• Nenhum resultado encontrado

Errâncias Urbanas: um caminho pelas flanâncias, deambulações e derivas

A história das humanidades é a história do caminhar. Assim, segundo Francesco Careri em Walks-

capes (2013), o ato de atravessar o espaço nasce da necessidade natural de mover-se para procurar alimentos e informações. Mas, uma vez sanada as exigências primárias, o caminhar transformou-se numa forma simbólica que tem permitido o homem habitar o mundo. Modificando os significados dos espaços atravessados, o percurso foi a primeira ação estética que penetrou o território do caos, construindo aí uma nova ordem sobre a qual se tem desenvolvido a arquitetura dos objetos situados.

Foi a partir do ato de caminhar que o homem travou as mais importantes relações com o territó- rio, observando paisagens e construindo novas. Careri defende que andar pelas cidades é uma das maneiras mais poderosas de ativar experiências físicas com o espaço construído, novas formas de percepção e, assim com Paola Bereinstein Jacques (2014), QUE aponta como as ações de derivas, as deambulações, as práticas do nomadismo e as errâncias urbanas são poderosas ferramentas para investigar as cidades e seus modelos de arquitetura/urbanismo, redefinindo territórios, questionando o urbanismo hegemônico e servindo de instrumento para experiências de alteridade.

Em Elogio aos errantes (2014), Jacques mostra como a experiência errática, pensada como ferra- menta, é um exercício de afastamento voluntário do lugar mais familiar e cotidiano em busca de uma condição de estranhamento, em busca de uma alteridade radical. Desta maneira, tanto Careri como Jacques revelam pontos críticos dos processos de urbanização das grandes metrópoles. Por fim, e não menos importante, há o discurso do medo, o perigo de estar na rua, o abandono do espaço público visto como terra de ninguém, a crescente violência e a visão do outro (estranho que caminha pelas ruas) sempre como um inimigo em potencial.

Na América do Sul, caminhar significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espa- ço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos quase sempre percebidos como inimigos potenciais. Simplesmente, o caminhar dá medo e, por isso, não se caminha mais; quem caminha é um sem-teto, um mendigo, um marginal. (...) Percebi que, nas faculdades de arqui- tetura, os estudantes – ou seja, a futura classe dirigente – sabem de tudo de teoria urbana e de filósofos franceses, acham-se especialistas em cidade e espaço público, mas na verdade, nunca tiveram a experiência de jogar bola na rua, de encontrar-se com os amigos na praça (...) Que tipo de cidade poderão produzir essas pessoas que têm medo de caminhar? (CARERI, 2013, p. 170)

A cidade de São Paulo abre a possibilidade de pensar as configurações do urbanismo hegemônico, apesar das peculiaridades de cada território. Compreendendo o contexto, pode-se definir três rele- vantes práticas, em tempos distintos, que se apoiam nas errâncias pela cidade, criando espaços de aproximação, afetividade e intervenção nas cidades.

As três práticas de errâncias são as flanâncias, as deambulações e as derivas. Todas partem da ideia do nomadismo, como aponta Careri (2013) e Berenstein (2014) ao recuperarem conceitos trazidos por Deleuze e Guattari (1996) quanto à nomadologia, isto é, o relato das práticas nômades, organização da história do nomadismo que é simultânea à história das cidades.

Deleuze e Guattari (1996) resgatam o entendimento clássico sobre a relação do homem com o território em dois grandes grupos: os nômades e os sedentários. Os sedentários produziram a permanência no espaço, a modificação do território (arquitetura), as fronteiras entre uma terra e outra. Assim, nascendo o conceito de polos, de cidade. Já os nômades são os habitantes dos espaços vazios, dos desertos, sendo experimentadores aventureiros.

Segundo os autores, o traço nômade, por sua vez, segue pistas ou itinerários rituais, mas não tem a função do percurso sedentário que consiste em distribuir aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um a própria parte, e a partir daí regulando a comunicação entre as partes. O traçado nômade faz exatamente o contrário, distribui homens e animais num espaço, aberto, indefinido.

Outro conceito importante trazido por Deleuze e Guattari é a imagem da cidade urbana (sedentária) como um espaço estriado, fazendo alusão à ideia das fronteiras, limites, divisões dos mapas, enquanto o espaço dos nômades é o espaço liso (deserto, estepe, mar).

Apesar de parecerem antagônicas as imagens de espaço estriado (sedentário) e espaço liso (nô- made), a proposta é compreendê-los como processos coexistentes, revelando os errantes urbanos que cavam espaços lisos nos espaços estriados das cidades, apontando os espaços lisos residuais, criando errâncias dentro da própria metrópole. Os errantes, assumindo a lógica nômade (bandos, margens, movimento), caminham pelo labirinto das próprias cidades. Entre os errantes urbanos encontramos vários artistas, escritores, arquitetos, pensadores que praticaram e praticam errân- cias urbanas voluntárias.

Partindo destes pontos centrais, temos as três práticas errantes como importantes referências de uma errantologia. No primeiro momento, as flanâncias do final do século XIX, acompanhando o pro- cesso de modernização das cidades da Europa, principalmente Paris. O termo é originário da figura do flâneur de Baudelaire – esse errante era o que observava as grandes cidades se modernizando, aumentando a velocidade das produções, do tempo dos sujeitos na cidade. Porém, o flâneur reage ao fascínio da modernização. Ele traz a questão do ócio e da lentidão em contraponto à velocidade e ao trabalho exacerbado. É um protesto contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas, que retira o tempo da convivência e substitui pelo tempo das máquinas.

Walter Benjamin (1991) tratou da figura do flâneur como aquele que busca e encara o “estado de cho- que” vindo das transformações de uma idade antiga e a emergência da metrópole moderna. O flâneur é como uma tartaruga que caminha lentamente pela multidão, ele vai ao seu encontro e se deixa levar pelos passos lentos, pelo anonimato, mas sempre observando com criticidade a arquitetura, o ritmo acelerado, o tempo do outro e as relações dos homens entre si nessa nova configuração de cidade.

Fugindo de uma normatividade marcada pela polarização do homem e do cidadão, resistindo à divisão esquizofrenizante do espaço moderno, Baudelaire veste a máscara do flâneur: ele é ator e espectador ao mesmo tempo, como a prostituta, “que em hipostática união é vendedora e mercadoria” (Benjamin, 1991, p.40). O flâneur não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Perfeitamente à vontade no espaço público, o flâneur caminha no meio da multidão “como se fosse uma personalidade” (ibidem, p.81), desafiando a divisão do trabalho, negando a operosidade e a eficiência do especialista. Submetido ao ritmo de seu próprio devaneio, ele sobrepõe o ócio ao “lazer” e resiste ao tempo matematizado da indústria. A versatilidade e mo- bilidade do flâneur no interior da cidade dão a ele um sentimento de poder e a ilusão de estar isento de condicionamentos históricos e sociais. (D’ANGELO, 2006, p. 242)

Como segunda prática errática temos as deambulações, que surgem com os movimentos artísticos de vanguarda. Estas experiências erráticas eram realizadas pelos artistas do Dadaísmo e Surrealismo em excursões coletivas pelas ruas das cidades, sem um mapa prévio, caminhando de forma espontânea, explorando locais desconhecidos, criando rupturas na postura/comportamento automatizado quando se está nas ruas. Os artistas, sobretudo, questionavam o presente e buscavam outras visões para Arte, defendendo a ideia de que a Arte deve estar no espaço da vida, deixar de ser institucionalizada, aproximando as práticas artísticas do espaço ordinário. Dessa forma, as deambulações eram andan- ças voluntárias e provocativas, de caráter fugaz, que imprimiam estranhamente as automatizações e sistemas do pensamento moderno. Segundo Jacques (2014), os surrealistas inverteram a etnografia mais clássica, fazendo uma etnologia às avessas, ou seja, buscando o estranho no banal cotidiano da cidade moderna em transformação, tornando estranho e incompreensível o que é familiar no seu próprio cotidiano urbano.

Nesse momento, no Brasil, artistas também realizavam errâncias urbanas diante das ambiguidades da modernidade brasileira: de um lado um internacionalismo modernizador e de outro um naciona- lismo, ou nativismo. A arquitetura e o urbanismo revelavam as ambiguidades do projeto moderno em algumas cidades do Brasil. Pode-se argumentar que o urbanismo, assim como fábricas, redes de transportes e arranha-céus, assumiu uma natureza marcadamente simbólica. O projeto do urbanismo no Brasil procurou criar espaços para uma sociedade moderna que ainda não existia, terminando por reduzir-se às imagens fragmentadas de modernidade. Esse foi um período complexo no qual muitos temas se entrecruzavam: engenheiros e arquitetos disputando o mercado, um novo campo disciplinar (urbanismo) emergindo entre essas duas profissões e uma discussão mais complexa sobre a identidade da sociedade brasileira tomando corpo.

Diante desse contexto, um dos importantes representantes das errâncias urbanas é o artista Flávio de Carvalho. Com suas ações nas ruas, ele questionava os padrões, as automatizações, os costumes, provocando as multidões e relatando em seus livros as experiências erráticas, revelando os aspectos relacionais entre o homem, a cidade e as normas sociais.

Em 1956, o artista Flávio de Carvalho foi às ruas do centro de São Paulo/SP com um traje concebido para o homem dos trópicos – o Traje de Verão ou New Look. A vestimenta era resultado de uma longa reflexão sobre a moda que o artista vinha desenvolvendo em seus artigos publicados no jornal Diário de São Paulo. Sua caminhada pelas ruas do centro foi se- guida por uma multidão de pessoas, formada majoritariamente por homens vestindo terno e gravata sob o sol da tarde, escandalizada, principalmente, pelo fato de Flávio de Carvalho ter incorporado uma saia a uma vestimenta masculina. Traje de Verão exemplifica como as ações efêmeras em espaços públicos são capazes de provocar fissuras nas normas comportamentais e instaura momentos de reflexão sobre as próprias dinâmicas sociais adotadas no cotidiano. (KATO, CRUZ, VIANNA, 2015, p.90)

Posterior ao estranhamento e fugacidade das deambulações das vanguardas artísticas, a Internacional Situacionista, liderada por Guy Debord e com diversos pensadores, arquitetos, escritores e artistas nas décadas de 60/70, reinventa as deambulações, nomeando a ação como derivas, valorizando a experiência de andar na cidade como instrumento de combate à sociedade do espetáculo, coloca- da por Debord. Assim, os situacionistas lutavam contra a cultura espetacular, a cidade-espetáculo, a passividade da sociedade. A melhor arma seria então a participação, a efetiva participação que interrompe a contemplação anestésica. Por esse motivo o meio urbano foi tão estudado, pois ele é o terreno das ações, das novas formas de produção.

Então, as derivas são propostas de não-espetacularização, criando situações de jogo que, como tal, pede a relação, a participação. As derivas são experiências sensíveis/corporais/lúdicas, aproximando totalmente a arte do campo da vida, propondo uma arte coletiva, mais aberta, em que o público (jogador) possa, também, criar a sua “obra”.

Um dos artistas brasileiros que comungou dos ideais situacionistas, criando derivas, foi Hélio Oiticica, ao explorar o potencial lúdico de ações como Parangolé, escrever sobre seus deliriuns ambulatoriuns e poetizar a vida urbana.

As três experiências erráticas, conforme aponta Jacques (2014), compartilham dos interesses em vivenciar a cidade, atuando com criticidade na construção da sociedade. As flanâncias trazem a questão do homem lento, do ócio em oposição ao tempo acelerado das linhas de produção; as deambulações encaram as multidões, provocam desordens dentro da fugacidade, incitam estranhamentos. Já as

Figura 1: New Look ou Traje de Verão. Flávio de Carvalho, São Paulo, 1956. Fonte: http://salailustrada.com.br/BlogFO/Details/17

derivas investigam o potencial lúdico, participativo, instaurando espaços de jogo em oposição à passividade da espetacularização da sociedade. Em todas as experiências, o caminhar é colocado como experiência estética. Aqui a estética é pensada, conforme Michel Foucault, como estética da existência, como exercício contínuo de estetizar a vida criando espaços para subjetividades múltiplas. E uma estética da existência sempre implicará em questões éticas, da experiência máxima da alteridade, exercida no espaço comum, ordinário e público da convivência com o outro.