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As tradições no retrato e no autorretrato.

PARTE III PROJETO DESENVOLVIDO – “RETRATOS”

Capítulo 3 – DEFINIÇÃO DE RETRATOS E AUTORRETRATOS

3.1. As tradições no retrato e no autorretrato.

Sistematicamente a representação fisionómica humana tem liderado o pensamento dos artistas de um modo intemporal, sobretudo pelo facto de a imagem revelar o percurso temporal do artista, as memórias passadas, o quotidiano, a celeridade da vida ou a iminente presença da morte. Contudo referira-se, que a maioria destas representações não coincidiam com as reais semelhanças dos retratados, procuravam de outro modo revelar um “personagem” idealizado.

No entanto, o autorretrato será por definição o retrato do artista executado pelo próprio, demonstrando exclusivamente o que este imagina, deseja ou idealiza SER, consistindo numa auto visão, num olhar reflexivo sobre o próprio. Deste modo o autorretrato não é, nem deverá ser, examinado apenas como a imagem refletida no espelho, simples cópia da realidade observada, terá de representar a individualização do seu autor orientada no encontro do reflexo real.

É possível referir que a origem do retrato remonte a tempos distantes, sem que exista uma prova concreta disso. De qualquer modo, os primeiros vestígios figurativos da fisionomia humana aparecem na civilização egípcia, com reproduções abundantes dos seus governantes, deuses ou altas individualidades. Apesar de serem predominantemente estilizadas e de perfil, podemos considerá-las as percursoras do retrato. Depois da descoberta da máscara fúnebre do faraó Tutankhamon (fig.10), governante da IV Dinastia cuja sepultura real foi encontrada praticamente intacta, inicia-se um ciclo de identificação de imagens quase fieis ao real. Durante a ocupação do Egipto pelos romanos (Época Fayum), surgiram várias imagens/retratos mostrando um certo realismo, tanto nas proporções adotadas, bem como nos detalhes dos retratados (figs.11a e 11b).

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Estes retratos geralmente pintados sobre madeira ou marfim com ceras ou resinas coloridas destinavam-se especialmente a envolver as múmias, com o intuito de fazer perdurar a essência corporal pela eternidade. Igualmente em pesquisas arqueológicas realizadas em Micenas, na Grécia, foram encontradas várias máscaras fúnebres, sendo a mais conhecida aquela a que atribuíram o nome de “Máscara de Agamémnon” (fig.12) totalmente fabricada em ouro. Verificar-se-ia posteriormente,

após a sua datação, não poder representar esse herói grego16.

16Agamémnon foi um dos mais distintos heróis gregos, filho (ou neto) do rei Atreu de Micenas e da rainha Aerope e irmão

de Menelau.Não há registos que provem que tenha de facto existido, mas é provável que tenha sido o rei de Micenas a comandar o épico cerco dos Aqueus à cidade de Troia. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Agamemnon, acedido a 17 de junho 2016)

Figura 10

Máscara mortuária de Tutankhamon

Figura 12

“Máscara de Agamémnon”

Figuras 11a e 11b

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Talvez se deva ao clima quente e seco da Mesopotâmia, a descoberta destes retratos mais antigos, e provavelmente os poucos sobreviventes da Antiguidade Clássica. Pois, após a conturbada época de anexações sofridas pelo povo egípcio, primeiro pelos gregos e depois pelos romanos, a maioria das representações artísticas acabaria por ser destruída, ou transladada para outros locais.

Apesar disso, os frescos descobertos nas cidades de Pompeia e Herculano, em Itália, são exemplo de que a pintura retratista já se encontrava bem desenvolvida na época. Se analisarmos detalhadamente os retratos, identificamos que estes apresentam regras genuinamente realistas, tanto na proporção como nos detalhes pessoais. Embora alguns possam parecer desproporcionados e a aptidão artística da obra varie consoante o seu autor, podemos afirmar que estes se assemelham bastante à realidade (figs.13a e

13b).

O autorretrato deve ser um objeto familiar que invoca as visões que deslumbram a natureza do EU, e se para alguns artistas isso poderá ser um desafio, provavelmente um estímulo criativo, para outros por ventura menos habituados à representação humana, será uma circunstância dramática. Observe-se porém, a separação atual que distingue o autorretrato pintado ou desenhado, do autorretrato fotografado.

Durante a Idade Média, e na presença da forte influência religiosa, considerou- se que as representações retratistas deviam resultar de uma ação mutuamente harmoniosa entre o corpo e o espírito, entre a natureza e a vontade humana, mas nunca

Figuras 13a e 13b

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afastada da graça divina. A maioria dos retratos dessa época encontram-se sobretudo em iluminuras de obras religiosas. Citemos com especial interesse, aquelas do livro “Liber scivias Domini”, ilustrado pela monja beneditina e Doutora da Igreja, Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179), e onde esta se retrata em diferentes circunstâncias

(figs.14a e 14b).

Ainda oriundo da Idade Média, um retrato bem preservado e de caracter único, atribuído a autor desconhecido, representa o Rei João II de França (1319-1364), conhecido por “Jean, Le Bom” (fig.15). Nele o rei está pintado com bastante detalhe apesar da postura lateral, e podemos conferir alguma realidade na caracterização física e expressiva. Apesar de se desconhecer a sua autoria, supõe-se que o autor faria parte da comitiva do então duque da Normandia, posteriormente coroado Rei João II de França, durante a visita efetuada ao Papa em 1349, e provavelmente conhecedor das obras de Giotto de Bondoni (1267-1337), cujas obras religiosas eram conhecidas e apreciadas na época.

Figuras 14a e 14b

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Estas obras de Giotto, eram maioritariamente encomendadas por mecenas que delas desejavam fazer parte, como é o caso do banqueiro Enrico degli Scrovegni (B), seu principal patrono, que ao encarregá-lo da decoração da “Capela Scrovegni” dedicada a Santa Maria della Caritá, diligencia a sua representação no ato de doação aos anjos da famosa capela (fig.16).

Figura 16

Fresco da Capela Scrovegni – Pádua – Itália

B

Figura 15

58 3.2. Retratos individualizados.

Todos os humanos procuraram sempre forma de registar a sua “imagem”. Fizeram-no através das pinturas em cavernas, ilustrativas do seu quotidiano, em esculturas representativa do corpo humano, como é o caso da pequena estatueta conhecida como Vênus de Willendorf ou da Vênus de Laussel, que remontam à arte paleolítica.Esculpidas em pedra, não pretendiam ser um retrato realista, mas sobretudo uma interpretação individualizada da mulher como símbolo de fertilidade (figs.17a,

17b e 18).

Finalmente, durante a época renascentista, parece multiplicarem-se os retratos pessoais com a finalidade de exibir o sucesso do retratado ou o seu “status” social. A maioria dos retratistas interessam-se por pesquisar nas imagens antigas, formatos que lhes permitissem um grau de equilíbrio, harmonia e sensibilidade, transpondo esses valores para a tela. Segundo Arnheim (2005) “[…] mesmo o mais simples padrão visual é fundamentalmente afetado pela estrutura do espaço circundante […]” (Arnheim, p.11)

Figuras 17a e 17b

Vênus de Willendorf

Datação entre 24 000 e 22 000 a.C.

Figura 18

Vênus de Laussel

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Este novo conceito de retrato viria a ser autenticado no século XVI, com a inovadora técnica de pintura a óleo utilizada pelo flamengo Jan van Eyck (1390-1441), a qual lhe permitia melhorar as matrizes de cor. Ao aplicar pinceladas mais finas e em sucessivas camadas, conseguia imprimir maior realismo aos retratados (figs.19a e

19b).

Porém, destaque-se os inúmeros trabalhos de autorretrato realizados pelo pintor alemão Albrecht Dürer (1471/1528), evidenciando o seu percurso temporal nos quais se representa em diferentes posturas e com fisiognomias distintas (figs.20, 21 e 22).

Figura 20

Autorretrato aos 13 anos (1484)

Figura 22

Autorretrato aos 29 anos (1500)

Figura 21

Autorretrato aos 22 anos (1493)

Figuras 19a e 19b

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Dava-se assim início a uma época retratista, onde os modelos exibiam poses frontais ou a três quartos, para desse modo serem visíveis pormenores que transmitissem vitalidade ou expressividade. Esta vivacidade assumia-se sobretudo na posição em que eram retratados, na colocação das mãos e na direção do olhar, que por vezes enfrentava o espectador. Como mestre nesta fase retratista, é necessário relembrar o pintor holandês Rembrandt (1606-1669), que se autorretratou desde jovem até ao final da sua vida (figs.23a a 23e), revelando progressivamente o desgaste

físico do envelhecimento humano.

Contudo em Itália o retrato surge inicialmente como complemento pictórico em cenas sacras ou profanas. Podemos observar essa evidência nas obras do pintor Botticelli (1445-1510) que utiliza regularmente nas suas pinturas a figura/modelo de Simonetta Vespucci (fig.24), famosa pela sua extrema beleza renascentista e representada na maioria dos seus quadros, como se verifica no quadro “Nascimento de Vénus” (fig.25).

Figuras 23a, 23b, 23c, 23d e 23e

Autorretratos de Rembrandt entre 1629 a 1669

Figura 24

Simonetta Vespucio Piero di Cosimo (1480)

Figura 25

Excerto do quadro “Nascimento de Vénus” Botticelli (1485)

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Entretanto ainda durante o período renascentista, surpreendentemente, o retrato individual notabilizar-se-ia, talvez devido ao incentivo dado pela reprodução de imagens de corpo inteiro ou de três quartos17. Nomeadamente o pintor Tiziano Vecellio (1490-1576) viria inovar o retrato, incluindo neles evidências exteriores dos retratados, com o propósito de revelar algo da intimidade dos modelos (figs.26a e 26b).

Deste modo retratou várias personalidades ilustres, utilizando diversas poses e posturas, reconhecendo-se-lhe o mérito de ser um pioneiro na arte do retrato infantil

(figs.27a, 27b e 27c).

17O retrato a três quartos refere-se a uma vista desde a cabeça até abaixo da cintura. (N.A.)

Figuras 27a, 27b e 27c

Retrato e Detalhe de Ranuccio Farnese e retrato de Clarissa Strozzi- Tiziano (1542)

Figuras 26a e 26b

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Durante essa época, ainda em Itália, tornaram-se magníficos e incontestáveis mestres os pintores Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, que sendo distinguidos socialmente com a posição de "gênios", tornar-se-iam valiosos servidores dos seus maiores mecenas: a Corte e a Igreja (figs.28a, 28b e 28c).

Ainda nesse período, difunde-se rapidamente entre as cortes reais europeias o hábito das miniaturas retratistas. Estas serviriam, principalmente, o propósito de ilustrarem a prováveis nubentes os seus consortes (figs.29a, 29b e 29c), permanecendo bastante prestigiados até serem substituídos pela fotografia. Seriam sobretudo retratos de perfil, sobre medalhas ou medalhões, restabelecendo as poses das esculturas clássicas.

Figura 28a, 28b e 28c

Retratos executados por Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael

Figuras 29a, 29b e 29c

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Porém, seria o pintor milanês Giuseppe Arcimboldo (1526-1593) que “subverteria” os padrões retratistas em vigor, apresentando pela primeira vez a desconstrução/inovação no retrato, usando objetos dispares para a composição de fisionomias humanas (figs.30 e 31). Para isso usou elementos da natureza ou do quotidiano, que na época eram especialmente utilizados na representação de naturezas mortas, revelando características antropomórficas.