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Uma estética relacional: partilhando o sensível

Aqui a intervenção analisada será colocada como ativadora de uma partilha do sensível, segundo Ranciére, conforme já mencionado, provocando uma fenda na relação espaço-tempo usual das ruas, ativa zonas de tensão, promovendo uma estética do dissenso.

Figuras 73 e 74: Entre Saltos, Centro de São Paulo, 2014. Foto: Murilo Martinez/ Acervo do Coletivo PI

Entre Saltos é uma performance urbana, do Coletivo PI, que trata da figura do feminino no mundo contemporâneo. Foi um dos projetos principais do grupo, sendo contemplado pelo Prêmio Mulheres nas Artes Visuais da Funarte 2014 e realizada em diversas cidades do Brasil.

A intervenção é um coro de pessoas, mulheres e do gênero feminino, que são preparadas para ação por meio de oficina (teórico e prática) e ao final caminham, numa espécie de desfile público, pelas ruas da cidade com um salto no pé e outro na mão. A performance usa o salto como metáfora do equilíbrio/desequilíbrio da mulher atualmente, discutindo sobre o papel e a figura do feminino na esfera pública. A ideia de força e fragilidade.

Ao término da caminhada cria-se uma instalação como uma “escultura social efêmera” com os sapatos. A cada cidade se escolhe qual o trajeto mais significativo e o local para finalizar a intervenção. Em SP e Campinas o grupo contou com a parceria da artista plástica mexicana Ana Teresa Fernandez. Esta artista tem um trabalho sólido em suas telas e performances sobre a questão do empoderamento feminino.

Figura 75: Obra Aquarius (óleo sobre tela) da

artista Ana Teresa Fernandez. Ela recria suas próprias fotografias com pinturas hiper-realistas.

Fonte: http://anateresafernandez.com/ablution/ab05/

A intervenção Entre Saltos é uma deambulação pelas vias públicas. Ela remete ao Parangolé de Hélio Oiticica ou o coro de pessoas em Divisor de Lygia Pape. A ação centra sua força estética na composição de um grande corpo coletivo que borra a paisagem com suas cores avermelhadas. É uma passagem silenciosa e inusitada que rompe o fluxo do cotidiano.

O trabalho questiona sobre a relação de gênero/espaço público, tangenciando reflexões sobre a rua ainda como espaço patriarcal, a violência (muitas vezes velada) e como o corpo feminino ainda é invadido nas ruas. As pessoas são surpreendidas pela imagem de um coro feminino andando em desequilíbrio. A intervenção aqui não vai pela via da partilha do sensível, um quadro em movimento que deixa seus rastros.

Figura 76: Entre Salto, São Paulo, 2014. Foto: Murilo Martinez/Acervo Coletivo Pi

Entre Saltos é uma prática errante, a caminhada que desestabiliza a lógica usual das ruas. Trata-se de um atravessamento, uma vivência para aquelas que caminham, experimentando a cidade de outra forma, um corpo manco e ao mesmo tempo uma fortaleza. E aqueles que cruzam com esse grande coro são “assaltados”, há um choque, primeiro o estranhamento e depois a imagem ecoa: Por que essas cores? Por que o salto sim e outro não? De onde vem? Para onde vão?

O que se instaura e, conseguinte contamina os transeuntes, é um estado de corpo errante, uma forma de apreensão que se relaciona a um saber subjetivo, lúdico e amoroso. São táticas desviatórias que furam a lógica das estratégias, escapam ao controle disciplinar.

Para o errante são, sobretudo as vivências e ações que contam, as apropriações com seus desvios e atalhos. A cidade é apreendida pela experiência corporal, pelo tato, pelo contato, pelos pés. Essa experiência da cidade vivida, da própria vida urbana, revela ou denuncia o que o projeto urbano estratégico exclui, pois mostra tudo que escapa ao projeto, as táticas e micropráticas cotidianas do espaço vivido, ou seja, as apropriações diversas do espaço urbano que escapam às disciplinas urbanísticas hegemônicas, mas que não estão, ou melhor, não deveriam estar fora do seu campo de ação. (JACQUES, 2014, p.280)

Ao se tratar de corpo feminino e a rua, temos uma longa história de desigualdade, do corpo da mu- lher ser resguardado ao espaço da intimidade, da casa, do lar e ao homem ser dado o local da rua. A intervenção rompe essa lógica usual do espaço público, para além do significado do andar, a ação multiplica as possibilidades da experiência corporal com a cidade, desestabilizando a ordem espacial dominante, desviando das proibições, revelando o que está escondido nas histórias das ruas. Aqui, o percurso se torna território:

O artista de rua tende a compreender aquilo que acontece na rua como alegoria de um discurso de poder e, muitas vezes, acaba por escancarar as arbitrariedades, entre significante e significado, do discurso que está na rua (leis de usos dos espaços públicos, machismo, homofobia, modelos de urbanização e outros racismos). Desafia as definições fixadas pelo senso comum. Por exemplo, ao aproximar-se de mendigos ou prostitutas, ao fazer aparecer sua humana condição, fura a cerca imaginária, criada pelo biopoder, em volta dessas pessoas. A presença da arte na rua revela o potencial discurso que pode transformar a rua em campo de concentração. A arte, porém, por seu apelo estético, ao humanizar essas presenças humanas silenciadas, desordena o lugar público, embaralha o ritmo dos transeuntes, questiona as identidades. Quando algo acontece, inverte-se o discurso. (ANDRÉ, 2011, p.07)

Durante a performance nas ruas do centro, ao passar pela Praça da Sé (um marco histórico de São Paulo e local híbrido de usos) o coro ouviu de vários homens com suas bíblias na mão: “ Elas são as tentações, o pecado da carne/ Deus dizia que o diabo viria em tons de vermelho/O pecado é como escarlata” e gritavam e sacudiam suas mãos e corpos no sentido de exorcizar aquelas mulheres e homens/Aqui a referência é a seguinte passagem bíblica: “Vinde então, e argui-me, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã.” ( IS 1.18).

Figura 77: Entre Saltos, Praça da Sé – São Paulo, 2016. Foto: Rodrigo Dionísio/Acervo do Coletivo PI

Ao mesmo tempo em que esses homens gritavam que o coro era o diabo, sendo mais violentos com os rapazes com roupas femininas, outras vozes competiam, eram mulheres trabalhadoras do comér- cio que falavam: “Nós estamos sim, sempre nessa luta para caminhar, ainda não somos respeitadas. Eu me sinto como vocês!” e do outro lado alguns diziam: “ Isso é como o nosso país, nosso sistema manco e manchado de sangue”.

Figura 78: Entre Saltos, morador de rua interagindo

com a ação. Praça da Sé – São Paulo, 2016.

Foto: Rodrigo Dionísio/Acervo do Coletivo PI

Ao atravessar toda praça da Sé, o coro se posicionou nas escadarias da igreja e lá cada participante cortava pedaço de seu cabelo depositando em um turíbulo, que recebeu fogo e a fumaça incensava as pessoas do coro e o lugar. O ato dialoga com a igreja católica e a matança as mulheres/bruxas durante a Inquisição, ao passo, que ainda insere as questões do corpo feminino esquadrinhado pelos dogmas religiosos e o Estado. Neste instante, muitas pessoas paravam suas ações e apreciavam o que acontecia ali. A performance, então, inaugurou uma assembléia, uma discussão pública com vozes dissonantes na Praça da Sé.

Eu quero sugerir que este é precisamente o tipo de contradição performativa que leva não a um impasse, mas à forma de insurgência. Neste ponto não significa apenas situar a canção na rua, mas expor a rua como lugar de assembleia livre. Neste âmbito, a canção pode ser entendida não apenas como expressão da liberdade ou nostalgia de libertação – pensando, que é claramente ambas as coisas – mas também encenação na rua, representação da liberdade de livre assembleia precisamente quando e onde tal ato é explicitamente proibido pela lei. Isto é certamente política performativa, na qual realizar reivindicação para ser legalizado é precisamente o que é ilegal, e

apesar disso é realizado precisamente em desafio da lei na qual o reconhecimento é demandado. (BUTLER; SPIVAK, 2007, p. 63)

A este debate coletivo que se instaura com a intervenção, pode-se associar a noção de contradição

performativa de Judith Butler (2007). Por meio da contradição performativa é possível escancarar os limites de direito legal e os grupos de direito, além de extrapolar as normas convencionais que impõe certa “universalidade” para os sujeitos. Portanto, traz à luz outras formas de subjetivar, o direito de expressar sua identidade/gênero/corpo com liberdade na vida coletiva, no espaço público.

Uma vez rejeitado o argumento de que nenhuma posição política pode ser sustentada na con- tradição performativa, e possibilitada a função performativa como reivindicação e ato cujos efeitos abrem-se no tempo, então nós podemos na verdade apresentar a tese oposta: a de que não pode haver mudança política radical sem contradição performativa. Para exercer a liber- dade e expressar a igualdade precisamente em relação a uma autoridade que impediria ambas é demonstrar que liberdade e igualdade pode e devem-se mover para além de sua articulação positiva. A contradição deve ser apoiada, exposta e trabalhada no sentido de algo novo. (BUTLER; SPIVAK, 2007, p. 66-67)

Percebe-se aqui que há a partilha de uma sensibilidade outra. A intervenção abre uma fenda no espaço-tempo. Há uma suspensão naquele cotidiano. Instaura-se um debate coletivo. A estética que se partilha é do dissenso, pois não se trata de reafirmar o discurso homogêneo, mas sim fazer ressoar vozes, dúvidas. A ação desanestesia os sentidos embaralhando preconceitos e estereótipos. Conforme aponta Jacques (2014) a experiência errática da cidade possibilita microrresistências dis- sensuais, capazes de atuar na desestabilização de partilhas homogêneas e hegemônicas do sensível e das atuais configurações anestesiadas dos desejos.

O dissenso, segundo Rancière, é um conflito estruturado em torno do que significa “falar” da partilha do sensível que delimita o horizonte do dizível e determina as relações entre ver, ouvir, fazer e pensar. O dissenso (ou desentendimento) é menos um atrito entre diferentes argu- mentos ou gêneros de discurso e mais um conflito entre uma dada distribuição do sensível e o que permanece fora dela, confrontando o quadro de percepção estabelecido. Os dissensos ou, como veremos mais adiante, as cenas de dissenso que promovem a emancipação e a criação de comunidades de partilha são ações de resistência que buscam encontrar maneiras de transformar o que é percebido como fixo e imutável. (MARQUÊS, 2011, p.26)

Portanto, Entre Saltos provoca um espaço de partilha e resistência, como estética do dissenso revela as fissuras do grande corpo social, evidencia a tensão entre práticas consensuais e homogêneas (racionalidade normativa e controladora) e práticas dissensuais. É uma tática de sobrevivência à

opressão, ao corpo feminino que é disciplinado. A intervenção ajuda a perceber outras formas de subjetivar, trata-se de colocar em prática uma narrativa de si, questionando certezas partilhadas e quase nunca colocadas à prova.

O espaço dessa partilha, das interações comunicativas, das experiências dos sujeitos, em que o cerne da questão é a política (entendida como os modos de vida e resoluções coletivas) só pode ser o espaço comum, o espaço público, onde a vida ordinária acontece, desenhando as relações entre as pessoas e seus desejos.