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1. IGUALDADES

1.4 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Como inicia Celso Antônio: “Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no art. 5º, caput – que todos são iguais perante a lei.”73, e já esclarece a unanimidade de que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. Ou seja, não causa dúvida em sua aparente simplicidade o princípio da igualdade.

Contudo, o problema está justamente no caráter genérico do enunciado. Tampouco a já consignada afirmação aristotélica dá solução às indagações evocadas desta generalidade. Pelo contrário, exige descobrir quem são os iguais e os desiguais nela estabelecidos? Além disso, outras questões são apresentadas: qual o critério legítimo para definição das situações que merecem tratamento desigual? “Se as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê -las à regência de tais ou quais regras”, como coadunar essas discriminações com o princípio isonômico.74

Buscar maior precisão e descobrir a razão para que um discrímen seja legítimo em um caso e em outro não, estão entre os objetivos do autor. Em suma, “quando é vedado à lei estabelecer discriminações?”75

Antes da resposta, é preciso desfazer algumas suposições equivocadas. Após citar vários exemplos de situações que permitem a diferenciação “em razão da raça, ou do sexo, ou da convicção religiosa (art. 5º caput da Carta Constitucional)”, Mello mostra que o elemento de diferenciação pode estar nas pessoas ou situações, não sendo, portanto, nestas que se encontra a vedação ao princípio da igualdade. Os valores protegidos contra desequiparações odiosas, de “gerarem, só por só, uma

73 MELLO, C. A. B. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 9. 74 Ibid., p. 11.

discriminação”.76 Ou seja, deve haver uma correlação lógica com a diferenciação procedida, como no exemplo:

Suponha-se hipotético concurso público para seleção de candidatos a exercícios físicos, controlados por órgãos de pesquisa, que sirvam de base ao estudo e medição da especialidade esportiva mais adaptada às pessoas de raça negra. [...] E nenhum agravo existirá ao princípio da isonomia na exclusão de pessoas de outras raças que não a negra. A pesquisa proposta, perfeitamente válida, justificaria a diferenciação estipulada.77

Com a finalidade de encontrar a resposta para a questão apresentada, Bandeira de Mello indica três critérios para o reconhecimento da afronta à isonomia: 1) investigar o que é adotado como critério discriminatório; 2) verificar o fundamento lógico da desigualdade proclamada; e 3) analisar se a correlação lógica em abstrato respeita, no caso concreto, os valores constitucionalmente protegidos. É importante que a diferenciação atenda a esses três aspectos conjuntamente.78

Sobre o primeiro aspecto, o fator de discriminação, considerando a generalidade da lei, esta não pode ter, em abstrato, como destinatário um indivíduo. Se pretender atingir um indivíduo, este deve ser indeterminado e indeterminável ao tempo de sua edição. Sobre a questão do tempo, esclarece que esse fator, de per si, é neutro, podendo-se diferençar a sucessão de situações ocorridas em determinado lapso temporal.79 Em resumo:

É simplesmente ilógico, irracional, buscar em um elemento estranho a uma dada situação, alheio a ela, o fator de sua peculiarização. Se os fatores externos à sua fisionomia são diversos (quais os vários instantes temporais) então, percebe-se, a todas as luzes, que eles é que se distinguem e não as situações propriamente ditas. Ora, o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando

nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado

insistentemente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta.80

O segundo aspecto é o elemento central da matéria: é preciso que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado e a razão que lhe dá suporte. Se

76 MELLO, C. A. B. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 18. 77 Ibid., p. 16.

78 Ibid., p. 22. 79 Ibid., p. 23-34. 80 Ibid., p. 35.

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não houver conexão lógica entre o fator diferenciador e o tratamento jurídico diferenciado haverá contrariedade ao princípio da igualdade. A lei não pode conceder tratamento vantajoso ou desvantajoso, baseada em traços específicos de uma categoria de indivíduos se não estiver presente esta correlação lógica. Entretanto, é preciso lembrar, que essa correlação lógica sofre a influência da época e dos costumes, absorvidos na intelecção das coisas. Um fator diferenciador pode mostrar-se como motivo racionalmente subsistente em uma época, e adiante ser visto como ilógico.81

Presentes os dois primeiros aspectos, um fator discriminador idôneo vinculado à pessoa ou à situação que se pretende diferenciar, mesmo havendo correlação lógica entre esse fator e o tratamento diferenciado eles serão ineptos se não contemplarem o terceiro critério, se não retratarem concretamente os valores protegidos no sistema normativo constitucional, configurando-se, desse modo, num desvalor e não em um bem inserido neste sistema. Deve -se observar que não há situações tão próximas que não possam ser distinguidas, como não há situações tão diversas que não possuam qualquer denominador comum . Portanto, não é qualquer distinção autorizada, “pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima”.82

“A isonomia se consagra como o maior dos princípios garantidores dos direitos individuais”. Na ausência da lei, “a presunção genérica e absoluta é a da igualdade, porque o texto da Constituição o impõe”. Editada a lei, é necessário verificar os critérios expostos e observar, com cautela na interpretação legal, “que discriminações que decorram de circunstâncias fortuitas, incidentais, conquanto relacionadas com o tempo ou a época da norma legal”, não estão autorizadas a desigualar situações e categoria de indivíduos. E se isso ocorrer, mesmo de modo implícito, a discriminação será intolerável, injurídica e, sobretudo, inconstitucional.83

81 MELLO, C. A. B. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 38-40. 82 Ibid., p. 42-43.

É alcançado ao final do estudo de Celso Antônio Bandeira de Mello, o estabelecimento dos seguintes critérios para a verificação da existência de ofensa ao preceito constitucional da isonomia:

I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.

II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.

IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita.84

No primeiro estudo apresentado, de Douglas Rae, com a análise da igualdade abrangendo os campos político, sociológico e econômico – aliado ao segundo, que fornece critérios para uma interpretação jurídica mais consistente do caso concreto – tem-se os meios para uma análise mais apurada e consistente das questões que serão apresentadas no decorrer da presente pesquisa, permitindo analisar as causas do problema estudado, fundadas nas variadas possibilidades da igualdade, bem como na diversidade da interpretação constitucional apresentada sobre o tema.

A fim de dar continuidade ao roteiro de estudo proposto, faz-se importante deter-se na relação entre a história brasileira e a desigualdade social.