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Para a pesquisa, foi feita uma cartografia das intervenções artísticas dentro do recorte Centro-Barra Funda. Os capítulos seguintes contemplam as conexões entre as obras a partir de suas semelhanças, das formas que ativam as relações entre sujeito e espaço urbano, evidenciando os detalhes. Entre os vários coletivos e trabalhos, ganham destaque na pesquisa quatro deles: Coletivo Mapa Xilográfico, Coletivo Bijari, que há mais de dez anos atuam na cidade, o Coletivo PI com sete anos de pesquisa e o Muda Coletivo em parceria com Basurama, grupo que atua mais de dez anos por várias cidades do mundo e com sede na Espanha.

Portanto, o objetivo não é definir “categorias estéticas” ou pensar a relação fotogênica da intervenção dentro do espaço físico-material, mas sim compreender a arte urbana atentando-se à sua produção dentro de um contexto. Aqui, a arte urbana será vista como uma vertente da produção da cidade, que expõe e materializa suas conflitantes relações sociais. A intervenção é apontada como prática do dissenso (Ranciére), como a tática (Certeau), ou ainda, se configura como uma TAZ – Zona Au- tônoma Temporária de Hakim Bey.

A TAZ, Zona Autônoma Temporária é uma ação, uma possibilidade poética, uma tática instaurada no cotidiano que resguarda a autonomia, a liberdade dos sujeitos. É algo efêmero, um assalto em meio à rotina e todo controle da vida urbana.

A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, “ocupar” clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais - por- que passaram despercebidas, porque nunca se relacionaram com o espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da simulação (BEY, 1991, p. 06)

Quatro critérios foram adotados para seleção das intervenções artísticas inseridas na região Cen- tro–Barra Funda de São Paulo. Vale lembrar que o recorte espacial se deu pela proximidade com os territórios, por meio dos trabalhos artísticos com o Coletivo PI, o que possibilita um olhar mais cauteloso e verticalizado para as problemáticas das regiões. Assim, os critérios são:

I. O território como eixo-central da ação artística:

Intervenções artísticas que utilizarem o espaço público não como cenário, e sim como elemento motor do processo de criação, ou seja, conforme aponta Visconti (2014), a concretude do lugar onde

as obras são produzidas, isto é, onde as derivas acontecem, é quase sempre o elemento central na concepção da obra, e constitui chave de leitura fundamental para sua compreensão.

Aqui, cabe enfatizar que o espaço não é apenas a materialidade de um ponto específico da cidade, mas as relações entre sujeitos e espaço que constituem o território. As obras selecionadas, por vezes, indicaram questões dessa relação, enquanto outras dão visibilidade aos espaços residuais dentro da cidade, isto é, aqueles que não carregam consigo identidade, relação de pertencimento.

II. Conciliação de várias linguagens artísticas:

A arte contemporânea rompe com as fronteiras que definem e separam as linguagens artísticas, podendo uma mesma obra transitar entre as variadas formas e não se definir em nenhuma delas. A importância da obra é deslocada enquanto um universo de códigos de linguagem fechados em si, dando luz à proposição artística e sua afetação no público/espaço, independentemente de códigos previamente partilhados. Assim, as intervenções aqui analisadas são exemplos dessa vertente da arte contemporânea. Ou seja, não se trata aqui de analisar o teatro de rua ou a obra com sua linguagem definida que se descola para os espaços públicos, mas olhar as ações artísticas que se fundamentam na própria dinâmica cotidiana de um determinado território.

O caráter plural da arte contemporânea capaz de conciliar diversas linguagens distendeu o seu suporte tradicional para uma escala urbana. A adoção destes espaços da vida cotidiana revela a vontade de reaproximação entre o sujeito e o mundo. A arte pública terá papel relevante neste processo, tendo em vista a sua inserção na cidade (agora lugar-realidade) e a sua relação direta e imediata com os transeuntes (agora o público de arte). Estas obras-manifestações não possuem o seu valor estético aderente à forma, mas sim à sua condição de acontecimento-efêmero, em que a participação do público faz-se, muitas vezes, relevante e, simultaneamente, imperceptível. A arte pública interage de tal modo com a realidade da cidade e os seus fluxos que não é percebida como tal. A desmaterialização da arte é fruto das reflexões contemporâneas sobre o seu papel e lugar. A cidade como lugar da vida cotidiana, do coletivo, do fluxo de ações, dos acontecimentos e temporalidades e da acumulação histórica, oferece reflexão estética ao converter-se em parte das obras-manifestações de arte pública. (CARTAXO, 2009, p. 04, grifo do autor)

III. Experiência Corporal como vetor da intervenção artística:

Outro critério para escolha da intervenção é que ela seja uma ativação da experiência corporal, tanto pela presença do artista/performer ou por dispositivos que convidem os transeuntes a terem outras formas de percepção sensorial/corporal com a cidade e seus habitantes. Isso significa que o grafite ou a instalação visual, como algumas obras do Eduardo Srur, por exemplo, não serão foco dessa análise. Ainda que despertem o olhar para questões opacas ou adormecidas no território, sendo como tatuagens da pele do urbano, não serão contempladas na pesquisa, já que seria necessária uma abordagem mais ampla.

IV. Estética do Dissenso:

As obras escolhidas também devem estar dentro da noção de estética do dissenso, de Ranciére (2009), sendo ações de microrresistências urbanas, de natureza crítica e sensível. Desta forma, não serão abordados trabalhos que interferem no território, mas que já foram capturados pela publicidade como estratégias de marketing. Pois, nestes casos, são obras encomendadas para interferirem na dinâmica urbana com o propósito de reafirmar os consensos, a homogeneização, o corpo-mercadoria. A dimensão política dos coletivos, segundo Jacques Rancière, consistiria em evidenciar“simples práticas” – “modos de discursos”, “formas de vida” que operariam como forma de resistência à sociedade do espetáculo. (Rancière, 2004). Ao “artista relacional” caberia apenas criar as condições de possibilidade para que “experiências comunitárias” se exteriorizassem. Esse artista “desenharia esteticamente” as “figuras de comunidade”, ou antes, favoreceria sua evidenciação (ou “valor de exibição”), recompondo deste modo a “paisagem do visível”: a relação entre o “fazer”, “ser”, “ver”, “dizer”. (Rancière, 2005). E nessa “mostração de signos” (de um “lugar”, de um “grupo”) teríamos, ainda segundo Rancière, não a simples “ficcionalização do real”, mas como em certas obras literárias um embaralhamento dos modos de enunciação. Os coletivos seriam “práticas artístico-sociais” que encontrariam seu “conteúdo de verdade”, - na mescla entre a “razão dos fatos” e a “razão da ficção”. (id.). Nessas práticas Rancière vê, portanto, uma tentativa de reconstituir o sentido per- dido de um mundo comum, reparando as falhas dos vínculos societários. (FABBRINI, 2013, p.174)

É muito frequente, na última década, grandes marcas e instituições usarem a intervenção artística como instrumento publicitário nas áreas públicas. Um exemplo, muito polêmico, é a Cow Parade, um evento de caráter internacional, que percorre várias cidades do mundo desde quando sua ideia foi levada para os Estados Unidos pelo empresário Peter Hanig, em 1999, após ter sido criada pelo diretor artístico Walter Knapp em 1998, na Suíça. A Cow Parade consiste na exposição, nos espaços públicos, de esculturas de vacas feitas de fibra de vidro com pinturas de diferentes artistas. Na sua concepção original foi projetada para que ficassem brancas e recebessem a pintura dos artistas grafiteiros locais. No entanto, logo foi cooptada pelo marketing e empresas passaram a patrocinar cada vaca, que ganha um colorido próximo às cores do logotipo da sua patrocinadora. Como coloca Nelson Brissac (PEIXOTO, 2012, p. 45 ): “Um objeto decorativo em um espaço público não significa que seja arte. Isto está mais próximo de um produto de entretenimento. Mas não tem consistência artística, muito menos urbana. É um formato limitador”.

As intervenções artísticas abordadas, portanto, serão aquelas que possuem significado crítico dentro do contexto urbano, que reinventam os espaços com seus desvios, atalhos, astúcias.

O relevo dos significados das obras de arte urbana e sua concretização no domínio público dão-se em meio a espaços permeados de interdições, contradições e conflitos. Sua efetivação porta rela- ções de força sendo exercidas entre grupos sociais, entre grupos e espaços, entre interpretações

do cotidiano, da memória e história dos lugares urbanos. Potencialmente (sobretudo quanto às obras de caráter temporário) pode configurar-se em um terreno privilegiado para efeitos de choque de sentidos (negação, subversão ou questionamento de valores). (PALLAMIN, 2000, p.24)