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Aspectos Culturais no Consumo de Alimentos

2 O COMPORTAMENTO DE COMPRA E DE CONSUMO

2.1 COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

2.1.3 Aspectos Culturais no Consumo de Alimentos

Desde o nosso mais remoto antepassado, o macaco-homem matava, a golpes, suas presas para chupar-lhes os miolos e comer-lhe a carne. Lentamente aprendeu a cozer e a preparar seus alimentos, até chegar aos dias de hoje com os aperfeiçoamentos da verdadeira arte culinária. (FRIEIRO, 1982)

A sociologia tem apresentado interesse recente no estudo do comportamento do consumidor de alimentos, devido ao aumento da importância dos problemas da nutrição. A profissionalização do nutricionista e a evolução da medicina preventiva alimentaram o interesse para pesquisas nessa área. A alimentação é uma necessidade vital do ser humano, e os sociólogos acreditavam ser óbvia demais para ser alvo de análises políticas e econômicas. (CASOTTI, 2002) Os produtos alimentícios ocupam um lugar importante na vida cotidiana. Além de nutrir o organismo, inscreve-se em uma complexa teia de significados e símbolos, isto e, cultura. (CASOTTI, 2002)

A Igreja Católica, na Idade Média, mantinha um rigoroso calendário onde os cristãos deveriam obedecer os dias de jejum, excluindo de sua dieta alimentar as carnes consideradas "quentes". O bacalhau era uma comida "fria" e seu consumo era incentivado pelos comerciantes nos dias de jejum. Com isso, passou a ter forte identificação com a religiosidade e a cultura do povo português, conforme Marília & Consiglieri (1998); "O número de dias de jejum e abstinência a que se sujeitavam

anualmente os portugueses era considerável, não se limitando ao período da Quaresma, a época do ano em que o bacalhau era "rei" à mesa. Segundo Carlos Veloso, durante mais de um terço do ano não se podia comer carne. Assim era na "Quarta-Feira de Cinzas e todas as Sextas e Sábados da Quaresma, nas Quartas, Sextas e Sábados das Têmperas, (n)as vésperas do Pentecostes, da Assunção, de Todos-os-Santos e do dia de Natal e ainda nos dias de simples abstinência...”

Na formação da culinária brasileira constata-se a influência luso-afro- indígena, mesclada com a influência dos imigrantes europeus e orientais, sendo um reflexo da mistura de raças. À medida em que o Brasil foi colonizado, ingredientes, modos e hábitos foram se fundindo. Os portugueses inicialmente se mantiveram fiéis aos hábitos e costumes europeus, porém ao longo do tempo adotaram costumes alimentares indígenas, como a moqueca e o pirão, feito a base de caldo de peixe e farinha de mandioca. Com a chegada dos africanos, em meados do século XVI, o cardápio luso-indígena tornou-se mais variado com o uso de novos temperos (CASCUDO, 2004).

Quanto ao uso primeiro dos pescados na alimentação brasileira, há registros. O primeiro sobre interação alimentar entre indígenas e portugueses foi no dia 24 de abril de 1.500, segundo Cascudo (2004, p. 73): ―Deram-lhe ali de comer; pão e peixe cozido, confeito, farteis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; se alguma coisa provaram, logo a lançavam fora‖.

Na tarde de 25 de abril, os indígenas assistiram à pesca de arrasto dos portugueses.

E pescaram ali andando marinheiros com um chinchorro; e mataram pescado miúdo não muito. Alguns foram buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho, e também acharam cascas de berbigões, e de amêijoas, mas não toparam com

nenhuma peça inteira. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens (CASCUDO, 2004, p. 74).

No cardápio indígena registra-se o pirão, feito à base de caldo de peixe com farinha de mandioca, além de pescados assados na brasa e em uma espécie de forno subterrâneo, ignorando qualquer tipo de fritura. Os pescados eram também cozidos ensopados, como uma moqueca, com ressalvas aos temperos, proporcionados por condimentos como a pimenta. Os peixes eram ingeridos com suas vísceras, que eram cuspidas depois. ―Peixe miúdo não se tratava Ia como

estava‖. O indígena é que cuspisse as vísceras ou as mastigasse, segundo a preferência. ―Triste do bicho que outro engole. Carne e peixe, na quase totalidade,

assados‖ (CASCUDO, 2004, p. 547).

O pescado maior era assado em posta, o médio e pequenos se assavam inteiros, enrolados em folhas, sob cinzas ou nos fornos subterrâneos, o que evitava penetração do ar, concentrando valores nutritivos. Fabricavam farinha de peixe, bem seco, socado no pilão, reduzido a pó, peneirado e conservado em paineira de grandes folhas. O peixe cozido era o médio ou pequeno, e do caldo faziam pirão.

O europeu trouxe ao Brasil o gado bovino, ovelhas, porcos, cabras, carneiros e aves, introduzindo novos hábitos na alimentação. Trouxeram também o pescado conservado, que foi levado ao sol, com sal e pimenta, amarrado pelo rabo. Do cardápio indígena os portugueses herdaram a moqueca. O leite-de-coco, o azeite de dendê, a pimenta, o coentro, a cebola, o alho e tantos temperos outros deram aspectos diversos a uma dúzia de moquecas. E há preferências, ‖a moqueca feito embrulho, o embrulhado ou envolvido no calor do borralho. A moqueca pra ser boa, deve ser de camarão; o tempero que ela leva, é pimenta com limão‖ (CASCUDO, 2004).

Técnicas de conservação são relatadas por Frei Ivo d‘Evreux, entre 1612- 1614,

[...] ―apanhado nas redes, seguram-nas pelo meio dose a dose, lançam-no com entranhas e tudo aos fumaceiros para assá-los, e assim ajuntam muitos, que levam para suas casas e com esta comida sustentam-se um ou dois meses.‖ Quando querem comer, tiram a pele do peixe, secam-no ao sol, pisam-no em um almofariz, reduzem-no a pó, com que fazem seus mingaus, isto é, suas bebidas, como fazem os turcos com o pó dos quartos

de boi, cozidos ao forno quando vão para a guerra‖ (CASCUDO, 2004, p. 423)

Aludindo a formação da culinária mineira, Frieiro (1982) apresenta influências que demonstram a formação da cultura da alimentação nos séculos XVII e XVIII, onde grande parte delas regem comportamentos culturais na alimentação até os dias de hoje, como, a carne bovina, a carne suína, o feijão, o angu e a couve.

No inicio do século XVII, Na carne bovina, adotamos a cultura de criação de gado vinda de São Paulo para alimentar os mineradores, com a necessidade de dezoito a vinte mil cabeças de boi por ano para alimentar os trinta mil moradores. À época, os escravos se alimentavam do feijão adicionado ao toucinho de carne de porco com farinha, em um momento de escassez de alimentos, onde o milho se tornava uma opção para o complemento da alimentação. Nascia assim o angu e a pamonha. (FRIEIRO, 1982)

No inicio do século XVIII a agricultura foi aos pouco se desenvolvendo voltada para a subsistência e produção de consumo local, com o plantio também de couve. A criação de gado leiteiro se desenvolve no sul de Minas, nascendo a indústria de laticínios e o ―queijo de minas‖ juntamente com a criação de suínos, consumida em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, contribuindo para a dieta mineira de toucinho, banha, linguiça e lombo. O plantio do café se desenvolve consideravelmente na região da mata para atender ao consumo em solo Fluminense, Rio de Janeiro. (FRIEIRO, 1982)

O hábito de comer bacalhau veio para o Brasil com os portugueses, já na época do descobrimento. Mas foi com a vinda da corte portuguesa, no início do século XIX, que este hábito alimentar começou a se difundir. Data dessa época a primeira exportação oficial de bacalhau da Noruega para o Brasil, que aconteceu em 1843, estando registrado numa edição do Jornal do Brasil de 1891 , encontros dos intelectuais da época, liderados por Machado de Assis, reuniam-se todos os domingos em restaurantes do centro do Rio de Janeiro para comer um autêntico "Bacalhau do Porto" e discutir os problemas brasileiros.

Nos últimos anos, a alimentação vem sendo analisada sob várias abordagens de forma independente e, em alguns casos, complementares: a

abordagem econômica analisa a relação entre a oferta e a demanda, abastecimento, preços dos alimentos, renda e acesso aos alimentos; a abordagem nutricional, analisando a composição dos alimentos e na preocupação com a saúde dos indivíduos; a abordagem social atenta às associações entre a alimentação e a organização social do trabalho, a diferenciação social do consumo e os estilos de vida; a abordagem cultural, interessada nos gostos, hábitos, tradições culinárias, representações, identidades práticas, ritos e tabus, isto é, no aspecto simbólico da alimentação (BRAGA, 2004).

DaMatta (1996, p. 56) apresenta uma distinção importante entre alimento e comida. ―Para nós brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou aceitável‖, assim como nem tudo o que alimenta é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo aquilo que se come com prazer...‖ Comida é um modo, estilo e um jeito de alimentar-se. Os alimentos são dotados de forte valor simbólico, ―o jeito de comer define não apenas aquilo que é

ingerido como também aquele que o ingere‖.

Lévi-Strauss (2004) apresenta a "casa"; surge assim como um ambiente celebrado pela familiaridade de seus componentes, unidos por laços relacionais. Nesse espaço, todos são vistos como pessoas à medida em que estabelecem tratamentos diferenciados entre si, o que permite dosar quantidades de afeto. Em consonância com essa característica, a "casa" aparece como lugar da hospitalidade e da segurança. Já a "rua" tem como um dos seus principais elementos a normatização: trata-se de um espaço regrado, onde não há brechas para a informalidade nem para tratamentos desiguais entre indivíduos, categorizados assim pelos parâmetros jurídicos.

Em o Cru e o Cozido, Lévi-Strauss (2004), descreve duas maneiras de cozinhar: o grelhar e o cozer. O alimento grelhado é diretamente exposto ao fogo, e o cozido é submerso na água, o que depende também de um recipiente. Desta forma, simbolicamente, o grelhado estaria mais próximo da natureza, e o cozido mais próximo da cultura.

A cultura é a mediação necessária nas relações entre o homem e o mundo, assim como o cozido precisa da mediação da água na relação entre o

alimento e o fogo. Já à diferença entre alimento cru e cozido, associando-os entre natureza e cultura: o cozinhar é o que transforma a natureza em cultura. O homem é um animal com necessidades biológicas semelhantes às de outras espécies, mas que possui linguagem, inteligência e cultura, tornando a nossa espécie única no planeta. Portanto o homem é, ao mesmo tempo, criatura da natureza e da cultura. A comida é entendida como uma linguagem. A cozinha de uma sociedade indica seus valores. Nas sociedades humanas, a fome e a sede, são formuladas e satisfeitas em termos culturais, sociais e históricos. (LEVI-STRAUSS, 2004)

Braga (2004) destaca um aspecto do papel da cultura na alimentação que é a formação do gosto, em muitos sistemas culturais, o gosto e o olfato identificam e hierarquizam as classes de alimentos naquilo que é comestível em oposição ao que não é. O gosto é, desta maneira,‘ uma construção cultural. Assim, a cultura interfere por intermédio de códigos, definindo o que é ―comestível‖ do que não o é, criando tabus alimentares. De igual maneira, as propriedades visuais e de textura são outras características sensoriais que determinam se os alimentos são apropriados ou não dentro de uma sociedade, configurando aspectos do simbolismo alimentar.

Barthes (1975) atenta sobre a importância da textura que ocupa um importante papel na seleção do alimento. Na cultura ocidental, por exemplo, há uma oposição simbólica que determina a escolha por parte de classes sociais e de indivíduos dentro das classes.

A alimentação leva a gerar reflexões sobre questões fundamentais da antropologia, como por exemplo a relação da cultura com a natureza, o simbólico e o biológico. O alimentar-se é um ato vital, sem o qual não há vida possível; mas, ao se alimentar, o homem atribui significados que vão além da utilização dos alimentos pelo organismo. A alimentação é uma atividade social, que envolve outras pessoas e cria formas de convívio social. A formação da mesa torna-se parte de algo especial. (BRAGA, 2004).

Importante aspecto na comida é o envolvimento emocional. Ele trabalha com a memória e com sentimentos, que remetem a lembranças de ―comida da mãe‖, ou ―comida caseira‖ evocando infância, aconchego, segurança, ausência de sofisticação. Remetem ao ambiente ―familiar‖, ao próximo. O toque de mãe no

preparo do alimento torna-se assinatura que implica no que é feito, como na forma, marcando a comida com lembranças pessoais (BRAGA, 2004).

A comida pode também despertar certas emoções ligadas à memória. Alguns alimentos podem nos fazer lembrar alguém ou um lugar, através do prazer e da dimensão afetiva a ela ligada pela lembrança. Ela aparece então como um elemento desencadeador que permite não somente ativar a lembrança do distante como rememorar – amenizando ou acentuando a dor da saudade (UGALDE & SLONGO, 2006).