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1. DIVISÃO DO TRABALHO, SOLIDARIEDADE SOCIAL E A FORMAÇÃO DO

1.3 A solidariedade social e a formação do direito

1.3.4 As falsas classificações do Direito

Como dito, o direito é a expressão mais clara da solidariedade social. Nele se materializam as relações naturais e espontâneas entre indivíduos ou grupos sociais. Por conseguinte, haverá tantos tipos de direitos quantos forem as espécies de relações sociais. Desta afirmação de Durkheim pode-se algumas das classificações jurídicas mais tradicionais.

Em primeiro lugar, aquela que divide o direito entre público e privado, o primeiro destinado a reger as relações internas do Estado e demais entes públicos bem como destes com a sociedade, e o segundo dirigido a regular as relações entre entes privados. Tal classificação, embora possua inegável valor didático nas cátedras acadêmicas e na linguagem jurídica, não corresponde fielmente ao que lhe origina. Na verdade, “todo direito é privado no sentido de que são sempre [...] indivíduos que se encontram em presença e que agem”.49 Mas também “todo direito é público no sentido

de que o direito é uma função social e de que todos os indivíduos são [...] funcionários da sociedade”.50

49 DURKHEIM, 2004, p. 36. 50

Há ainda a distinção usual entre direito subjetivo e objetivo. Em geral, entende-se pelo primeiro um direito individual, absoluto, resquício de uma concepção individualista e liberal. É um direito que independe de qualquer referência a uma sociedade para existir, pois sua existência liga-se apenas ao indivíduo.51 Por meio dele o seu titular impõe sua própria personalidade aos outros. Quanto à sociedade e aos demais membros que a compõem, cabe-lhes apenas um dever negativo, o de não praticar qualquer ato que atente contra aquele direito.

Pois bem, conclui-se que, segundo as bases aqui propostas, não há e nem poderia haver qualquer espécie de direito subjetivo. Pois a idéia de que o indivíduo possui o poder de impor aos outros um dever, pelo simples fato de ser um indivíduo, não possui fundamento algum. Porque o direito só pode decorrer de uma relação social e nunca de um indivíduo isolado, portanto, ele não pode existir sob a titularidade de alguém sem que haja necessariamente uma espécie de reconhecimento ou atribuição por parte de outrem. O direito de uma pessoa não independente dos direitos dos demais membros de uma sociedade. Pelo contrário, seu surgimento dá-se a partir de um conjunto de relações contínuas e intensas, pressupondo sempre a participação de dois ou mais indivíduos para seu advento.

Nas palavras de Duguit “os homens, pelo simples fato de fazer parte de um grupo social e também de toda humanidade, estão sujeitos a uma regra de conduta que a eles se impõe”.52 Todo direito atribuído a alguém não subsiste senão porque este alguém se insere em um meio social. Pois viver em sociedade é viver sob a disciplina de uma

51DUGUIT, Leon. Il diritto sociale, il diritto individuale e la transformazione dello Stato. Paris, 1908. Trad. di L. Bagolini. IN: BARBERA, Augusto; FARALLI, Carla; PANARARI, Massimiliano. Léon Duguit. Le

transformazioni dello Stato: Antologia di scritti. Torino: Giuappichelli, 2003. p. 94. Este autor

menciona na verdade as duas principais vertentes do direito subjetivo ao longo da história. O primeiro, o direito de imperium, ou direito do poder público, que consiste no direito subjetivo relegado ao Estado, de comandar, de impor a sua vontade à coletividade. O segundo, o direito de dominium ou direito de propriedade, que é a faculdade do proprietário de dispor livremente de uma determinada quantidade de riqueza e de impor a qualquer um o respeito a essa prerrogativa. Para ele, ambas as construções foram construídos sobre a noção teológica ou metafísica de um direito a priori, fundamentado no direito divino dos reis, na soberania do povo ou na razão humana. Sobre isso veja-se especificamente DUGUIT, 1908, p. 95-110.

52 Tradução livre de “[...] che gli uomini, per il fatto stesso de far parte de um grupo sociale e anche dell’intera umanità, sono sottoposti ad una regola de contta che loro s’impone”. DUGUIT, 1908, p.96.

norma social, que é imposta a todos. Decorre daí que o direito não existe no ou para o indivíduo, mas somente nas relações que estes mantêm entre si e para a manutenção da harmonia social.

Paolo Grossi traduz muito bem esta idéia desmistificando, por exemplo, a idéia de liberdade como direito subjetivo. Para ele, “[...] a autêntica liberdade consiste somente na relação harmônica e respeitosa entre minha liberdade e a do outro. Por ser dimensão da sociabilidade, não encontra na solidão seu terreno por excelência”.53 E o mesmo se dá com o direito a propriedade. Talvez considerado o direito subjetivo por excelência, a verdade é que encontra seus limites na função social que lhe é atinente. Ao indivíduo só lhe é atribuído uma espécie de titularidade mediata deste direito, para que desempenhe a função que lhe atribuída numa determinada sociedade.54

Não se pode, portanto, falar em direito à propriedade ou à liberdade, direitos subjetivos por excelência, quando se existe apenas um indivíduo isolado do mundo; ninguém é considerado livre ou proprietário senão por referência a outros indivíduos. Todo direito só encontra seu terreno na objetividade de uma relação social, jamais num indivíduo isolado do resto do mundo.55

53 GROSSI, Paolo. As Muitas Vidas do Jacobinismo Jurídico (ou seja: a “Carta de Nice”, o Projeto

de “Constituição Européia e as satisfações de um historiador do direito). Texto publicado em

conferência publicada em Rimini “Meeting per l´amicizia tra i popoli”, 2003. Trad. de Arno Dal Ri Junior, p. 16.

54Veja-se direitos subjetivos e sua função social veja-se Duguit, DUGUIT, Léon. Il Diritto Soggettivo e La Funzione Sociale. Paris, 1912. Trad. di M. Panarari. IN: BARBERA, Augusto; FARALLI, Carla; PANARARI, Massimiliano. Léon Duguit. Le transformazioni dello Stato: Antologia di scritti. Torino: Giuappichelli, 2003. p. 120.

55 Frise-se aqui um tênue distanciamento entre o pensamento de Dukheim e Duguit. Para o primeiro, concebia-se, por exemplo, a existência dos chamados “direitos reais”, que nada mais são do que a expressão do direito subjetivo atinente ao direito de propriedade. Todavia, mesmo os direitos reais, por se tratar de um liame entre um indivíduo e uma coisa, não teria, para Durkheim, como efeito, a criação da solidariedade social, porque impõe apenas um dever negativo aos demais integrantes da sociedade, o dever de se abster de atentar contra aquele direito o que implica numa simples omissão. Os direitos reais se limitam apenas a criar o que ele chama de solidariedade negativa. Ao contrário, nos assim chamados “direitos pessoais” a solidariedade social estaria presente pois neste caso impõe-se as duas partes da relação obrigações e direitos recíprocos, reafirmando o laço de interdependência entre elas. Já para Duguit, ao contrário, mesmo os direitos reais, sendo uma categoria de direito subjetivo, só existem na medida em que a sociedade os reconhece como fruto das relações sociais, ou enquanto o indivíduo dele

Finalmente, uma terceira crítica que pode ser inferida desta doutrina diz respeito a diferenciação doutrinário do mesmo entre “nacional” e “internacional” usualmente feita pela corrente “dualista” de doutrinadores de direito internacional, que dividem o fenômeno jurídico em duas ordens independentes, uma voltada para a regulamentação das relações internas da sociedade e outra dirigida para regular as relações entre os Estados no âmbito internacional.

O direito, seja ele nacional ou internacional, não é o resultado de uma vontade estatal, mas da constância e perenidade das relações sociais marcadas por necessidades objetivas de interdependência. Neste caso, o Estado ou a suposta “vontade popular” são meras ficções. Se o direito emerge daquelas situações, seu fundamento é sempre o mesmo e, portanto, não faz sentido diferenciá-lo segundo o plano das relações que rege (se internacional ou nacional). Trata-se de uma concepção “monista” do direito.56