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5.2 A DISCIPLINA JURÍDICA DA BOA-FÉ 146

5.2.3 Funções da boa-fé objetiva 153

5.2.3.3 Função de norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos da

Fixadas as duas primeiras funções da boa-fé objetiva, esta também atua, já na sua terceira função, como limite ao exercício de direito subjetivos. Sob esta ótica, apresenta-se a boa-fé como norma que não admite condutas que contrariem o mandamento de agir com lealdade e correção, pois só assim se estará apto a atingir a função social que lhe é cometida.

Em verdade, a função limitadora do exercício de direitos subjetivos significa coibir-se o abuso de direito, ou seja, quando o titular excede, manifestamente, no exercício do direito, os limites impostos pela boa-fé objetiva, além da função social que imperam nos negócios jurídicos.

Sendo assim, uma das principais vertentes em que se desdobra a boa-fé objetiva enquanto limitadora ao exercício de direitos subjetivos, consiste no princípio que proíbe venire contra factum proprium, isto é, proibição de um comportamento

271 FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. 1. ed. (2008). 2ª reimpressão.

Curitiba: Juruá, 2010, p. 203.

contraditório com a conduta exercida anteriormente por um dos contraentes. Nessa medida, o venire contra factum proprium serve como modelo ensejador do estabelecimento de certos requisitos de conduta, que são revelados no caso concreto, à luz de suas circunstâncias, em especial da finalidade da obrigação (e do contrato), mas, como regra geral, admite-se incidirem quando já surge uma situação jurídica ocorrida pelo factum proprium, situação da qual decorre benefício, ou a expectativa de benefício, para a contraparte, à qual se segue uma contradição, originada por um segundo comportamento pelo autor do próprio fato273.

Com efeito, a expressão traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição como o comportamento assumido anteriormente pelo titular do direito, na medida em que se cuida de dois comportamentos, lícitos e sucessivos, porém o primeiro (factum proprium) é contrariado pelo segundo274.

Por essa razão, o princípio em comento proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica o comportamento contraditório que venha a minar a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial, e não todo e qualquer comportamento contraditório, haja vista que a contradição faz parte da própria condição humana. Ademais, o fundamento não é, outrossim, a contradição das condutas em si, mas na proteção da confiança da contraparte275.

Nesse sentido, a proibição do venire contra factum proprium representa um modo de exprimir a reprovação em razão de exercícios tidos como inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Assim sendo, perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa à manutenção da situação gerada em decorrência da

273 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo

obrigacional. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 470.

274 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra:

Almedina, 2007, p. 742.

275 Dano moral. Responsabilidade civil. Negativação no Serasa e constrangimento pela recusa do

cartão de crédito, cancelado pela ré.– Caracterização. Boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Administradora que aceitava pagamento das faturas com atraso.- Cobrança dos encargos da mora.– Ocorrência. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa.– Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Privado – A, Relator: Enéas Costa Garcia, J. 16.12.05, V. U., Voto n. 309).

primeira conduta, que o direito não reconheceu, mas, antes a proteção da pessoa que teve por boa, com justificação, a atuação em causa276.

Com efeito, o que está em jogo é a confiança da contraparte, que foi gerada e consolidada em razão da primeira conduta da parte alheia. Dessa forma, ambos os comportamentos do agente podem ser, em princípio, legítimos, mas o comportamento posterior passa a ser considerado desleal em função da confiança despertada na contraparte em função da primeira conduta.

Ressalte-se que não se pode incorrer no equívoco de se imaginar que o princípio venire contra factum proprium tenha como escopo proibir ou mesmo punir a conduta inicial, mas, em verdade, o que se busca é sancionar a própria violação objetiva do dever de lealdade para com a contraparte.

Percebe-se, do exposto acima, que a relação obrigacional, diante do princípio da boa-fé objetiva, não se esgota apenas no dever de prestar e no correlato direito de exigir a prestação, na medida em que deve-se compreender a situação jurídica de forma globalizante, acrescida de direitos potestativos, sujeições, ônus jurídicos e expectativas, ou seja, todos os elementos se coligam em atenção a uma identidade finalística, qual seja a relação obrigacional complexa277.

A boa-fé objetiva também atua como norma limitadora do exercício de direitos subjetivos na hipótese da exceptio doli, que tem como exceção mais conhecida no direito pátrio a constante do art. 476278 do Novel Código Civil, que é a exceptio non adimpleti contractus (exceção de contrato não cumprido), pela qual ninguém pode exigir que uma parte cumpra com sua obrigação, se primeiro não cumprir a própria.

Ademais, a aplicação da boa-fé objetiva possui como um dos seus desdobramentos nessa sua terceira função as figuras da suppressio e a surrectio. Diz suppressio (a sua consagração dogmática definitiva tem origem nas perturbações econômicas causadas pela primeira grande guerra e, sobretudo, pela inflação na Alemanha) a situação do direito que, não tendo sido, em certas

276 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra:

Almedina, 2007, p. 769.

277 ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. 1. ed. 2. tiragem (2007).

São Paulo: Saraiva, 2005, p. 93.

278 art. 476 - Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação,

circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo, uma vez que, nesse caso, seria contrária à boa-fé objetiva279.

É dizer, supressio implica que um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé. Não se confunde com a prescrição, haja vista que enquanto a prescrição encobre a pretensão pela só fluência do tempo, a supressio exige, para ser reconhecida, a demonstração de que o comportamento da parte era inadmissível, segundo o princípio da boa-fé objetiva. Por sua vez, a surrectio pode ser entendida como a outra face da supressio, pois consiste no nascimento de um direito, sendo nova fonte de direito subjetivo, conseqüente à continuada prática de certos atos280.

Por fim, a boa-fé objetiva limita o exercício de direitos subjetivos mediante a figura do tu quoque, que traduz uma regra pela qual o sujeito que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído, isto é, o beneficiário da condição não pode se aproveitar da sua verificação quando, em ofensa à boa-fé objetiva, a tenha provocado, tampouco o prejudicado não pode, da mesma forma, se beneficiar da não verificação quando, em ofensa à boa-fé objetiva, a tenha impedido. Assim, a conduta daquele que desrespeita um comando e depois venha exigir a outrem o seu acatamento fere preceitos éticos e jurídicos281.

Portanto, aquele que descumpriu norma legal ou contratual, atingindo com isso determinada posição jurídica, não pode exigir do outro o cumprimento do preceito que ele próprio já descumprira.