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4. INVADINDO A TORRE

4.3 AUTORIDADE E ARBITRARIEDADE

A cena Ž conhecida por qualquer jornalista com mais de 30 anos de idade. Na (o)press‹o de um fechamento sempre tenso, o editor levanta da cadeira intempestivamente e p›e-se a vociferar e gesticular. Um rep—rter n‹o fez a matŽria conforme esperado pelo editor, ou cometeu erros de portugu•s, ou escreveu um texto mal concatenado, ou jogou o lide que o chefe queria no pŽ da matŽria, ou est‡ alguns minutos atrasado.

A rea•‹o Ž explosiva: palavr›es, ironias e sarcasmo, gritos, amea•as. O editor Ž inclemente. E n‹o apenas isso, mas tambŽm pouco transparente. Suas decis›es n‹o passam por nenhum crivo identific‡vel, n‹o s‹o explicadas aos subordinados e

assistentes. Sua palavra Ž a lei. A arrog‰ncia Ž uma de suas marcas distintivas: a arrog‰ncia do zelador que decide quem entra no edif’cio da not’cia e quem fica ao lŽu.

Esse aspecto mercurial do comportamento do editor n‹o Ž novo, apesar de escassamente citado na bibliografia da ‡rea. Em depoimento a Cremilda Medina em ÒProfiss‹o Jornalista: Responsabilidade SocialÓ, o advogado MoysŽs Vinocur Freitag relata sua experi•ncia em ve’culos como os do poderoso grupo Di‡rios Associados e no Jornal do Brasil Ònos tempos em que se escrevia ˆ m‹oÓ108. ƒ o jornalismo brasileiro dos anos 30 e 40 do sŽculo XX, quando a atividade ainda mal se separava da pol’tica.

O primeiro elemento marcante de seu relato diz respeito ˆ especializa•‹o: ÒN‹o tive propriamente uma especializa•‹o porque, no meu tempo, o jornalista era eclŽtico: ele escrevia sobre tudo e n‹o era especializado em nadaÓ. Hoje, qualquer visita a qualquer reda•‹o de mŽdio ou grande porte mostrar‡ o oposto: jornalistas superespecializados n‹o se contentam mais em cobrir not’cias de cultura, por exemplo. ƒ necess‡rio segmentar ainda mais o trabalho, especializando-se em literatura, dan•a, teatro, televis‹o, cinema, mœsica em geral ou musica cl‡ssica, hist—rias em quadrinhos, games, artes pl‡sticas etc. As possibilidades s‹o inœmeras, e parecem crescer ano a ano conforme as prioridades do notici‡rio Ð e os rumos da economia e das preocupa•›es da sociedade, principal fonte de refer•ncia para os movimentos da imprensa. Em setembro de 2012, a prop—sito, a revista Veja anunciou aos leitores que uma nova se•‹o estava sendo criada: a editoria de PrŽ-sal Ð ‡rea na qual os meios de comunica•‹o t•m investido, incentivando a especializa•‹o de rep—rteres. Trata-se de um exemplo concreto do dinamismo das chamadas editorias (ou subditorias, quando agrupadas em estruturas maiores) e do fen™meno, aparentemente irrevers’vel, da especializa•‹o jornal’stica, que tambŽm reflete a hiperespecializa•‹o do trabalho na sociedade atual como um todo.

O relato de MoysŽs Freitag toca tambŽm em outro ponto: o da personalidade mercurial do editor: ora muito bom e generoso, ora terr’vel. ÒChateaubriand era um homem impulsivo, mas bondoso. Era um homem que, em dado momento, perdia as estribeiras. Podia pular numa cadeira e na mesa para fazer o maior esc‰ndalo poss’vel, mas quando se acalmava era ele o homem mais generoso, o homem melhor que se podia conhecerÓ.

Nas œltimas dŽcadas a quest‹o da arrog‰ncia quase folcl—rica dos editores de jornal tem perdido espa•o devido a: 1 - uma maior profissionaliza•‹o dos jornais, menos tolerantes com abusos de autoridade, o que ali‡s reflete uma conduta da pr—pria sociedade, mais preocupada com a manuten•‹o da dignidade humana no ambiente de trabalho; 2 - melhoras na forma•‹o do pr—prio profissional e tambŽm de seus subordinados, que saem das universidades mais preparados e cr’ticos em rela•‹o ˆ atividade; 3 - um mercado de trabalho mais competitivo, com imensa rotatividade de profissionais, que, com possibilidade de realoca•‹o em outras empresas, s‹o menos tolerantes em rela•‹o ao assŽdio moral; 4 - um novo marco legal, que pune o chamado assŽdio moral.

Sobre o œltimo ponto, cumpre citar que em 2001 um projeto de lei coordenado pelo deputado federal In‡cio Arruda (PCdoB do Cear‡) acrescentou ao C—digo Penal brasileiro um dispositivo contra a chamada Òcoa•‹o moral no ambiente de trabalhoÓ. O novo artigo, de nœmero 203-A, tipifica o crime: ÒCoagir moralmente empregado no ambiente de trabalho, atravŽs de atos ou express›es que tenham por objetivo atingir a dignidade ou criar condi•›es de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade conferida pela posi•‹o hier‡rquicaÓ. A pena Ž de deten•‹o por per’odo de um a dois anos e multa.

Modernamente, portanto, fecha-se o cerco contra o despotismo no trabalho em geral e, no caso espec’fico dos jornalistas, gra•as a uma conflu•ncia de diversos fatores, nas reda•›es. Em dŽcadas passadas, com pouca ou nenhuma organiza•‹o coletiva, os editores/diretores reinavam onipotentes. ÒNo Brasil n‹o havia sindicatos. Com a Revolu•‹o de 30, gra•as a Lindolfo Collor, um dos primeiros ministros do Trabalho no Brasil, surgiram as leis sociais do Brasil. Da’ Ž que come•a, no Brasil, a surgirem os sindicatos. Com a Revolu•‹o de 30 os ventos novos come•aram a soprar e ent‹o come•aram a surgir os sindicatos e a surgirem as reivindica•›es. Mas tudo isso de uma forma ainda muito leve, muito superficial. Os pr—prios oper‡rios n‹o sabiam o que queriam. Eles estavam entusiasmados e, ao mesmo tempo, envolvidos pela chama da reivindica•‹o. Porque eles sabiam que tinham os direitos, mas n‹o sabiam o que pedirÓ109, completa Freitag.

Segundo depoimento de Juarez Bahia, jornalista e pesquisador experiente, ao livro Profiss‹o Jornalista: Responsabilidade Social, Òo amadurecimento do jornalista como profissional de comunica•‹o de massa pode ser explicado no fato de que ele sai

dos anos 50 e 60 de uma situa•‹o extremamente dependente para situar-se nos anos 70 em uma situa•‹o de independ•ncia, beneficiado pela melhoria dos padr›es profissionais, pela competi•‹o, pelos desafios pol’ticos e tambŽm por uma mais adequada prepara•‹o para o exerc’cio das suas fun•›es Ð um exerc’cio exigido sobretudo pela consolida•‹o do radiojornalismo e do telejornalismo como categorias aut™nomas, de pr—spero mercado e pela maior sofistica•‹o tŽcnica dos jornaisÓ. E conclui, a respeito dos anos de chumbo da repress‹o militar: Òcom a evolu•‹o nos tempos dif’ceis, cresceu o exerc’cio da responsabilidade profissionalÓ110.

(Aqui eu, como autor desta pesquisa, acrescento um testemunho pessoal, pois comecei minha aventuras na reportagem ˆ luz de profissionais extremamente autorit‡rios Ð e ao longo do final dos anos 90 e de todos os anos 2000,

encontrei-me sucessivas vezes diante de editores desp—ticos.

Progressivamente, contudo, constatei, como profissional de Reda•‹o e como pesquisador, que nos grandes ve’culos de comunica•‹o a figura caudilhista e avessa ˆ presta•‹o de contas entrou em acelerado decl’nio a partir dos anos 2000.

Em 1998, em Curitiba, o diretor do jornal de mŽdio porte em que comecei a trabalhar como revisor andava, literalmente, armado pela Reda•‹o, exibindo acintosamente um rev—lver ˆ cintura. Falava alto, agressivamente. N‹o importavam os fatos sociais, importava a pol’tica mais rasteira: como o notici‡rio poderia ser financeiramente explorado e capitalizado. A no•‹o de interesse pœblico era escanteada sem constrangimento. Ës portas do sŽculo XXI, tratava-se de um herdeiro direto das piores pr‡ticas do jornalismo brasileiro, comuns no relato de MoysŽs Freitag acerca dos anos 30 e 40 do sŽculo passado.

J‡ em S‹o Paulo, no ent‹o maior jornal do pa’s, a Folha, o est‡gio de profissionaliza•‹o impedia certos abusos Ð como a suprema coer•‹o de conviver com um editor de rev—lver ˆ cintura, algo inimagin‡vel em uma grande Reda•‹o nos anos 2000. Pr‡ticas autorit‡rias subsistiam, contudo, no discurso de alguns chefes. E a viol•ncia simb—lica era uma constante, incluindo todas as cenas descritas no in’cio deste t—pico; gritos, ofensas, toda forma de press‹o psicol—gica. Era comum, por exemplo, ver rep—rteres mais inexperientes, especialmente as do sexo feminino, chorarem durante uma Òcorre•‹oÓ do editor.

Em outro jornal paulistano presenciei as mesmas cenas novamente. As l‡grimas, a tens‹o, os dedos em riste e ofensas.)

Hoje, segundo o editor-executivo da Folha de S.Paulo, jornal l’der em circula•‹o nacional no seu segmento, esse padr‹o de comportamento, do editor-todo- poderoso, Ž inadmiss’vel. Conforme entrevista de SŽrgio D‡vila nesta tese, o editor vive hoje uma posi•‹o Òmais cidad‹Ó e Òmenos autorit‡riaÓ.

Ð A figura do editor era mais autorit‡ria do que Ž hoje em dia. Hoje em dia ele Ž uma figura mais democr‡tica, vamos dizer assim. Ele tem que estar mais prestador de contas, mais ˆ disposi•‹o. As suas idiossincrasias n‹o podem mais aflorar tanto. Aqueles editores mercuriais dos anos 60 e 70, muitos por coincid•ncia vindos da It‡lia [risos], hoje em dia eles n‹o t•m mais lugar da maneira como eles eram. Obviamente eram todos muito talentosos e muito importantes, teriam lugar sim no jornalismo, mas n‹o como eles eram. ÔIsso Ž porque eu mandoÕ n‹o tem mais. Isso eu posso te dizer porque comando a Reda•‹o do maior jornal do pa’s. Se eu sou corintiano o jornal n‹o Ž corintiano, se eu sou de esquerda a Folha n‹o Ž necessariamente de esquerda, se eu sou pr—-aborto a Folha n‹o Ž necessariamente pr—-aborto. Aquele editor mercurial, Ôo Estado sou euÕ, no sentido de o jornal sou eu, ele n‹o sobreviveria hoje ˆs Reda•›es modernas. E os que sobrevivem ou n‹o t•m pœblico ou est‹o percebendo que t•m que se adaptar ao editor mais prestador de contas.

O ex-diretor de Reda•‹o do gratuito Destak, F‡bio Santos, relativiza, contudo, essa posi•‹o. No fim das contas, diz, o exerc’cio da edi•‹o depende de Òalgum autoritarismoÓ.

Ð Eu n‹o conhe•o editor humilde. O editor tem que ser isso [autorit‡rio], porque ele tem que tomar decis›es e fazer escolhas. Evidentemente que ser‡ melhor editor o cara mais ponderado e mais reflexivo nas suas decis›es. Mas no fim das contas Ž um trabalho que depende de algum autoritarismo. ÔVai ser assim porque desse jeito ser‡Õ. No fim das contas Ž isso. Evidentemente que todos aqueles fatores que fal‡vamos de internet [maior participa•‹o dos leitores no cotidiano dos jornalistas] influenciam nisso, mas a natureza do trabalho continua sendo a mesma. O cara obtŽm informa•›es de v‡rias fontes, julga segundo critŽrios conhecidos dos jornalistas e do ve’culo para o qual trabalha e toma as decis›es. No fim do dia ele Ž o respons‡vel pela decis‹o, ent‹o se o sujeito n‹o conseguir bancar as suas decis›es e ficar a rebote do que vem de fora ele vai tomar decis›es erradas. Evidentemente isso n‹o significa que tem que viver em uma bolha de marfim, refrat‡rio a qualquer tipo de

influ•ncia. Pelo contr‡rio, ele tem de recolher essas influ•ncias todas, tem que ter pontes com todas as outras ‡reas que o jornal toca, mas no fim das contas a decis‹o Ž dele.

Concorda, em certa medida, Carlos Graieb, editor-executivo da revista Veja e ex-editor de O Estado de S.Paulo, para quem Òos jornalistas s‹o um pouco arrogantes e espero, sim, que eles continuem assim para sempre. Para sempre"Ó, enfatiza. Segundo o racioc’nio do jornalista, a no•‹o de uma certa arrog‰ncia Ð ou autoridade Ð como um valor est‡ relacionada ao Òacœmulo de conhecimento das reda•›esÓ.

Ð As grandes reda•›es s‹o um incentivo para que os jornalistas melhorem o seu repert—rio, para que ele aprenda a fazer as pautas de uma maneira diferente, incorpore um certo tipo de linguagem. Enfim, eles acumulam uma bagagem nessa trajet—ria. E fazer esse exerc’cio formal de produ•‹o de um produto Ž muito diferente de voc• sentar na frente do computador e jogar um conhecimento que ˆs vezes Ž bom, ˆs vezes n‹o Ž. N‹o teve checagem, n‹o teve confer•ncia. N‹o tem nenhum anteparo para dizer se aquilo Ž informa•‹o boa ou n‹o. Ent‹o, eu acho que o jornalista tem que buscar essa posi•‹o de autoridade. Ele n‹o deve se considerar mais um no meio da multid‹o, sobretudo se ele tem a oportunidade de trabalhar num grande ve’culo. Eu acho que os ve’culos t•m de buscar uma voz de autoridade mesmo. Eu acho que eles estariam jogando fora o seu papel se eles deixassem isso barato. O bom —rg‹o de imprensa Ž aquele que est‡, pelo menos, um passo ˆ frente do seu leitor. Do contr‡rio, ele n‹o estaria trazendo o novo para o leitor.

N‹o seria este, contudo, um comportamento monol—gico, que aprofundaria artificialmente a dist‰ncia entre jornalismo e sociedade? Graieb relativiza:

Ð O jornalista n‹o precisa se colocar num pedestal inating’vel, mas ele deve subir no caixote, assim como faz um cara na pra•a da SŽ que se destaca e passa a sua mensagem ˆs pessoas.

Geraldo Vieira Filho111, que pesquisou especificamente o tema da arrog‰ncia entre jornalistas, batizou de ÒComplexo de Clark KentÓ a ilus‹o segundo a qual jornalistas podem achar que s‹o superiores ao resto da sociedade (Super-Homens) no exerc’cio de suas fun•›es. ÒO poder da palavra, da imagem, da sele•‹o e interpreta•‹o dos fatos, e de sua multiplica•‹o, cria a ilus‹o do rep—rter Super-Homem como, a come•ar pela tradicional hist—ria em quadrinhos, foi tantas vezes utilizada pela fic•‹o Ð do cinema ˆs novelas de tev•, passando pela literatura e pelo teatro. A fic•‹o coloriu

uma profiss‹o onde o dia a dia Ž uma maravilhosa aventura no combate aos males sociais e na procura da verdade, onde as portas parecem abertas a toda sorte de liberdade, da manipula•‹o da realidade ao acesso e divulga•‹o da informa•‹o. Vale lembrar que a hist—ria do Superman foi criada h‡ 52 anos numa AmŽrica ainda deprimida pela crise de 1929 e angustiada pela proximidade da Segunda Guerra Mundial, uma AmŽrica sedenta por novos mitos e carente de seu pr—prio super-her—iÓ, escreve o autor.

ÒA fic•‹o n‹o mostrou, entretanto, quanta arrog‰ncia adquirem o empres‡rio e o jornalista que uma vez embriagados por toda essa ilus‹o rompem os mais prim‡rios preceitos Žticos (que sequer s‹o regras espec’ficas da profiss‹o mas que, poder’amos imaginar, deveriam orientar todas as rela•›es humanas). N‹o mostrou o quanto a sociedade tenta, por sua vez, manipular a informa•‹o sobre a verdade. N‹o mostrou que por mais honesto e Žtico que seja o profissional da m’dia ele Ž t‹o humano quanto o leitor que tambŽm l• com olhos diferentes aquilo que lhe agrada e aquilo que lhe fere. Detectar o Complexo de Clark Kent Ž estabelecer a discuss‹o sobre a necessidade de uma conviv•ncia harm™nica entre as regras tŽcnicas e preceitos Žticos no exerc’cio do Jornalismo, e estabelecer os limites entre o rep—rter (Clark Kent) e o indiv’duo que a partir de poderes œnicos e privilegiados (o Super-Homem) se d‡ o direito de uma interven•‹o egoc•ntrica para transformar a sociedade ou mant•-la nos padr›es vigentes em fun•‹o de seus exclusivos interessesÓ, completa.

O veterano Mino Carta, em depoimento a Vieira Filho, chama a aten•‹o para o fato de que, ao considerar-se especial em rela•‹o ao outros profissionais, o jornalista pode transgredir uma fronteira Žtica importante. ÒO jornalista n‹o Ž um cidad‹o especial, e o fato de ser assim considerado pelo dentista, pelo advogado ou sobretudo pelo pol’tico, na verdade n‹o significa que ele seja um indiv’duo especial ou que a profiss‹o seja algo de fato especial. A maneira pela qual o jornalista ultrapassa a condi•‹o de Clark Kent para travestir-se de Super-Homem recoloca a quest‹o da Žtica: n‹o existe uma Žtica espec’fica para o jornalista, existe uma Žtica dos cidad‹os que os torna iguais. Existem jornalistas que convivem com tal prest’gio social de maneira Žtica. E outros que nem tantoÓ112, diz.

Marcos Guterman, editor da Primeira P‡gina de O Estado de S.Paulo e doutorando em Hist—ria na USP, diz em entrevista a esta pesquisa que o testemunho do jornalista, especialmente em eventos de alto impacto, como guerras ou o 11 de

Setembro de 2001, Ž t‹o poderoso que de fato pode lev‡-lo a se fascinar com a sua pr—pria for•a. ƒ mais um tra•o do poder divino do jornalista, que, pelo Verbo, como Deus, cria um mundo poss’vel Ð um universo de sentidos a serem divididos e completados pelos seus interlocutores.

Ð Voc• estar no lugar onde a not’cia acontece Ž algo especial; voc• ainda n‹o disse para o leitor que aquilo Ž not’cia, mas voc• vai dizer. Esse momento Ž o que transforma a gente em quase deuses: o leitor n‹o sabe, mas eu vou dizer pra ele que isso Ž importante, eu tenho esse poder. Isso torna a gente, obviamente, meio eg—latra, aquela coisa de achar que estamos produzindo hist—ria. Mas eu, como historiador, posso dizer que estamos produzindo hist—ria, porque essa documenta•‹o vai ser consultada daqui a 50, 100 anos, como a tradu•‹o fiel dos fatos Ð ou, pelo menos, n‹o exatamente fiel, mas como [ind’cio de como] o mundo via aquele momento hist—rico. Aquilo Ž um documento.

Concorda Armando Nogueira, veterano da profiss‹o, que diz que os jornalistas vivem Òcom o rei na barrigaÓ porque Òo dom’nio da palavra Ž o dom’nio do mundoÓ. E, como Guterman, Nogueira detecta o Òprazer de ser o primeiro a saberÓ dos eventos notici‡veis como algo que potencialmente infla o ego do rep—rter. ÒO sentimento mais palpitante do jornalista, em qualquer est‡gio da sua forma•‹o, Ž a curiosidade e o prazer de ser o primeiro a saber. Isso Ž uma coisa que fascina o ser humano e em particular o jornalista, porque a’ ele se imp›e um brio: ele tem que ser o primeiro a saber. E da’, a meu ver, decorre o fasc’nio que as pessoas, de um modo geral, t•m pela profiss‹o a despeito das baixas de credibilidade. Mesmo porque deste sentimento resulta tambŽm o temor reverencial ao jornalista: Ž o jornalista que vai dizer ˆs pessoas se o mundo vai acabar daqui a 20 dias ou n‹o (...) [Da’ decorrem] deforma•›es tais como a arrog‰ncia, a onipot•ncia, ou como costumo dizer, o Ôviver com o rei na barrigaÕÐ a exacerba•‹o da altivez. O jornalista deve ser altivo, mas n‹o precisa ser prepotente. ƒ muito dif’cil alguŽm ter o poder da palavra e n‹o us‡-la, volta e meia, de maneira tirana. Isso, que poderia ser uma coisa contestada na era prŽ- industrial e atŽ na era industrial, agora na era p—s-industrial Ž inquestion‡vel: o dom’nio da palavra, da idŽia, da informa•‹o, Ž o dom’nio do mundoÓ113.

Para o jornalista e professor Caio Tœlio Costa, estudantes de jornalismo, o pœblico e mesmo os profissionais da ‡rea idealizam o cotidiano do mediador social Ð o que eventualmente pode ser positivo, mas, ao mesmo tempo, aumenta a

possibilidade de abusos. ÒO jornalista se v• como um Super-Homem, ele se sente como um Super-Homem. Em determinadas ocasi›es isso atŽ ajuda, mas o fato de ele se ver constantemente assim pode acabar prejudicando e levando o profissional a fazer certas coisas que sequer est‹o nos limites de sua profiss‹o. Uma dose de ceticismo Ž fundamentalÓ114.

Ricardo Gandour, diretor de conteœdo de todo o Grupo Estado, que edita o jornal O Estado de S.Paulo, aproxima-se mais da vis‹o do concorrente SŽrgio D‡vila, da Folha. Para Gandour, Òas m’dias sociais, a internet, desencastelaram [os jornalistas]Ó. Mas o executivo faz ressalvas:

Ð O que n‹o quer dizer perda de poder; de poder no sentido de miss‹o. A edi•‹o Ž um valor. O ato de editar Ž um valor importante para a sociedade. Mas [a internet] introduziu humildade no sentido de que Ž preciso editar bem, Ž preciso estar preparado, estudar. Porque isso Ž prestar um servi•o para as pessoas. Hoje de uma certa forma as not’cias est‹o a’ dispon’veis, mas quando eu monto o contexto de forma honesta, com Žtica, e construo os nexos para a pessoa, eu trabalhei para ele. As pessoas querem conveni•ncia, querem quem trabalhe por elas e ofere•a algo, isso tem valor.

Autorit‡rio ou humilde? A resposta provavelmente Ð e consoante com a complexidade do tema Ð reside entre esses dois p—los. Embora muitos considerem como natural a inclina•‹o do editor ao autoritarismo, como defende o pr—prio ex- diretor do Destak, F‡bio Santos, e ainda Carlos Graieb, da Veja, o comportamento absolutista n‹o contribui em nada para a dialogia plena, e muito menos para o estabelecimento de uma verdadeira rela•‹o Ð do signo da rela•‹o, nas palavras de Cremilda Medina115.

Ali‡s, a pr—pria ideia de um Òautoritarismo necess‡rioÓ remete ao paradigma da divulga•‹o, da sele•‹o do que ser‡ divulgado, ÒexplicadoÓ ao mundo Ð paradigma esse j‡ insuficiente para dar conta das demandas complexas por informa•‹o, comunica•‹o e media•‹o social no sentido amplo. Segundo Cremilda Medina116, Òno espa•o da necess‡ria intera•‹o entra em cena a concep•‹o objetivista da informa•‹o veiculada pelos meios de comunica•‹o coletiva ou pelas m’dias especializadas. Se a