entre os países componentes da União Européia. A moeda única, assim, seria complemento lógico e natural desse mercado, num cenário em que
“... a soberania monetária já não existia na prática, a não ser no país que definia as políticas e que os outros tinham de acompanhar, quisessem ou não – a Alemanha. Ora, perdida a soberania monetária, porque dentro do mercado unificado não podia haver políticas monetárias independentes, estaria aberto o caminho para a moeda única. A França, em particular, preferia partilhar a soberania monetária no âmbito de um sistema de Banco Central Europeu, em que tivesse assento próprio, a deixar que a Alemanha mantivesse a sua posição hegemônica.
A Alemanha estava muito interessada em que se evoluísse para a união política européia, e via na união monetária um catalisador do acesso aos extractos superiores da integração. Mas, sabendo que ia abandonar a sua posição determinante e sacrificar a sua moeda, pôs como condição que no ingresso na união monetária se observassem os mesmos critérios de rigor por que se pautava a sua conduta no plano monetário.
Por seu turno, a Inglaterra deu a sua aprovação ao esquema geral de Maastrich, em contrapartida da opção, que lhe foi dada, de não entrar para a UEM.”
participantes e pelo Banco Central Europeu.
121 O Euro. In: Direito da integração – estudos em homenagem a Welter R. Faria. Curitiba: Juruá, v. 2, p. 296-297.
Como se vê, a aceitação, pelos Estados-membros, da moeda única teve motivação não só econômica, mas também política. Melhor dizendo, a postura dos Estados-membros, cada qual defendendo seus próprios interesses, denota, em nosso sentir, mais a defesa do exercício do poder soberano do que a abdicação de parcela de soberania ou a preocupação com o isolacionismo econômico.
Os dados trazidos por Paulo de Pitta e Cunha122 parecem endossar nosso entendimento:
“... uma vantagem tão apregoada da moeda única – a capacidade de vir a ombrear com o dólar como grande moeda internacional de reserva e de transação – está pelo menos adiada. O euro tem apoio na dimensão e na solidez das economias dos países participantes na união monetária, o que lhe abre caminho para uma grande presença internacional. Mas, no contexto actual da UEM, não é de surpreender que os mercados hesitem em considerar que a nova moeda tem por trás de si uma política econômica e monetária unificada e coerente. É que, contrariamente ao dólar, a unificação apenas se processa sob o ângulo da política monetária, não sob o da política econômica. Por detrás do euro perfila- se a tensão entre muitas economias nacionais, com os riscos de se entrechocarem as respectivas políticas econômicas, podendo ser afectada a estabilidade da moeda européia.”