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2.4. AUTONOMIA PRIVADA NA PÓS-MODERNIDADE 46

2.4.5 Tutela constitucional da autonomia privada 57

Em tópico anterior, quando da conceituação da autonomia privada na cultura jurídica da modernidade, ficou constatado que a quase totalidade dos conceitos apresentados e analisados pugnavam no sentido de atribuir uma definição mais restrita da autonomia privada, que em verdade constitui umas das dimensões fundamentais da noção mais ampla de liberdade.

Assim, os autores apresentados restringiam a conceituação da autonomia privada ao conceito de liberdade negocial, com aplicação mais abrangente nos institutos dos contratos e da propriedade privada. Contudo, sob a influência do fenômeno jurídico da pós-modernidade, com a superação da dicotomia direito público e direito privado, a constitucionalização do direito privado, além da dimensão objetiva dos direitos fundamentais irradiante sobre todos os ramos do ordenamento jurídico, inclusive o direito privado, além da possibilidade da eficácia desses direitos sobre o âmbito das relações privadas, não faz sentido tomar o princípio da autonomia privada apenas sob seu aspecto patrimonial.

Por tudo isso, para o estudo almejado no presente capítulo, mormente a relativização da autonomia privada, esta deve ser considerada em seu aspecto mais amplo, como a capacidade do sujeito de direito de determinar seu próprio comportamento individual, isto porque pode acontecer, como de fato acontece, situações em que na manifestação em diversos contextos da autonomia privada surjam agressões aos direitos fundamentais de uma dos sujeitos participantes, hipossuficiente em relação a outro sujeito mais poderoso, onde, certamente, não estar-se-á diante de uma atuação límpida da atuação da autonomia privada daquele.

Portanto, a autonomia privada deve ser encarada sob uma perspectiva muito mais ampla do que a simples redução aos contratos e a propriedade privada, devendo ser entendida como o poder do sujeito de auto-regulamentar seus próprios interesses. O conceito de autonomia privada de alcançar o máximo possível as condutas humanas caracterizadas pela manifestação das relações privadas.

Assim, a autonomia privada está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que negar ao homem o poder de decidir autonomamente como quer viver, quais projetos de vida pretende se engajar, ou o modo de viver que mais lhe aprouver é obstaculizar a própria existência do ser humano.

Contudo, como ressalta Daniel Sarmento que essa autonomia privada não é absoluta, pois tem de ser conciliada, em primeiro lugar, com o direito das outras pessoas a uma idêntica quota de liberdade, e, além disso, com outros valores igualmente caros ao Estado Democrático de Direito, como a autonomia pública (democracia), a igualdade, a solidariedade e a segurança. Se a autonomia privada fosse absoluta, toda lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional. Um mero sinal de trânsito, que quando fechado proibisse os motoristas de avançarem, seria concebido como manifestação inadmissível de arbítrio. A própria idéia de ordenamento jurídico evaporar-se-ia. Seriam todos condenados a viver na anarquia, num permanente “Estado da Natureza”, em que acabaria prevalecendo sempre a vontade do mais forte.64

Resta indubitável que o Estado deve intervir em certos casos, restringindo a autonomia privada individual, seja para proteger a liberdade de outros, seja para favorecer o bem comum e proteger a paz jurídica de toda sociedade. Assim, a atuação do Estado, no caso concreto, restringirá a liberdade, de forma proporcional, através de uma ponderação de interesses. É exatamente isso que ocorre quando se discute a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, em que se torna necessário ponderar esta autonomia com o direito que estaria sendo violado pela conduta do particular.

Essas limitações da autonomia privada, evidentes no pós-modernismo, ao passo que praticamente era nula no modernismo, com a acentuação da dignidade

64 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen

da pessoa humana, ou seja, a relativização da autonomia privada no pós- positivismo, é salientada por Eugênio Facchini Neto, quando afirma que no âmbito do direito privado, esse novo período é caracterizado pelo fato de que também o poder da vontade dos particulares encontra-se limitado. Essa limitação, ao contrário do período anterior, não se dá apenas em virtude da aplicação de normas imperativas editadas em proveito de outros particulares, como é o caso das regras do direito de vizinhança. Essa nova limitação se dá principalmente a partir da concretização dos princípios constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana. Ou seja, abandona-se a ética do individualismo pela ética da solidariedade; relativiza-se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a proteção da dignidade da pessoa humana.65

Quanto à tutela constitucional da autonomia privada, constata-se que o art. 1º aponta como fundamento da República não a livre iniciativa apenas, mas “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, IV, CF). Verifica-se, outrossim, que o art. 170, antes de falar na livre iniciativa, menciona a valorização do trabalho humano como fundamento da ordem econômica, e estabelece ainda que a finalidade desta ordem é “assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, CF), tratando a livre iniciativa econômica não como um fim em si mesma, mas como um meio na busca daquele magno objetivo66.

Destarte, do que foi dito, resulta que é a partir da moldura axiológica estabelecida na Carta Magna que se deve examinar a proteção à autonomia privada outorgada pela Constituição brasileira. A proteção à autonomia privada decorrente da Constituição de 1988 é heterogênea: mais forte, quando estão em jogo as dimensões existências da vida humana e menos intensa quando se trata de relações de caráter exclusivamente patrimonial.

A abordagem da autonomia privada individual à luz do paradigma da pós- modernidade, em referência às ciências em geral, e do pós-positivismo jurídico, especificamente em relação à ciência do direito, tem papel importante na função de facilitar a compreensão da autonomia privada coletiva, onde há a possibilidade de

65 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito

privado. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 23.

66 A título de ilustração, cumpre esclarecer que a autora Ana Prata chama a atenção para o fato de

que a Constituição Portuguesa não trata expressamente sobre a autonomia privada. (PRATA, Ana. A

corpos intermediários, o sindicato é um deles, produzirem normas de caráter geral e abstrato e a serem obedecidas pelos sujeitos representados por aqueles.

3 AUTONOMIA PRIVADA COLETIVA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE

TRABALHO

Após o amplo estudo do instituto da autonomia privada individual, com suas origens, evolução de seu conteúdo, bem como dos seus limites, tudo à luz da crise paradigmática que atinge às ciências em geral na modernidade, em especial o próprio Direito, e o conseqüente surgimento dos sinais da pós-modernidade, o presente capítulo ultrapassa o plano individual para culminar na autonomia privada coletiva, ou seja, o espaço dos grupos sociais como reais produtores de normas jurídicas, mormente os sindicatos.

Com efeito, também os corpos intermediários podem ser instrumentos de produção normativa, diante do pluralismo jurídico que se opõe ao monismo jurídico, principalmente tendo como fundamento o pluralismo jurídico agasalhado pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, ainda que não previsto expressamente, o que não impede o seu reconhecimento.

Ademais, o campo fértil da atuação dos sindicatos - grupos sociais -, como produtores de norma jurídica, se encontra no bojo das negociações coletivas, espaço de maior expressão da autonomia privada coletiva, em que a vontade do grupo, antes de ser uma soma de vontades individuais, consubstancia-se, efetivamente, em uma síntese de vontades, formando uma vontade do grupo, do ente coletivo.

Sendo assim, o capítulo em destaque dedicar-se-á, ao estudo dos temas acima pontuados, de forma a fixar as premissas para a análise da negociação coletiva, lugar e momento em que se verificam a incidência da autonomia privada coletiva e, principalmente, do princípio da boa-fé objetiva, como vetor para uma negociação coletiva eficaz, reflexo de um direito justo, próprio do paradigma do pós- positivismo jurídico.