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3. O ESTADO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

3.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Apurada no tópico anterior a necessidade de outras alternativas para além do capitalismo ou socialismo, e isto não quer dizer que o confronto não exista, mas que a predominância de um dos lados não tem se mostrado socialmente justa e produtiva. Existe uma clara tensão característica da democracia capitalista na separação entre o mando político e econômico288, que deve ser enfrentada na busca de um novo modelo. Da premissa de que essa busca deve ter como base uma diretiva constitucional democrática, tomando a igualdade como objetivo primário, e de que a elaboração do planejamento e sua execução estão a cargo do Estado, a execução das políticas públicas envolve uma reestruturação da Administração Pública.

A considerar o já apontado histórico do “problema político de apropriação privada do Estado brasileiro, de uso privado da estrutura administrativa estatal, herança do passado colonial e escravista”289, a tarefa de reestruturação do direito administrativo torna-se bastante complexa. Daí a preocupação que se apresenta, de acordo com Maria Paula Dallari Bucci, “conhecendo-se o fato de que os fatores políticos podem limitar ou comprometer o sucesso das instituições jurídicas, como inverter a questão e investigar se a ordenação mais adequada do direito administrativo pode contribuir, e de que modo, para a efetividade democrática das políticas públicas?”290.

A proposta da reformulação do direito administrativo, de Bucci, procura contemplar essa questão. Para tanto, levanta os principais problemas na tradicional abordagem da matéria, resumindo-os em cinco contradições do Direito Administrativo Brasileiro, que, esquematicamente, são:

288 HELLER, H. Teoria do Estado, p. 171.

289 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 31.

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Primeira: Organização do poder X Contenção do poder291. Esta é a principal contradição que remonta às origens da organização do Estado, de como ele organiza seu poder em confronto com a liberdade individual. Esta contradição passa pela justificativa do paradigma burocrático:

Diga-se, aliás, que as considerações de Max Weber sobre a relação entre a burocracia e o governo são compreensíveis no cenário da Alemanha pós- Bismarck, em que o Parlamento e o Governo tentam recuperar as atribuições políticas que haviam sido apropriadas pela burocracia todo- poderosa, o que demonstra como, de fato, a existência de uma racionalidade burocrática não elimina o peso político da corporação administrativa. O problema central da burocracia, para Weber, não é organizacional ou administrativo, é político: “antes de mais nada, burocracia é poder”.292

E pela ineficácia da contenção do poder:

Na verdade, a sucessão de reformas administrativas pode ser considerada um único movimento contínuo, de sucessivas ondas, cuja justificativa é a superação do patrimonialismo, mas que não se aprofunda além das questões de gestão, não tocando os problemas políticos de fundo, que sustentam a permanência da dominação privada dos meios estatais, sob as formas do populismo, do clientelismo, e do fisiologismo. Os recentes dados econômicos, especialmente quando demonstram o aprofundamento das desigualdades sociais, revelam as formas mais sofisticadas que revestem atualmente esse fenômeno: as privatizações, os subsídios estatais, os programas de estabilização que mantêm a mesma linha de beneficiar grupos privados em detrimento da coletividade.293

A autora também lembra um dos principais pontos frágeis dos países subdesenvolvidos:

Na América Latina, as jovens democracias têm de desenvolver ao mesmo tempo a cultura administrativa gerencial e o Estado de direito.

[...]

Esta advertência é muito oportuna, porque ressalta um dos aspectos que se quer frisar neste trabalho, o de que as estruturas institucionais do Estado e da Administração Pública têm de corresponder ao amadurecimento da cultura política e social de um povo em determinado momento de sua história. Não há eficiência em abstrato, assim como não há boa gestão ou gerenciamento em abstrato. A boa gestão há de corresponder à medida do entrelaçamento entre Estado e sociedade. No âmbito do direito administrativo, a sua eficácia há de resultar do equilíbrio entre as funções garantística e organizativa.294

291 BUCCI, M. P. D. Direito Administrativo e Políticas Públicas, p. 98 et seq. 292 Ibid., p. 105.

293 Ibid., p. 111. 294 Ibid., p. 114.

Segunda: Igualdade perante a lei X Prerrogativas da Administração295. Mostra a

diferença marcante entre o modelo francês e o inglês. A autora conclui que , diante da igualdade perante a lei, a exceção deveria recair apenas nas funções especiais da Administração Pública, mas, ainda assim, não deveria ser utilizado o termo prerrogativa, pois continua carregado da acepção de privilégio.

Terceira: Princípio da legalidade X Origem pretoriana296. O modelo francês é resultado de um amadurecimento a partir da jurisprudência que lá foi se formando, ao passo que importamos o modelo pronto e acabado, sem refletir a experiência local.

Quarta: O princípio da eficiência X Responsabilidade civil do Estado297. O princípio

da eficiência serve de suposta justificativa para desviar-se da lei, e, ao mesmo tempo, a responsabilidade civil do Estado interessa apenas a poucos, que sabem como se aproveitar da irracionalidade administrativa .

Quinta: Regime de direito administrativo X Unidade de jurisdição298. O Brasil

importou o modelo francês sem o seu cerne, o contencioso administrativo .

Constatada a necessidade de uma mudança significativa do direito administrativo, a proposta de Maria Paula é:

A rearticulação do direito público (e não mais do direito administrativo, isoladamente) em torno da idéia de política pública. Mais do que uma alteração nas estruturas jurídicas, sugere-se uma nova percepção dos fenômenos jurídicos e sua interação com o contexto social. Para isso é necessário ensaiar também uma conceituação jurídica de política pública, de tal forma que haja uma aproximação entre as noções de direito público e política pública.299

Trata-se de uma proposta de mudança significativa e necessária. Todavia, carrega o mesmo risco apontado por Bercovici sobre a Constituição Dirigente: o

295 BUCCI, M. P. D. Direito Administrativo e Políticas Públicas, p. 118 et seq. 296 Ibid., p. 144 et seq.

297 Ibid., p. 176 et seq. 298 Ibid., p. 237. 299 Ibid., p. 250.

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instrumentalismo jurídico e o conseqüente enfraquecimento da necessidade de enfrentamento da questão política e estatal, pois toda a problemática social remete, necessariamente, à discussão política, social, econômica e, também, jurídica. É, mais uma vez, Bercovici quem indica:

Embora o estudo das políticas públicas possa representar um grande avanço, como vimos, para a revisão dos pressupostos epistemológicos individualistas do Direito Administrativo, não é possível promover ou compreender o papel do Estado no processo de desenvolvimento exclusivamente pelas políticas públicas. As políticas públicas são sempre programas setoriais. O choque que existe se dá entre a visão global e a de territorialidade, que é a do desenvolvimento e do planejamento, com uma visão setorial e fragmentada, que é a das políticas públicas.

[...]

Não é possível, a nosso ver, seguir a proposta de rearticular o Direito público em torno da noção de política pública. Essa rearticulação deve se dar em torno de uma renovada Teoria do Estado, com visão de totalidade, capaz de compreender as relações entre a política, a democracia, a soberania, a Constituição e o Estado e baseada nos termos expostos por Hermann Heller.300

A despeito da divergência, Bercovici credita à Dallari Bucci a adequada conceituação de políticas públicas, “tendo por fundamento a necessidade de concretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado”301, e

esclarece:

O próprio fundamento das políticas públicas é a necessidade de concretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado, sendo o desenvolvimento nacional a principal política pública, conformando e harmonizando todas as demais. O desenvolvimento econômico e social, com a eliminação das desigualdades, pode ser considerado como a síntese dos objetivos históricos nacionais.302

Portanto, deve-se entender a política pública como meio de efetivar as determinações constitucionais, já definidas em processo democrático. Mas, além disso, é preciso compreender uma política pública como fragmento de um planejamento de abrangência nacional. Sendo o planejamento eminentemente fruto de uma discussão política, uma política pública está inserida, portanto, no fator político, que deveria ser limitado, sempre, ao estatuído no plano e na Constituição.

300 BERCOVICI, G. Constituição Econômica e Desenvolvimento, p. 62-63. 301 Ibid., p. 61.

302 Id. A Constituição e o Papel do Estado no Domínio Econômico. Revista Academia Brasileira de

Esta limitação não implica, como discutido no tópico anterior, na diminuição da democracia, e deve ser ressaltado que:

O sentido da ação estatal dá-se pela hierarquização dos interesses sociais, definidos e articulados em suas políticas ou omissões. Não é uma direção autodeterminada, mas, também, não se reduz ao jogo das forças políticas, levando-se em consideração que a atuação do Estado altera constantemente as mesmas correlações de força que constituem sua base material.

[...]

O programa constitucional não tolhe a liberdade do legislador ou a discricionariedade do governo nem impede a renovação da direção política e a confrontação partidária. Essa atividade de definição de linhas de direção política tornou-se o cumprimento dos fins que uma república democrática constitucional fixou em si mesma.303

Outrossim, não há como contestar que resta grande parte, senão a maior, submetida à discussão política quando da execução dos programas, políticas públicas ou planos. Portanto, para confirmar e, também, analisar como se manifestam as alternativas – que obtêm diferentes resultados – na execução de uma política pública, prossegue-se o estudo em pontos mais específicos. Afinal, como lembra Gilberto Bercovici, “tornou-se corrente afirmar que, com o Estado Social, o

government by policies vai além do mero government by law do liberalismo”304.

Ruth Côrrea Leite Cardoso ao analisar as políticas sociais recentes, observa sobre a década de 1990: “Nunca tivemos um período em que houvesse tanta clareza e também tanta indignação com a extrema desigualdade”305. Ela faz uma análise da

prática reiterada por vários governos, o assistencialismo através de políticas sociais focalizadas nos mais pobres. A autora do artigo aceita as críticas mais comuns: que esse tipo de política está vinculada ao clientelismo; que não recebe a participação ativa de seu grupo alvo; que gera baixa estima nos beneficiários frente aos outros grupos sociais; de que é insuficiente para aumentar o consumo; e o inegável fracasso dessas políticas para a diminuição da pobreza. Entretanto, mesmo diante de tantos problemas, sugere que a focalização é necessária, e o problema recai na metodologia utilizada.306 Entende, portanto, que a definição clara de um público alvo

303 BERCOVICI, G. Constituição Econômica e Desenvolvimento, p. 56-58. 304 Ibid., p. 57-58.

305 CARDOSO, Ruth Côrrea Leite. Sustentatibilidade, o desafio das políticas sociais no século 21.

São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n. 18: p. 42-48, 2004, p. 42.

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é essencial, mas deve-se buscar novos métodos para combater a pobreza, a começar pela “sumarização daquilo que já se sabe sobre sucessos e fracassos”307

das experiências realizadas.

A autora cita o exemplo308 do Chile, onde foram implantadas pelo regime militar políticas focalizadas nos mais pobres, sob os moldes liberais, com resultados pouco eficazes, que acabaram gerando a “estigmatização” dos beneficiados, e conseqüente dificuldade para que eles adentrassem no mercado formal de trabalho. Com o governo eleito em 1990, foram criados fundos com a finalidade de estimular a participação comunitária nos focos de pobreza, tendo sido obtido resultados mais próximos da demanda. Disso, Cardoso conclui:

Quais as lições que esta experiência ensina? Que a focalização não é uma panacéia, mas sim um recurso fundamental e indispensável quando combinado com uma nova visão do que seja desenvolvimento social. Por sua vez, esta nova visão impõe projetos flexíveis, capazes de promover as lideranças locais e a participação comunitária, criando o envolvimento com as demandas e com a busca de soluções sustentáveis.309

Sobre o dilema entre o universal e o específico, no que diz respeito à alocação de recursos em um tipo ou outro, Ruth considera que os programas do primeiro tipo são imprescindíveis, pois afetam a estrutura básica, como saúde, educação e transporte coletivo; e que os do segundo tipo, que se destinam a determinado público alvo, em situação mais grave, também devem ser contemplados. Diante desse dilema, é taxativa: ambas as políticas devem ser atendidas, não deve haver prioridade, mas uma busca pelo equilíbrio310.

Verifica-se que a ênfase de Ruth Cardoso recai em importantes aspectos das políticas públicas sociais, que podem ser resumidos nos seguintes pontos: a focalização não é necessariamente assistencialista ou clientelista; a definição do público-alvo deve ser criteriosa; a focalização exige maior envolvimento local e deve ser flexível conforme as diferentes comunidades atingidas; é fundamental o envolvimento dos diversos grupos sociais, como universidades, empresas,

307 CARDOSO, R. Sustentatibilidade, o desafio das políticas sociais no século 21, p. 44. 308 Ibid., p. 44-45.

309 Ibid., p. 45. 310 Ibid., p. 46-47.

associações, além de outras esferas governamentais; o enfoque não deve ser na pobreza simplesmente, mas na capacitação do indivíduo desenvolver sua cidadania, objetivando um “investimento no capital social”; a condução dos programas sociais deve passar por constantes ajustes, a fim de incorporarem as avaliações obtidas; é importante aproveitar a experiência dos modelos de políticas sociais já empregados, dai a importância da avaliação dos resultados alcançados, permitindo evitar a re- utilização de políticas sociais ineficientes311.

Pode-se perceber que a escolha entre uma política pública focalizada e outra universalista não é tarefa simples. Da mesma forma, é possível também considerar que a preferência dos liberais pela focalização, pode ser ajustada para outras finalidades, mais abrangentes que a pura e simples caridade teorizada por Milton Friedman.

Nessa esteira apresenta-se o estudo de Celia Lessa Kerstenetzky, que mostra a possibilidade de uma nova abordagem para a tradicional discussão entre políticas sociais focalizadas e universais. Vale dizer que o estudo que será analisado aproxima-se bastante do delineamento que vem sendo traçado no presente trabalho, sobretudo em relação à constatação da ultrapassagem entre a associação das políticas focalizadas com o modelo liberal ou neoliberal.

Celia, primeiramente, verifica que mais importante que a dicotomia entre os tipos de políticas públicas, é preciso, antes, observar os dois modelos de justiça social: uma fina, vinculada ao mercado, seguindo o postulado da teoria liberal, que ela chama de “mercadocêntrica”; e outra, a justiça espessa, que contempla a complexidade dos valores, além da liberdade e da eficiência econômica, ocupando-se também da liberdade política e da igualdade econômica, a chamada “estadocêntrica”.312

É interessante observar que a autora utiliza vários argumentos já apontados neste estudo, como o que destaca a importância do mercado e do Estado, bem como os

311 CARDOSO, R. Sustentatibilidade, o desafio das políticas sociais no século 21, p. 44-48.

312 KERSTENETZKY, Celia Lessa. Políticas Sociais: focalização ou universalização? Revista de

Economia Política. São Paulo, vol. 26, n. 24: p. 564-574, 2006. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31572006000400006&script=sci_arttext&tlng=e!n> Acesso em: 10 nov. 2007, p. 564-566.

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utilizados para qualificar a posição neoliberal, fazendo referência à questão da igualdade de oportunidades no mercado, que, como visto no primeiro capítulo, ignora completamente a distribuição “prévia de recursos e vantagens que, por sua vez, pré-determinaria as chances de sucesso dos indivíduos, ensejando desigualdades ‘injustas’ de chances de realização – isto é, desigualdades não baseadas na escolha e na responsabilidade individual”313.

A fim de não repetir os argumentos já expostos sobre as diferentes visões de justiça, conforme liberal ou distributiva, é preferível adentrar na discussão proposta por Celia Lessa. Ela explica o caráter residual da focalização na justiça de mercado: sob a ótica liberal a liberdade econômica tende a incluir todos, resta ndo para a intervenção estatal suportar apenas os casos imprevisíveis de pobreza imerecida, pois as escolhas irresponsáveis não devem ser socorridas, para que não haja distorções na distribuição econômica e conseqüente diminuição de incentivos. Vê-se que a “racionalidade” da redução da política social à política econômica envolve “uma certa visão moral sobre o que deve e o que não deve ser objeto de responsabilidade pública”314.

Nesse caso, a crítica à visão de uma política social residual não equivaleria a uma crítica à eficiência e à racionalização per se, mas sim à prioridade que estas propriedades de sistemas e processos reivindiquem em relação a direitos de cidadania e noções mais "espessas" de eqüidade, ou talvez, melhor dizendo, à suficiência ética de considerações de eficiência no juízo sobre a oportunidade da intervenção pública.315

Visto neste capítulo, e reafirmado por Lessa, o campo dos fatos não condiz com esta teoria “mercadocêntrica”, o contingente de escolhas racionais no mercado ultrapassou consideravelmente aquilo que poderia ser rotulado de residual. Sob essa perspectiva, o mais lógico, de fato, é alinhar-se ao coro dos críticos da focalização. Contudo, como defende Celia Lessa316, há pelo menos mais dois significados de focalização.

313 KERSTENETZKY, C. L. Políticas Sociais: focalização ou universalização?, p. 566. 314 Ibid., p. 568.

315 Ibid., p. 569. 316 Ibid., p. 569.

O primeiro significado é a focalização como condicionalidade, “no sentido de busca do foco correto para se atingir a solução de um problema previamente especificado, portanto com um aumento de eficiência local”317. O segundo318 é a focalização reparatória, ou distributiva; aquela que considera as diferenças existentes entre os grupos sociais, resultantes da história – de acordo com o proficuamente demonstrado no segundo capítulo sobre o caso brasileiro – de injustiça, caracterizando-se como meio de permitir o acesso dos excluídos aos direitos sociais, que estão mais relacionados às políticas universais. Esta focalização reparatória,

pode ser pensada tanto em termos de políticas redistributivas compensatórias (por exemplo, distribuição de bolsas, de bens e serviços para os mais pobres ou os muito pobres), como de políticas redistributivas estruturais (que envolveriam reformas em profundidade, como a reforma agrária e a reforma tributária, ou ainda uma política agressiva de democratização do acesso ao crédito e à educação de qualidade em todos os níveis, incluindo cursos preparatórios, afetando não apenas a pobreza, mas a iniqüidade).319

Deve ser reforçado que a focalização pode e deve atuar em conjunto com a universalização, pois verifica-se, novamente, que a focalização não é necessariamente liberal, residual.

Podemos concluir, provisoriamente, que o primeiro e o segundo sentidos de focalização acima mencionados, como condicionalidade e como retificação ou redistribuição, indicam que, como estilos de política social, focalização e universalização podem se combinar sob a batuta de uma concepção de justiça distributiva. Apenas na acepção restrita de política social residual, a focalização se encaixaria comodamente na visão de justiça de mercado, em sua versão popularizada na onda do chamado neo-liberalismo.320

Os pontos favoráveis321 das políticas sociais universalistas também já foram

mencionados, destacando: demandam menores gastos com a implementação e o monitoramento; não criam o problema da “estigmatização”; mostraram-se, no histórico dos países escandinavos, vinculadas à concepção da justiça espessa; e atingem grupos politicamente mais organizados.

317 KERSTENETZKY, C. L. Políticas Sociais: focalização ou universalização?, p. 570. 318 Ibid., p. 570-571.

319 Ibid., p. 571. 320 Ibid., p. 571. 321 Ibid., p. 571-572.

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Entretanto, é possível conceber a universalização também no interior de uma noção de justiça de mercado, quando se tem em mente um desenho de seguridade social básica universal, e oportunidades sociais básicas de educação e saúde com cobertura universal, a partir da mesma lógica residualista da primeira noção de focalização mencionada na abertura dessa seção, como parece ser o caso do regime de estado do bem-estar inglês. Recordando, sob essa lógica a política social é apenas residual, dando conta da responsabilidade pública essencialmente em termos de proteção social contra os riscos comuns. A diferença entre focalização e universalização, no âmbito de uma concepção de justiça de mercado, estaria principalmente no tamanho do resíduo.322

Diante do exposto, segundo Celia Lessa Kerstenetzky, considerando as possibilidades de combinação entre focalização e universalização, baseadas nas duas concepções de justiça, em contraste à tradicional dicotomia, o novo cenário abrangeria:

(1) concepção fina de justiça com ênfase na focalização: residualismo, ou seja, rede de proteção social mínima — como parece ser a experiência norte-americana;

(2) concepção fina com ênfase na universalização: seguridade social, educação e saúde básicas — como parece ser a experiência inglesa; (3) concepção espessa de justiça com ênfase na universalização: seguridade social, educação e saúde universais e generosas — como parece ser a experiência escandinava;

(4) concepção espessa com ênfase na focalização: alocação redistributiva de recursos para geração de oportunidades sociais e econômicas para os grupos sociais em desvantagem relativa — cenário hipotético, porém plausível.323

Constata-se que os dois modelos de políticas sociais tradicionalmente utilizados podem ter a marca do residualismo ou da redistribuição/transformação, conforme a justiça que lhes embasa. Tem-se, portanto, mais do que duas opções de política pública social, que dependem mais do tipo de justiça que se busca, que