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Corpo e território: paisagem urbana é paisagem humana

Partindo da ideia de que a cidade é um corpo coletivo, é possível pensar que esse corpo é formado por uma rede de trajetórias individuais, ou seja, é um tecido infinito de possibilidades, de trajetórias corporais. Assim, retomando as dobras deleuzianas (FONTE), há uma relação de espaço-tempo que cria territórios, carregados de memórias e subjetividades, e que constrói e afeta a sua materialidade. O urbano é a relação do homem com o externo, portanto é essa coexistência que compõe a paisa- gem da cidade, agrega significado ao espaço, e que se transforma no território de Rolnik ou no lugar praticado de Certeau. Assim, o corpo não se insere na cidade e o espaço não é um buraco vazio à sua espera. É uma constante troca, interação do corpo e o espaço, e são esses processos que definem e transformam a identidade dos lugares.

Para Mongin em A condição urbana – A cidade na era da Globalização (2009) é na relação entre corpo individual e corpo coletivo que surge a identidade da cidade, sua forma enquanto cidade singular. Mas também há tantas poéticas na cidade quantos corpos que a percorrem e nela se aventuram. Dessa maneira, a experiência corporal e mental estabelecida com a cidade se associa diretamente à formação da liberdade ou não dos sujeitos. Aqui, a experiência mental é a ideia de cidade que se forma a partir da experiência com ela, é menos a construção física do espaço e mais a temporalidade, a memória. Assim, o espaço urbano é uma tensão, pois habitá-lo é criar um espaço de presença, espaço-tempo dentro de uma esfera que é também coletiva, de uma temporalidade compartilhada e ao mesmo tempo individual.

Se a cidade é essa unidade simbólica que evoca uma memória e antecipa um futuro, ela exige simultaneamente lugares-limiares, entremeios que permitem às descontinuidades tomar forma. A cidade seria primeiramente esta aqui: a instauração comum de uma relação, de uma referência. (MONGIN, 2009, p. 53)

E nessa unidade simbólica que é a cidade – uma imagem mental irrigada e que permite uma formação coletiva, no sentido de uma significação política, é só por meio dessa relação com ela que se dá a experiência de libertação. O que se pode afirmar é que o aprendizado da liberdade se torna possível pela forma da cidade, dos trajetos percorridos e que surgem nas errâncias cotidianas. É o estado de

tensão da experiência coletiva urbana que pode levar à liberdade e essa experiência é um estado de presença, de tempos empilhados em diferentes corpos e suas infinitas possibilidades.

Então, as práticas de intervenção artística nos espaços públicos da cidade são formas de despertar o estado anestesiado e automatizado dos corpos em uma experiência de cidade fortemente caracterizada pelo processo do corpo-mercadoria. As ações artísticas agem nessa relação corpo-cidade, provocam atravessamentos e rupturas nas cadências cotidianas.

Retomando Jacques (2013), a espetacularização das cidades contemporâneas afeta as dinâmicas sociais cotidianas, diminuindo a participação do cidadão e a experiência corporal de apreensão da cidade, o que afeta diretamente a educação sensível, as formas de percepção e atuação no espaço coletivo. Para Jacques, a espetacularização das cidades traz o empobrecimento da experiência corporal na cidade ao homogeneizar a atuação no espaço público. A autora aponta que os errantes urbanos são as pessoas que rompem com essa relação consensual e mercadológica da experiência com a cidade. É justamente esse corpo dilatado presente na experiência cotidiana que subverte, profana e reinventa as relações.

O processo mais vasto de espetacularização está diretamente relacionado tanto à atual pacifica- ção secutária, homogeneizadora e consensual dos espaços públicos quanto ao empobrecimento da experiência corporal das cidades, enquanto prática ordinária cotidiana. Isso me faz repensar a questão do corpo cotidiano no espaço urbano, como dizia Milton Santos, da corporeidade dos homens, que tem o corpo como uma certeza materialmente sensível e são aqueles “para quem as imagens são miragens, não podem, por muito tempo estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo suas fabulações” (Santos, M. 1196. P. 261). São esses homens lentos que ainda caminham pelas ruas e que De Certeau chamou de praticantes ordinários da cidade: embaixo, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade (...). Esses praticantes jogam com os espaços que não veem, têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso”. (CERTEAU, 1996, p. 171)

É possível pensar que os artistas das intervenções artísticas são esses errantes urbanos que, diante do processo de espetacularização da cidade, ativam outras formas de experiência corporal, não apenas interferindo na paisagem urbana enquanto materialidade, mas alterando as maneiras de percepção e relação com o território. As ações artísticas despertam as pessoas dos seus processos automatizados e propõe relações menos estéreis. Muitas vezes, o artista é aquele que enxerga os “homens lentos”, os “praticantes ordinários da cidade” e dá visibilidade a essas pessoas, denota outras lógicas para além do corpo-mercadoria ou corpo-utilitário

A pesquisa dessa relação corpo-cidade muito interessa para o estudo das dinâmicas nas cidades con- temporâneas. Jacques e Britto (2010) denominam de Corpografia este tipo de cartografia realizada pelo e no corpo – as diferentes memórias urbanas inscritas no corpo, o registro das experiências corporais da cidade, uma espécie de grafia da cidade vivida que fica inscrita, mas ao mesmo tempo configura o corpo de quem a experimenta.

Este corpografia aponta para possibilidade de buscar a corporalidade entendida como possibilidade de micro-resistência à relação corpo-mercadoria, à espetacularização da cidade. É na experiência com a cidade, é no corpo ordinário, cotidiano que se inserem as questões dos usos dos espaços, da constituição da vida coletiva, o exercício da alteridade e o aprendizado da liberdade.

Retomando o artista Hélio Oiticica, é possível refletir como os Parangolés exemplificam a corpora- lidade como ferramenta de microrresistência. O Parangolé, uma capa de várias camadas de tecido que envolve o corpo, foi mostrado ao público pela primeira vez em 1965, em uma mostra de arte no MAM do Rio de Janeiro. Na ocasião, Hélio chegou ao museu em forma de cortejo e, com ele, passistas da Escola de Samba Mangueira vestindo as capas, cantando e sambando. E, assim, levou o “morro” para o “asfalto”, para um ambiente elitista.

Os Parangolés vão além das famosas capas – que podem ser claramente associadas aos trajes tropicais de Flávio de Carvalho (...) - eles formam todo um programa, um programa não pro- gramado ou, como Oiticica preferia dizer, “um programa in process” ou ainda um “programa ambiental”, que traduz e propõe aos participantes (ou “participadores”) um processo complexo de ambiências do morro da Mangueira, vividas por Hélio Oiticica nestes anos 1960 (samba/ participação comunitária/arquitetura). Não há ideia de representação, imitação, mimese ou qualquer tipo de formalismo simplista ou estetizante, uma vez que o que o artista quer trazer é a temporalidade (precariedade/efemeridade/fugacidade) desses espaços urbanos e a experiência corporal de quem os vivencia, de quem faz a experiência. (JACQUES, 2014, p. 179)

Figura 2: Parangolé. Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 1965. Fonte: http://artcontexto.com.br/artigo-edicao04-wesley_stutz.html

Portanto, essas ações artísticas são ferramentas que, inseridas na experiência corporal cotidiana da cidade, denotam os dissensos, rompem com as imagens consensuais do espaço urbano. Pode- pen- sar em uma guerrilha do sensível, que cria um jogo entre as pessoas e entre elas e o território. Não é uma simples oposição, mas um convite à experiência de incorporar o corpo na cidade e a cidade no corpo a partir de outra perspectiva, isto é, uma estética relacional de Bourriaud (2009), uma partilha do sensível7 de Ranciére (2009). E é pela ativação dessas outras formas de sensibilidade que o cotidiano pode ser reinventado

(...) a forma só assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociação com o inteligível que nos coube. Através dela, o artista inicia um diálogo. A essência da prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos. (BOURRIAUD, 2009, p. 30)

7 “Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência comum e dos recortes que

nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum compartilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funde numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propria- mente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha”. (RANCIÉRE, 2009, p.15)

A

tualmente, há diversos coletivos e artistas que propõem novas derivas, colocando as questões do direito à cidade e as relações nos espaços públicos como alicerces das ações erráticas. O curador italiano Jacopo Crivelli Visconti, em seu livro Novas Derivas (2014), analisa as produções artísticas contemporâneas das últimas quatro décadas, investigando as novas derivas e as proposi- ções dentro de uma estética relacional, conforme Nicolas Bourriaud (2009). Segundo o autor, são obras que pensam em novas possibilidades de convivência e, assim, usam o campo ético e público como ponto de partida de muitas criações, além de acontecerem no espaço público ou a partir dele. São derivas abertas aos desvios, experiências físico/sensoriais com a cidade, que utilizam o aspecto espontâneo do cotidiano, buscando encontros possíveis.

Nestas produções, a meta é o próprio caminho, o andar como prática estética ativando obras rela- cionais que se opõem à sociedade do espetáculo, criando jogos e vivências coletivas. Outro aspecto trazido por Visconti é a relevância do registro dessas produções, já que são fugazes, efêmeras. Desta maneira, os registros e relatos, por mais incompletos que sejam, são instrumentos poderosos para ampliar o alcance das experiências erráticas. Para Jacques (2014), o estudo das narrativas errantes (registros, relatos) nos leva a pequenas resistências e insurgências da experiência urbana, muitas vezes invisíveis, escondidas, e, em particular, à experiência da alteridade na cidade.

Dentro do contexto da cidade de São Paulo, é possível mapear os coletivos que trabalham na perspectiva das novas derivas e ações intervencionistas. A maioria, de caráter efêmero, acontece e desaparece no espaço da cidade. Outras deixam um rastro, como a memória que ativa a existência da ação, enquanto algumas criam interferências mais alongadas no tempo. O que interessa compreender é que há uma constante em criações coletivas projetadas para o espaço público. Estas criações se configuram como intervenções urbanas, entendendo as intervenções como ferramentas capazes de ativar questões urbanas e zonas de memória coletiva, utilizando de diversas linguagens artísticas na composição das experiências. É relevante a pesquisa e registro desses vários coletivos, artistas e suas intervenções, visto que é um fenômeno atual e de caráter efêmero, cujas obras se dissolvem no tempo veloz da vida contemporânea. O que se pretende na pesquisa é investigar essas ações artísticas como relatos, narrativas das dinâmicas do cotidiano de São Paulo. Os artistas são guardiões e difusores das riquezas e invenções do cotidiano. Não só tornam algo visível, mas trazem visibilidade para zonas opacas e fazem ressoar as vozes abafadas presentes nas ruas. Como diz Garcia Canclini (2010, p. 04), talvez “essa seja uma das razões pelas quais a arte está se convertendo em laboratório intelectual das ciências sociais e as ações de resistência sejam sua experiência para elaborar pactos não catastróficos com as memórias, as utopias e a ficção.”

Evidentemente, o cotidiano é o lugar das ações mínimas, que cumprimos sem quase perceber e rotineiramente (...) mas é quase impossível definir suas bordas, os interstícios onde o cotidiano se torna extraordinário. E mais complexo ainda é tentar entender o que é que torna extraordinário o próprio cotidiano, o que é que nos faz saber, no fundo da alma, que é exatamente nas pequenas ações corriqueiras e monótonas, ou até tediosas, que a vida pulsa com mais força, e que é para isso que vivemos, disso que sentiremos falta algum dia. (VISCONTI, 2014, p. 70)