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Funções do retrato e do autorretrato.

PARTE III PROJETO DESENVOLVIDO – “RETRATOS”

Capítulo 3 – DEFINIÇÃO DE RETRATOS E AUTORRETRATOS

3.3. Funções do retrato e do autorretrato.

Admitindo a função concreta do retrato ou do autorretrato, como os traços impressos pela mão do pintor afastando-o da sua intimidade, ou daquela que observa, materializando a finalidade irreversível de “representação”, este será uma reprodução irreal do retratado. E, apesar de admiramos o modo como alguns artistas deformam essas imagens, mesmo reconhecendo os traços pessoais, na linha, na mancha de cor ou na distorção, estes serão fragmentos da representação ficcional, “Se a simplicidade fosse o único objeto dominante da arte, as telas uniformemente pintadas, os cubos perfeitos, seriam os objetos mais agradáveis.” (Arnheim, 2005, p.403).

Figura 30

“O Livreiro” (1566 - 1590)

Figura 31

“ Cabeça Reversível com Cesto de Fruta” (1566 - 1590)

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Por outro lado, o retrato “que eu no tirar ao natural poria, […] ” (Holanda, 1984, p. 14), permanece na técnica de desenho que leva o autor a rever com rigor os traços do rosto que o olhar superficial não deteta, e assim, não transparecer uma “máscara” mas um rosto com identidade própria, um EU independente.

Segundo refere Ramos (2012),

“Os exemplos de “harmonias e contrastes agradáveis” são extensos, no entanto, podemos agrupá-los em três níveis. No primeiro, que compreende as relações de carácter mais geral, no segundo nível encontramos a exaltação das próprias formas geométricas a que os elementos da cabeça se submetem e no terceiro nível, encontramos os exemplos das concordâncias mais particulares.” (Ramos, p.28)

Tomemos, como exemplo, os retratos dos pintores românticos, que ao darem destaque às suas visões pessoais, fortemente ligadas às emoções dramáticas e contraditórias (figs.32 e 33), valorizavam as cores e o contraste claro-escuro em busca da revelação das emoções humanas e históricas da época.

Por outro lado, os pintores contemporâneos perceberam a necessidade de ser realistas, objetivos, com uma visão mais técnica e deixando de lado as emoções humanas. Chocaram a sociedade burguesa da época, muito ligada ainda às aparências,

Figura 32 Autorretrato de Goya (1790-1795) Figura 31 Goya (1746-1828) Figura 32 Courbet (1746-1828) Figura 33

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acusando-os de querem transformar a arte banalizando os retratados. Referindo o conceito atual de Arnheim (2005) “Os artistas têm experimentado a reorganização de objetos de maneiras que contradizem a experiência cotidiana.” (Arnheim, p.64). No entanto para os apoiantes desta corrente, nas classes médias ou baixas, a representação da realidade era a última palavra em ousadia artística. (figs.34 e 35).

Pode-se, deste modo, afirmar que os retratos e os autorretratos foram servindo diversos objetivos, alguns políticos outros propagandistas. A partir do momento que se passou a representar não só o rosto mas toda a figura humana, o retrato pintado comparar-se-ia ao realismo impresso na fotografia, ocorrido em 1826 e atribuída ao francês Joseph Niépce. Este novo desafio de representar o corpo inteiro ou a três quartos daria origem a novas experiências, corroboradas com a utilização de inovadoras técnicas, aperfeiçoando as expressões faciais de forma a refletirem emoções distintas, apresentando os modelos em poses sóbrias ou solenes, ou noutras mais descontraídas. Este seria o início do retrato psicológico (figs.36 e 37), parte integrante da exposição íntima e caricata dos retratados.

Figura 34 Courbet (1844-1845) Figura 35 Millet (1859 -1860) Figuras 36 e 37 Degas (1878) – Cassatt (1879)

66 3.4. Retratar ou “imitar”.

Tem-se vindo a referir, que desenhar está na origem de qualquer retrato ou autorretrato. É um processo natural que se vai criando, modificando, acrescentando e, por vezes, o traço do autor dilui-se à medida que este toma consciência que “ver é

compreender”. Segundo estudos sobre a visão criadora, Rudolf Arnheim (2005)

argumenta que,

“O pensamento psicológico recente nos encoraja então a considerar a visão uma atividade criadora da mente humana. A percepção realiza ao nível sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. O ato de ver de todo o homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a experiência por meio da forma organizada. O ver é compreender.” (Arnheim, p.39)

De qualquer modo, etimologicamente a palavra retratar, originária do latim “retracto” e com o significado de “retomar, fazer de novo, corrigir”, contrapõe-se ao termo imitar, este associado ao ato de reproduzir, fazer à semelhança, tomar por modelo. Apercebemo-nos entretanto, que à medida que o artista adquire experiência e domínio na construção do retrato, vai distinguindo para além do supérfluo o que é objetivo, não descurando o equilíbrio da realidade observada.

Assim, se para os pintores classicistas parecia incontestável “imitar” os mestres, na atualidade possuímos provas que demonstram que à medida que o retrato evolui, este transcende o vulgar reflexo no espelho, para se ajustar à identidade e ao caracter do retratado, responsáveis pelas metamorfoses registadas. Ainda segundo Arnheim (2005)

“De um modo mais plausível, poderíamos observar que quando, por alguma circunstância, a mente é libertada da sua sujeição comum às complexidades da natureza, ela organizará configurações de acordo com as tendências que governam seu próprio funcionamento. Temos muita evidência de que a tendência principal neste caso em ação é aquela em direção à estrutura mais simples, isto é, no sentido de uma configuração geométrica mais regular, mais simétrica que se pode conseguir sob tais circunstâncias.” (Arnheim, p.135)

Admiremos o modo como, entre 1550 e 1620, os irmãos Carracci já se tinham posicionado contra a corrente dominante, revelando uma “despersonalização” nos

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retratos de corte, criando um retrato “de mudança”, que se assemelhava, por vezes, a uma caricatura do retratado (figs.38a e 38b).

Esta transformação assinalada nos retratos e nos autorretratos, viria a tornar-se mais óbvia durante a segunda metade do século XX, durante o período pós-Guerra. Com a origem em Nova Iorque do MoMA18, local onde se expõem pela primeira vez demostrações de identidades metafóricas, ou seja de novos enfoques atribuídos ao retrato. Chegava finalmente o tempo de pensar e refletir a arte, como uma nova linguagem artística, original, experimental, reinterpretando as imagens existentes e deformando-as voluntariamente (figs.39a e 39b, 40ª e 40b).

18MoMA, Museu de Arte Moderna (Museum of Modern Art). (N.A.)

Figura 39a

Busto de Mulher com Chapéu (Dora) Picasso - 1939

Figuras 38a e 38b

Pinturas dos irmãos Carracci - 1583-1598/1600

Figura 39b

Fotografia de Dora Maar – Man Ray (Fotógrafo) 1936

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Com o aparecimento da fotografia, a arte retratista procurou formas alternativas de representação, despontaram novos movimentos artísticos, cubistas e expressionistas. A esta nova reorganização das formas, de maneira controversa, podemos associar as nossas funções cerebrais:

“Desaparecem as regras que regulam o processo decisório e o cérebro fica mais livre: voamos durante o sonho, juntamos personagens improváveis e viajamos de um lugar para o outro em tempos impossíveis. Por outras palavras, inventamos tudo em novas combinações criativas.” (Caldas, 2017, p.22)

Este processo complexo de abstração, liberta o artista das tendências economicistas do sistema, deixando os processos de retratar ou de “imitar”. Deste modo os artistas transpõem a barreira do possível viajando ao encontro do impossível.