• Nenhum resultado encontrado

Ativando a amabilidade urbana: exercício de alteridade

Nas intervenções desse subitem será destacada a questão do exercício da alteridade como importante experiência no espaço público. Para isso, se articulará a ideia de hospitalidade de Jacques Derrida e as ações artísticas como disparadoras de reinvenções das relações com o “estranho”, o “outro” nas ruas. Dois trabalhos compõem o subitem o projeto Na Casa de Paulo do Coletivo Pi e a intervenção Troco

Bananas por Samba, uma parceria do Mapa Xilográfico com professoras e alunos do Instituto de Artes da Unesp.

O projeto Na Casa de Paulo do Coletivo PI percorreu oito bairros da cidade de São Paulo, em regiões diferentes, levando uma casa a céu aberto para o espaço público em 2012. A ação surgiu após as artistas realizarem no ano anterior a intervenção Narrativas de São Paulo, na qual passavam uma tarde em um bairro ouvindo histórias das pessoas que paravam suas rotinas para sentarem um banco vazio, compartilhando as memórias com a moça que estava sentada na poltrona e com um livro com páginas em branco nas mãos.

Figura 79: Narrativas de Miguel, São Miguel Paulista – São Paulo, 2011. Foto: Acervo do Coletivo PI

Aqui, explicitamente, as artistas instalam um espaço privado – a sala – em um espaço público para trocar memórias que são registradas para a escritura de livros de cada bairro. Dois fatores chamam a minha atenção nessa ação: o modo como aproximam do morador do bairro e ideia de história como memórias de cidadãos comuns. A aproximação não é espetaculosa, a performer não chama a atenção do transeunte. É justamente seu silêncio que aproxima. Por outro lado, ao invés de perguntar sobre grandes acontecimentos ali ocorridos, instiga o morador do bairro a aproximar-se de suas memórias pessoais sobre aquele lugar. (ANDRÉ, 2011, p. 12)

Após a passagem em oito bairros no ano de 2011, as narrativas se transformaram em espécie de diário do local, relevando as lembranças e desejos dos seus moradores e trabalhadores. Então, em 2012, fomentado pelo Prêmio Funarte Artes na Rua, o Coletivo PI retornou a cada local instalando uma casa que em seus detalhes, como a fronha, porta-retrato etc, contava as memórias do bairro. As artistas ali permaneciam, “habitando” a casa durante o dia todo, recebendo os visitantes e acolhendo novas memórias que ali iam sendo compartilhadas.

Figura 80: Na Casa de Santana, Santana – São Paulo, 2012. Foto: Eduardo Bernardino/ Acervo do Coletivo PI

Para essa intervenção escolhemos contrapor o espaço intimo (casa) com o espaço público (rua) como a primeira forma de aproximação. Pensamos que essa aproximação por meio da arte e do próprio espaço da rua é muito interessante, na medida em que potencializa a rua como espaço do encontro, do diálogo, do aprendizado e não apenas um local de passagem, terra de ninguém.

As pessoas que param sua rotina para conversar, contas suas histórias e percepções do bairro em que vivem, aonde nasceram ou trabalham contribuem de maneira singular para a memória não só de um local, mas para a invenção de uma nova relação, percepção entre rua, artista e o cotidiano. Além disso, durante certo tempo as pessoas que sentam na cadeira

vazia se tornam ali escritores, poetas, historiadores, transformando as palavras em imagem e poesia. (Coletivo PI, 2012)

Figura 81: Na Casa de Cecília, Praça Marechal Deodoro – São Paulo, 2012. Foto: Eduardo Bernardino/ Acervo do Coletivo PI

Um dos bairros do projeto foi Santa Cecília, em 2011 a intervenção para coletar as histórias foi feita no Largo da Santa Cecília, na saída do metrô, onde há a igreja. Ali a artista Natalia Vianna ouvia as memórias e desejos dos moradores, sendo que um chamava o outro. O rapaz do comércio trazia a senhora que limpava a igreja e residia na região há mais de trinta anos. Há aqui um potencial apro- ximativo, o aconchego daquele “pequeno cenário”, recorte da intimidade de uma casa rompe com a paisagem urbana local, causando curiosidade, vontade de saber o motivo daquela existência ali.

Estamos ligados a este lugar pelas lembranças [...]. É pessoal, isto não interessaria a ninguém, mas enfim é isso que faz o espírito do bairro. Só há lugar quando frequentado por espíritos múltiplos, ali escondidos em silêncio, e que se pode ‘evocar’ ou não. Só se pode morar num lugar assim povoado de lembranças. (CERTEAU, 1994, p. 189).

A intervenção centra sua preocupação na relação afetiva entre as pessoas e o lugar que habitam, não se trata da história oficial, daquilo que as estatísticas e livros contam, e sim de narrativas singulares de cada um que se sentava naquele banco vazio. A ação subverte a ideia da rua como local de passagem e, por meio do estranhamento, convida as pessoas a se relacionarem, se olharem.

Se a rua permanece como um campo de guerra, é transformada em gênero masculino patriar- cal e o que temos é a violência, a segregação, as fronteiras. Porém, quando a rua é tornada um espaço de intimidade, transformada em gênero feminino, a violência é desmontada; busca-se a aproximação com a vida nua, apagam-se fronteiras. (ANDRÉ, 2011, p. 06)

Durante a intervenção Na Casa de Cecília, instalada na Praça Marechal Deodoro, muitos encontros inusitados ocorreram. A praça serve de moradia de pessoas em situação de rua, que gentilmente ofereceram apoio para as artistas construírem a instalação. Ao mesmo tempo, há um banco de areias e brinquedos que as crianças da região usam. E ali, muitos curiosos paravam para conhecer a casa. Assim, a ação borra as fronteiras, ela tem um potencial aproximativo que permite o encontro entre sujeitos de realidades tão distintas. A casa quebra com a invisibilidade dos moradores de rua, pois dentro dela (da casa sem paredes) todos são bem-vindos, falam da mesma posição.

A intervenção Casa de Paulo também resguarda um traçado nômade, já que percorre bairros da cidade, instalando a moradia a céu aberto e remetendo as figuras desviantes que habitam as cidades. O estar na rua, expondo-se aos seus perigos e encantos, cavando possibilidades outras que não são as dos espaços lisos, com suas fronteiras e caminhos esquadrinhados.

Ao se negar habitar um lugar fechado (galerias, teatros, casas de show, espaços alternativos fechados), a artista da rua torna-se uma despossuída e, com isso, afirma um modo de vida nômade. A nômade passa a não mais reconhecer, como valor ético, noções tais como: na- cionalidade, origem étnica, sexo, periculosidade, propriedade privada, paternidade. A mulher nômade – símbolo raro na Historia das culturas – é aquela que se lança a experiências afetivas fora das identidades sexistas, fora dos lugares instituídos para as artes, fora da subjetividade feminina ligada à maternidade dentro de casamentos contratuais, enfim, fora do modelo bur- guês de vida feminina. O símbolo de maior senso comum da mulher nômade é o da cigana. (ANDRÉ, 2011, p. 07)

A ação tange a questão da alteridade, já que o exercício de conviver com o “estranho”, o “outro”, o “diferente” só é possível na vida pública, nas áreas comuns, onde cada um sai de sua bolha privada e parte para dinâmica da vida coletiva. Portanto, o enfraquecimento da vida nas áreas públicas afrouxa a capacidade da dimensão relacional dentro das práticas sociais.

A intervenção artística se torna um instrumento da experiência de alteridade na cidade. O que não significa uma relação homogênea, mas a experiência radical do convívio com o “outro”, um campo aberto às descobertas e também aos conflitos. O exercício de alteridade não exclui as diferenças, há um jogo de poder. Aproximando-se do conceito de hospitalidade incondicional de Jacques Derrida, o convívio com o estranho/estrangeiro é sempre uma linha tensionada, pois é marcada pelo medo ao desconhecido.

Para Derrida a hospitalidade incondicional é uma alteridade máxima, sempre um devir. Trata-se do encontro com o outro além de um ideal regulador, ou seja, além das convenções sociais e das leis que governam a vida pública.

A lei da hospitalidade incondicional, a lei formal que governa o conceito geral de hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, pervertível e perversora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei da hospitalidade como direito ou dever, com o “pacto” da hospitalidade. Para dizer noutros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa (chez-moi) (...) e que lhe dê lugar, que o deixe vir, que o deixe chegar, e ter lugar no que lhe ofereço, sem lhe pedir reciprocidade (a entrada num pacto) e sem mesmo lhe perguntar o nome. (DERRIDA, 1997, p.40)

Derrida defende a possibilidade de um acolhimento incondicional ao “outro”. Mas, potência do acolhimento absoluto e sua própria impossibilidade (já que o sujeito sempre reserva algo que é de seu domínio) gera um constante movimento de reinvenção da relação com o outro e da própria dinâmica com o mundo. Isto é, a constante produção de novas subjetividades, o sujeito não é mais o mesmo após o encontro com o “outro”, ele é retirado de seu local de conforto e certezas. A outra intervenção Troco Bananas por Samba, do Mapa Xilográfico em parceria com professoras e alunos do Instituto de Artes da Unesp, também revela o potencial de aproximação e diálogo entre desconhecidos.

A ação surgiu das investigações do território da Barra Funda, onde a universidade está localizada. Como já mencionado no capítulo anterior, o bairro era habitado por muitos negros e um dos pon- tos importantes para as trocas culturais era o Largo da Banana, atualmente compreende a parte do viaduto que liga os dois trechos da Avenida Pacaembu. O largo era conhecido pelas trocas de mercadorias, a venda de bananas e pelas rodas de samba.

A intervenção remete ao passado do bairro e toca na questão da gentrificação que ocorre na Barra Funda devido aos grandes empreendimentos imobiliários, transformando a paisagem e segregando aqueles que não possuem poder econômico exigido nas novas formas de vida dos condomínios de alto padrão. Assim, os artistas saem às ruas, percorrendo a estação rodoviária, o Memorial da América Latina, cantando sambas e convidando as pessoas a cantarem seus sambas preferidos em troca de bananas.

Figura 82: Troco banana por Samba, Estação de Metrô Palmeiras- Barra Funda, São Paulo, 2012. Fonte: Acervo do Mapa Xilográfico.

O Largo da Banana é conhecido como um dos berços do samba paulistano e remonta ao início do Século 20, época em que os negros se encontravam próximos a linhas do trem para carregar as mercadorias e, entre um trem e outro, conversavam, praticavam a tiririca (espécie de capoeira), ou faziam rodas de samba. No local, mais adiante, forma-se o primeiro cordão carnavalesco de São Paulo, o Grupo Carnavalesco Barra Funda.

Na intervenção Banana por Samba, proposta em 2011 e 2013 um grupo saiu às ruas, com seus instrumentos musicais e um carrinho cheio de bananas, propondo aos transeuntes que can- tassem um samba em troca de uma banana. Nesse cortejo a memória do Largo da Banana é remontada e ritualizada.

Último Sambista

Geraldo Filme (1927-1995)

Adeus...

Tá chegando a hora Acabou o samba

Adeus, Barra Funda, eu vou-me embora Veio o progresso

Fez do bairro uma cidade Levou a nossa alegria Também a simplicidade... Levo saudade

Lá do Largo da Banana Onde nóis fazia samba Todas noites da semana Deixo este samba

Que eu fiz com muito carinho Levo no peito a saudade Nas mãos, o meu cavaquinho! Adeus, Barra Funda.

Figura 83: Samba nas ruas do bairro Barra Funda. Foto: Claude Lévi-Strauss/Acervo Instituto Moreira Salles Fonte: http://www.lopes.com.br/blog/conheca-seu-bairro/

descubra-barra-funda-importante-bairro-de-sp/#axzz4jACsytf8

A intervenção se apoia em dois elementos: o samba e a banana, brincando com marcas da cultura brasileira, promovendo o encontro entre as pessoas por meio da festividade. Conforme o grupo aponta há uma noção de ritual no trabalho, de maneira simples os artistas instauram uma atmosfera afetiva, uma cerimônia social para discutir a própria cidade.

Há uma abertura para momento lúdico, criando novas sensorialidades no cotidiano. O trabalho é uma experiência estética que potencializa o encontro, permite relações afetivas com a cidade para além da objetividade funcional que domina o dia-a-dia.

Figuras 84 e 85: Troco banana por Samba, Estação

de Metrô Palmeiras- Barra Funda, São Paulo, 2012.

A ação afeta várias camadas, uma delas é a questão do passado, das memórias de onde se vive, do patrimônio imaterial de nossa cultura: o samba. A arte contemporânea trabalha muito nesse viés de coletar os “restos”, dar visibilidade ao que está apagado, escondido. A arte mostra que saber habitar é tomar posse daquilo que já existe e ressignificar. A intervenção aqui revela como os lugares têm significados para além das construções materiais visíveis, são convivências e experiências múltiplas que atravessam o espaço. Passado, presente e futuro estão emaranhados, trata-se de tempos empilhados. Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações conquistadas na dor e no prazer do corpo. (CERTEAU, 1994, p.189)

A outra camada é a experiência corporal, de uma partilha sensível com o “outro”, o “desconhecido”. A caminhada festiva tocando samba e ofertando bananas depende da disponibilidade de um corpo, o desejo do encontro, o exercício da alteridade por meio de uma sensibilidade distinta da prática usual daquele local de passagem.

Conforme aponta Fontes (2014, p. 53) as ocupações feitas pelas intervenções temporárias são táticas de conquista do espaço, por meio de um impulso lúdico, de uma dimensão ativa são capazes de des- cobrir potencialidades, recuperar lugares. A intervenção coloca o espaço em ação, em movimento, poetizando o espaço urbano.

Tudo junto

e misturado:

arquitetura da

(co)existência

O

objetivo da análise das intervenções artísticas, entendidas como práticas do dissenso, foi con- tribuir com as reflexões sobre os espaços públicos e a vida coletiva na cidade de São Paulo, de um lado denunciando problemáticas urbanas, e de outro enunciando um desejo de amabilidade, de reinvenção de uma nova subjetividade coletiva.

Assim, se evidencia como as ações artísticas efêmeras reverberam na região Centro-Barra Funda como experiências de estranhamento, ruptura, participação e jogo, desmontando a lógica da fun- cionalidade/consumo e indiferença que impera no espaço público.

A pesquisa explicita como os territórios têm significados para além das construções materiais, car- regados de memórias e experiências múltiplas. Os espaços públicos são os lugares do convívio, da vida coletiva, em que o exercício da alteridade pode ser praticado. As intervenções artísticas, com a liberdade do universo da arte, adentram o território por meio da perspectiva de quem nele habita, propondo um “corpo a corpo amoroso” entre sujeito e espaço. Além disso, são ferramentas que promovem visibilidade aos conflitos sociais, as problemáticas da vida urbana. A arte pode tanto indicar desejos, suscitar relações apaixonadas como evidenciar as linhas de tensão na vida pública. Conforme defende Lefebvre em o Direto à Cidade (1991) é no âmbito urbano que há a pluralidade, a diversidade, bem como a disputa pelo território. Sabendo que o capital financeiro, sobretudo o mercado imobiliário, devora o território, definindo usos e os grupos sociais que têm direito aos espaços devido ao afrouxamento do papel do poder público, a cidade se torna campo politico de negociação incerta, transformando os sujeitos em espectadores/consumidores da própria vida coletiva. E, com isso, gerando a segregação territorial, o processo de gentrificação, que afasta os grupos de poder econômico inferior.

Dentro desta lógica corpo/mercadoria/cidade há nos tempos atuais a forte marca da velocidade. A vida na metrópole é apressada, ainda mais em São Paulo, a questão da produtividade torna os corpos verdadeiras máquinas, a abertura para o ócio, desfrute, o deleite é para poucos, exclusivi- dade de um grupo.

O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de pala- vras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a ideia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história. (SANTOS, artigo para Folha de São Paulo, 2001).

Apesar desse discurso hegemônico, conforme Santos traz, há vetores de forças opostas agindo no campo cotidiano. Há um movimento para novos parques, espaços de permanência e convivência

como exemplo a apropriação do Minhocão. Então, o cotidiano é o lugar que coexistem pessoas, temporalidades, desejos, possibilidades. Ainda que o domínio na vida coletiva seja do corpo/mer- cadoria e do tempo fugaz, é na vida ordinária que os praticantes da cidade criam outras narrativas, linhas de fuga, brechas.

É no campo do cotidiano que a intervenção artística atua abrindo possibilidades, convocando os praticantes da cidade a terem uma experiência sensível, abrindo uma fenda no tempo-espaço. As apropriações realizadas pelas ações dos coletivos de arte selam um pacto entre sujeitos e cidade, incitam o “pensar juntos”, retirando o modo estéril e anestesiado dos corpos na vida ordinária. Pelos planos afetivos, oníricos, artísticos se rompe a lógica mercadológica, funcional. Há uma aber- tura no tempo, um momento de desfrute, o corpo se desautomatiza, pelos sentidos, do com- portamento de consumidor. Uma simples balança feita de pneus no Vale do Anhangabaú acorda os sentidos, brinca com as memórias, revela que a realidade é sempre carregada do possível, de constantes invenções.

A intervenção também aponta iniciativas do “embaixo”, não se espera que o planejamento estratégico defina a relação do sujeito com o território, pelo contrário, criam-se novas relações, percepções. A experiência que se dá entre corpo/espaço/tempo está sempre apoiada em uma estrutura física. O corpo é uma estrutura e o espaço (arquitetura) é a outra. Desta maneira, a intervenção é um dispo- sitivo que dilata o tempo e aciona formas variadas dessa interação, quebrando o fluxo normativo, fazendo desabrochar medos, desejos, vontades no que diz respeito à vida coletiva. Desta maneira, a pesquisa considera a arte urbana como um agente de produção do espaço, conforme aponta Pallamin ao se referir as reflexões de Lefebvre:

É neste sentido lefebvriano que a arte urbana foi definida anteriormente, como prática social relacionada a modos de apropriação do espaço urbano. Enquanto “espaço de representação”, a obra de arte é também um agente na produção do espaço, adentrando-se nas contradições e conflitos aí presentes. Tomando-se o território urbano como campo de processos sociais, a arte urbana, nesses termos, pode alinhar-se com interesses destacadamente distintos na produção da cidade. Esta abordagem da cidade como forma social ao invés de objeto físico (não como infraestrutura externa aos “usuários”, mas produzida por eles) encara a arte urbana como um certo empenho na requalificação do seu cotidiano. (PALLAMIN, 2000, p.46)

Portanto, compreendendo que o direto à cidade é de todos, e que os espaços tem significados para além de suas construções materiais, as intervenções artísticas trabalham com a ética da convivên- cia, exercício de alteridade que se dá na esfera pública. Entendendo que o conviver é acercar-se do outro, da melhor maneira possível, mas sabendo que a relação resguarda certa distância. A ética da convivência é a constante reinvenção de subjetividades, outra lógica de existir além do corpo/ mercadoria/funcional. Isto é, as formas de ocupar são reinventadas, estão em um fluxo criativo que permite dar novos sentidos aos usos dos espaços e as relações ali existentes.

Diante do esvaziamento da esfera pública baseada na extrema valorização da intimidade, da privacida- de, dos muros altos, do retraimento e do silêncio, as intervenções são ações de infiltração, trabalham na crença da contaminação do existente, promovendo encontros, o exercício da alteridade é o que subsidia os desejos dos coletivos de arte ao fazer ações nos espaços públicos. É a compreensão que o campo político, a vida coletiva se faz na cidade.

As intervenções artísticas reafirmam a cidade como o grande local de encontro, de descobertas. Assim, reivindicam, por meio de táticas, a arquitetura da (co) existência. A ação é uma proposição baseada na ética da convivência, ou seja, é uma vivência permeada pela ludicidade. As práticas do dissenso são jogos e o jogo traz uma superação do medo de se relacionar com desconhecidos, do