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2.4. AUTONOMIA PRIVADA NA PÓS-MODERNIDADE 46

2.4.2 Autonomia privada e Jürgen Habermas 49

Na obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, Habermas desenvolve seu raciocínio para incluir o direito na ótica da teoria do agir comunicativo, ou seja, através da prática de argumentação, que exige de todo

54 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São

participante a assunção das perspectivas de todos os outros. Nesse sentido, o autor parte para a reconstrução do direito, melhor, dos sistemas jurídicos, especificamente, o autor busca reconstruir a auto-compreensão das ordens jurídicas modernas, já que é manifesta a tensão existente entre facticidade e validade que permeia o sistema jurídico em sua totalidade.

Dessa maneira, Habermas argumenta que o conceito de direito subjetivo desempenha papel central na moderna compreensão do direito. Direito subjetivo, para ele, então, corresponde ao conceito de liberdade de ação subjetiva, isto é, direitos subjetivos (rights) estabelecem os limites no interior dos quais um sujeito está justificado a empregar livremente sua vontade. E eles definem liberdades de ação iguais para todos os indivíduos ou pessoas jurídicas, tidas como portadoras de direitos55.

Diante do conceito acima, o direito moderno se adéqua especialmente à integração de sociedades econômicas, que para ser legitimadas e validadas, dependeriam apenas das decisões descentralizadas de sujeitos orientados pelo próprio sucesso. Contudo, o direito não está a serviço apenas das exigências funcionais de uma sociedade complexa, devendo interagir, também, com as condições precárias de uma integração social, que deve se realizar mediante o entendimento de sujeitos que agem comunicativamente.

Assim, existiria um nexo problemático entre as liberdades privadas subjetivas e a autonomia do cidadão, e o direito, para exercer a sua função de estabilização das expectativas, precisa manter um nexo interno com a aquela força socialmente integradora do agir comunicativo. Esse nexo problemático, para Habermas, evidencia que não se conseguiu harmonizar conceitualmente autonomia pública e privada.

Habermas afirma que o direito subjetivo, como era concebido, de aplicação livre da vontade, considerados direitos negativos que protegem os espaços da ação individual e que garantia, por conseguinte, a proteção do direito de fechar contratos e adquirir e alienar propriedade só tinha sentido durante o tempo em que a autonomia privada do sujeito estivesse apoiada na autonomia moral da pessoa, fundada na teoria moral kantiana.

55 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. vol. 1. Rio de

Contudo, afirma Habermas, depois “que esse laço foi rompido, o direito passou a afirmar-se, segundo a interpretação positivista, como a forma que reveste determinadas decisões e competências com a força da obrigatoriedade fática”.56 Portanto, a autonomia privada seria um poder de vontade conferido pela ordem jurídica.

A concepção positivista do direito privado (direito civil) e consequentemente do conceito de autonomia privada, carregada do ideal liberal-burguês, muda com o surgimento do Estado Social, havendo, também para Habermas, uma mudança paradigmática. Nesse sentido, assevera o autor que o direito privado passa por uma reinterpretação, quando da mudança de paradigma do direito formal burguês para o do direito materializado do Estado Social. No entanto, essa reinterpretação não pode ser confundida com uma revisão dos princípios e conceitos fundamentais, os quais apenas são interpretados de maneira diferente quando os paradigmas mudam.57

Observe-se que Habermas chama a atenção para o fato de que não é uma revisão dos princípios e conceitos fundamentais do direito privado, isto é, não há supressão de princípios consagrados, nem substituição por outros, mas, ao contrário, mantêm-se aqueles princípios e conceitos, mas, há, na verdade, uma alteração hermenêutica acerca daqueles princípios. Logo, a autonomia privada não perde o seu caráter de princípio fundamental do direito privado, mas, deve ser lido e interpretado à luz do novo paradigma que surge.

Consequentemente, para Habermas são os direitos humanos e o princípio da soberania do povo que formam as idéias justificadoras do direito moderno, porém não são conceitos que se complementam, mas ao contrário, são conceitos concorrentes. Assim, entre esses dois princípios há um nexo interno que reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade, e não através de leis gerais.

Assim sendo, a autonomia privada só será garantida quando da autonomia política da vontade unida de todos. Isso significa, para Habermas, que a tensão entre autonomia privada e autonomia pública pode garantir ambos, sem a

56 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. vol. 1. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 117.

supremacia de um sobre o outro, com o uso da linguagem orientada pelo entendimento, a fim de aproximar razão e vontade, para que seja então possível chegar a convicções nas quais todos os sujeitos singulares possam concordar entre si sem coerção.

Portanto, para Habermas, a legitimação do direito não encontra fundamento na obrigatoriedade das normas nem no uso simples da força. Na verdade, a legitimação do direito prescinde de coerção, e é alcançada quando todos os sujeitos afetados tenham iguais possibilidades de participar, e de serem, portanto, simultaneamente, autores e destinatários das normas elaboradas.

Dessa maneira, a legitimidade do direito se apóia em uma harmonia comunicativa, uma vez que os participantes dos discursos racionais, os parceiros do direito, podem examinar se uma norma controvertida encontra a anuência de todos os possíveis atingidos. Portanto, Habermas adota uma posição intermediária, onde não há subordinação nem sobreposição da autonomia privada sobre a autonomia política (pública), discordando de Kant e Russeau, quando afirma que o “sistema dos direitos não pode ser reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política”58.

Através da teoria do discurso, portanto, os autores da autonomia privada e pública são simultaneamente também os destinatários da auto-legislação.

A fim de fundamentar um sistema dos direitos que faça jus à autonomia privada e pública, necessário se faz a abrangência dos direitos fundamentais que, segundo Habermas, os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente. Ou seja, esses direitos fundamentais são essenciais para viabilizar o procedimento discursivo entre os autores da autonomia privada e da autonomia política (pública), do qual resultará, por conseguinte, a efetiva produção de um direito legítimo.

58 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. vol. 1. Rio de

2.4.3 Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e a