ESCOLA DE COMUNICA‚ÍES E ARTES
RENATO ESSENFELDER
O editor e seus labirintos:
reflexos da crise de paradigmas do jornal impresso
RENATO ESSENFELDER
O editor e seus labirintos:
reflexos da crise de paradigmas do jornal impresso
Tese apresentada ˆ Escola de Comunica•›es e Artes da Universidade de S‹o Paulo como exig•ncia parcial para a obten•‹o do T’tulo de Doutor em Ci•ncias da Comunica•‹o çrea de Concentra•‹o: Teoria e Pesquisa em Comunica•‹o
Orienta•‹o: Profa. Dra. Cremilda Celeste de Araœjo Medina.
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte.
Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Essenfelder, Renato
O editor e seus labirintos: reflexos da crise de paradigmas do jornal impresso/ Renato Essenfelder – São Paulo: R. Essenfelder,
2012.
266 p. : il.
Tese (Doutorado) -- Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo.
Orientador: Cremilda Celeste de Araújo Medina
l. Epistemologia do jornalismo. 2. Edição. 3. Jornal impresso. 4. Internet. 5. Crise de paradigmas. I. Medina , Cremilda Celeste de Araújo, orient. II. Título.
ESSENFELDER, Renato.
O editor e seus labirintos: reflexos da crise de paradigmas do jornal impresso
Tese apresentada ˆ Escola de Comunica•›es e Artes da Universidade de S‹o Paulo para obten•‹o do t’tulo de Doutor em Ci•ncias da Comunica•‹o.
Aprovado em: ______________________________________________________________
Banca examinadora
Prof. Dr.: __________________________________________________________________ Institui•‹o: _________________________________________________________________ Julgamento: ________________________________________________________________ Assinatura: _________________________________________________________________
Prof. Dr.: __________________________________________________________________ Institui•‹o: _________________________________________________________________ Julgamento: ________________________________________________________________ Assinatura: _________________________________________________________________
Prof. Dr.: __________________________________________________________________ Institui•‹o: _________________________________________________________________ Julgamento: ________________________________________________________________ Assinatura: _________________________________________________________________
Prof. Dr.: __________________________________________________________________ Institui•‹o: _________________________________________________________________ Julgamento: ________________________________________________________________ Assinatura: _________________________________________________________________
Para Liane, minha m‹e, o in’cio do caminho.
AGRADECIMENTOS
A Cremilda Medina, por ter me acolhido em seu grupo e orientado pacientemente desde os primeiros passos desta empreitada, e a todo o nosso generoso grupo de p—s-gradua•‹o.
A Terezinha TagŽ Dias Fernandes, por ter me recebido de bra•os abertos no PPGCOM e me incentivado a (re)descobrir o meu caminho quando a hora se anunciou.
A Ana Rosa Ferreira Dias, que me orientou com carinho e dedica•‹o durante o mestrado e foi a primeira voz a me incentivar na realiza•‹o desta tese na Escola de Comunica•›es e Artes. A Dino Preti, o brilhante linguista que me reacendeu a paix‹o pela pesquisa.
A Liane, minha m‹e, pelo apoio desde a primeira hora em todas as estradas e descaminhos, pelo incentivo permanente e pela confian•a inabal‡vel em mim.
Ao meu pai, Renato, que se alegrou comigo a cada etapa ultrapassada.
A minha filha, Alice, por estar por perto para me distrair quando a distra•‹o se fazia necess‡ria. E por me lembrar que a vida n‹o cabe em palavra.
A M‡rcio Freitas e Mauricio Fujimoto, por partilharem as minhas e as suas alegrias e dificuldades nestas nossas travessias, acenando sempre com m‹os amigas. A Gabriel Vituri e Derick Almeida pelo apoio na realiza•‹o das entrevistas.
A gente cresce, sem saber para onde.
RESUMO
Com o advento e a populariza•‹o da internet Ð e especialmente das ferramentas de elabora•‹o e compartilhamento de conteœdos Ð, os jornais impressos viram a verba publicit‡ria destinada a eles encolher na œltima dŽcada e passaram a experimentar uma crise em seu modelo de neg—cios. A crise comercial-financeira, por sua vez, trouxe ˆ tona uma segunda crise que j‡ se desenrolava havia mais tempo: a crise de paradigmas do jornalismo praticado nos meios impressos na sociedade contempor‰nea. Esta tese se concentra justamente nesta crise, investigando, com o apoio de autores da comunica•‹o social, do jornalismo, da sociologia, da economia e da hist—ria, como os editores de jornal impresso enxergam o seu papel e o papel desses ve’culos na atualidade, em um cen‡rio marcado pela instantaneidade da informa•‹o. A bibliografia sobre o tema foi confrontada com as opini›es de 11 editores seniores dos principais jornais paulistanos, entrevistados nesta pesquisa, que explicitam em seus relatos angœstia em rela•‹o ao cen‡rio atual de incertezas na atividade e consci•ncia de que h‡ uma transforma•‹o de paradigmas em curso na ‡rea.
ABSTRACT
With the popularization of the Internet Ð and especially the tools of cooperation and content sharing Ð newspapers experienced a strong decrease in their revenues over the last decade and are now passing through a crisis in their business model. The commercial and financial crisis, in turn, brought to light a second crisis that was in place for a longer time: a crisis of paradigms in contemporary print journalism. This thesis focuses precisely on this crisis, investigating, with the support of authors of media, journalism, sociology, economics and history, how the editors of newspapers see their role and the role of these vehicles today, in a scenario marked by the instantaneity of information. The literature on the subject was confronted with the views of 11 senior editors of major newspapers from S‹o Paulo, interviewed in this research, which show in their reports anguish over the present scenario of uncertainty and awareness that there is a transformation of paradigms in progress.
SUMçRIO
ENSAIO GERAL... 12
2. JORNALISTAS VS. INTELECTUAIS... 26
3 . O PARADIGMA DO REPîRTER E A ASCENSÌO DO EDITOR... 39
3.1 OLHARES SOBRE O EDITOR E A CRISE DE PARADIGMAS... 44
3.2 O EDITOR NA TEORIA... 47
3.3 ZELADORIA VS. CURADORIA... 50
3.4 PRODU‚ÌO SOCIAL DOS SENTIDOS... 53
3.5 CACOFONIA INFORMATIVA... 58
4. INVADINDO A TORRE... 66
4.1 O JORNALISTA NA FIC‚ÌO... 66
4.2 O EDITOR NO MUNDO REAL... 73
4.3 AUTORIDADE E ARBITRARIEDADE... 80
4.4 ROTINA DE ALENTOS E DESALENTOS... 90
4.5 EDI‚ÌO EM TEMPOS DE INTERNET... 108
4.6 TRANSFORMA‚ÌO DE PARADIGMAS... 119
4.7 PORTÍES ABERTOS AOS LEITORES... 125
5. CONSIDERA‚ÍES FINAIS ... 129
6. REFERæNCIAS... 138
7. ANEXOS... 145
7.1 SŽrgio D‡vila, editor-executivo da Folha de S.Paulo... 146
7.2 Ricardo Gandour, diretor de conteœdo do Grupo Estado... 164
7.3 Suzana Singer, ombudsman e ex-secret‡ria de Reda•‹o da Folha de S.Paulo... 175
7.4 F‡bio Santos, ex-diretor de Reda•‹o do jornal Destak... 186
7.5 Noelly Russo, ex-diretora de Reda•‹o dos jornais Metro e MTV na Rua... 194
7.6 Carlos Graieb, editor-executivo de Veja e diretor de Veja.com... 197
7.7 Marcos Guterman, editor de Primeira P‡gina de O Estado de S.Paulo... 214
7.8 Jo‹o Caminoto, editor-chefe da Ag•ncia Estado... 228
7.9 M‡rvio dos Anjos, diretor de Reda•‹o do jornal Destak... 235
7.10 Pablo Pereira, ex-editor e rep—rter especial de O Estado de S.Paulo... 245
Bernardo Ž quase ‡rvore.
Sil•ncio dele Ž t‹o alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E v•m pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baœ seus instrumentos de
Trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios Ð e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando tr•s
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem
Esticada.)
Bernardo desregula a natureza
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com sua
Incompletude?)
ENSAIO GERAL
ÒContrapondo-se ao convenu da inteligibilidade, da representa•‹o da verdade como um conjunto de efeitos, o ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a complexidade que lhe Ž pr—pria, tornando-se um corretivo daquele primitivismo obtuso que sempre acompanha a ratio corrente. Se a ci•ncia, falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as dificuldades e complexidades de uma realidade antag™nica e monadologicamente cindida, diferenciando posteriormente esses modelos por meio de um pretenso material, ent‹o o ensaio abala a ilus‹o desse mundo simples, l—gico atŽ em seus fundamentos, um ilus‹o que se presta comodamente ˆ defesa do status quo.Ó
Isto n‹o Ž uma tese. Isto Ž uma tese. Ou melhor, Ž uma tese escrita na forma de
um ensaio, cuja pretens‹o Ž menos explicar um fen™meno do que tentar
compreend•-lo, evitando truques vazios e ilus›es de —tica can™nico-acad•mica Ð da’ iniciarmos
pela refer•ncia ao pintor belga RenŽ Magritte (1898-1967), o surrealista autor do
famoso quadro acima reproduzido e que ao longo de sua carreira buscou mostrar que
a realidade Ž muito mais complexa do que qualquer representa•‹o que dela se fa•a.
Ou, nas palavras do pr—prio, que h‡ uma Òascend•ncia da poesia sobre a pinturaÓ1. Enquanto os quadros naturalistas, realistas, s‹o est‡ticos e sempre insuficientes no seu
esfor•o de reproduzir a pulsa•‹o da vida, a poesia Ž a pr—pria vida.
O mesmo dŽficit pode se dar com uma tese (quando fechada em si mesma).
Este ensaio poderia ser o fim de uma caminhada, mas mais certamente Ž o
in’cio. Quem arriscaria afirmar, afinal, que esta tese Ž somente a conclus‹o de quatro
anos de pesquisas sobre a crise de paradigmas que assola editores de jornal na
N‹o Ž poss’vel separar esta reflex‹o da pr—pria biografia do autor, ora
candidato ˆ obten•‹o do t’tulo de doutor em Ci•ncias da Comunica•‹o pela Escola de
Comunica•›es e Artes da Universidade de S‹o Paulo. Mais honesto, portanto, seria
situar esta pesquisa dentro de uma trajet—ria iniciada em 2001, quando da chegada ˆ
S‹o Paulo e do in’cio da vida profissional na Folha de S.Paulo, ent‹o como trainee.
Ou anos antes, em 1998, quando do ingresso no curso de gradua•‹o em Comunica•‹o
Social - Jornalismo da Universidade Federal do Paran‡, em Curitiba, terra natal. Ou
ainda antes, na paix‹o pelos livros e pela leitura de jornal di‡rio. Inegavelmente, esta
pesquisa se vale da soma de todas essas viv•ncias e experi•ncias e representa uma
importante etapa nesta trajet—ria pessoal e num processo mais amplo de compreens‹o
do jornalismo hoje Ð tanto por parte do pesquisador como, agora, na forma desta tese,
acess’vel ao pœblico, como contribui•‹o aos estudos e ˆs paix›es na ‡rea.
Visto que o resultado das reflex›es desta pesquisa aparece na forma ensa’stica,
convŽm pensar o papel deste g•nero na Academia e na forma•‹o de saberes. No caso
do Brasil Ð e, analogamente, de nossos vizinhos no HemisfŽrio Sol (segundo a feliz
express‹o cunhada pelo escritor Sinval Medina para designar a criatividade, o frescor
e a vitalidade encontrados ao Sul do Equador, oposto ao HemisfŽrio Noite)2 Ð a quest‹o assume import‰ncia talvez especial, dado o hist—rico de grandes ensa’stas no
pa’s. O Brasil foi e Ž celeiro fecundo de ensa’stas. Silvio Romero, Oliveira Viana,
Antonio Candido, Alfredo Bosi, Silvano Santiago, Renato Ortiz, Milton Santos,
Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darci Ribeiro. Entre os autores da
atualidade Ð e ainda em atividade Ð podemos citar ainda Gilles Lapouge, Arnaldo
Jabor, Alberto Dines, Roberto DaMatta, Marcelo Gleiser, Marcelo Coelho, Ferreira
Gullar, J‰nio de Freitas, Contardo Calligaris e outros com presen•a regular nas
p‡ginas dos maiores jornais do pa’s.
Entre tantas, s‹o vozes que sobressaem na produ•‹o de saberes e reflex›es
sobre o pa’s e sua gente, com bases te—ricas hibridamente fincadas na sociologia, na
literatura, na historiografia, na antropologia, na geografia humana, na psicologia, na
comunica•‹o e no jornalismo, sem a pretens‹o de resolver o mundo com um
arcabou•o te—rico definitivo, o teorema perfeito. Renegar esta fecunda tradi•‹o
ensa’stica Ð ou pior, os frutos dessa pr‡tica no pa’s Ð Ž renegar uma marca importante
maiores pensadores de Brasil nos sŽculos XIX, inicialmente, e no XX,
principalmente.
O aspecto identit‡rio Ž, ali‡s, o problema marcante da tem‡tica dos ensa’stas
latino-americanos3. Sen‹o as bases para essa preocupa•‹o, o sŽculo XIX Ž pelo menos um de seus per’odos mais ricos na AmŽrica Hisp‰nica, quando escritores e poetas
fortemente angustiados pelas grandes quest›es nacionais encorajam-se a abordar a
tem‡tica em sua obra e atŽ chegam a assumir cargos pœblicos de relevo, num
exerc’cio de engajamento e reflex‹o, literatura e pragmatismo. Um caso fundador Ž o
de Domingo Faustino Sarmiento, considerado um dos grandes expoentes do
Romantismo argentino ˆ Žpoca. Sarmiento se exilou no Chile durante a dŽcada de
1840, perseguido pelo regime de Juan Manuel de Rosas. L‡, escreve seu livro mais
famoso, o ensaio ÒFacundo, o Civilizaci—n y BarbarieÓ, publicado em 1845, que parte
da biografia do caudilho argentino Facundo Quiroga para tratar, em realidade, da
quest‹o do caudilhismo no pa’s Ð e reiterar sua oposi•‹o a Manuel de Rosas. Em
1868, Sarmiento Ž eleito presidente da Argentina Ð o que pode ser considerado o ‡pice
de uma trajet—ria h’brida conciliada (e n‹o dividida) entre o pensar a na•‹o e o
transformar a na•‹o.
Podem ser considerados ainda exemplos desta estirpe figuras como Simon
Bol’var, na Venezuela, e JosŽ Mart’, em Cuba, entre outros que, no sŽculo XIX,
pensaram a AmŽrica Latina em ensaios, sobretudo ligados a quest›es de identidade:
na•‹o, l’ngua, cultura, independ•ncia. Firmam assim bases para a preocupa•‹o
ensa’stica do sŽculo seguinte, que floresce dentro e fora da Academia.
Lœcia Lippi Oliveira4, soci—loga e pesquisadora da FGV-Rio, tambŽm se voltou ao estudo do g•nero ensa’stico no continente para detectar uma divis‹o
hist—rica entre esses pioneiros Ð Sarmiento, Alberdi etc. Ð e os ensa’stas do sŽculo
XX, como Octavio Paz e Sergio Buarque de Holanda. Os primeiros, afirma,
colocavam-se como ÒsalvadoresÓ, propunham a reforma da sociedade primeiramente
no papel e, logo, na pol’tica (como Sarmiento, de ensa’sta a presidente da Argentina).
No sŽculo XX, diz a pesquisadora, os ensa’stas continuam a enunciar os problemas de
sua sociedade, mantendo ainda acesa a tradi•‹o identit‡ria. Mas n‹o s‹o mais os
portadores da solu•‹o ideal ou da implanta•‹o esperta da ideia aventada: deixam-na a
Lœcia Oliveira detecta ainda outro aspecto interessante que distinguir‡ o nosso
ensaio latino-americano do europeu, que presta tributo ao mestre franc•s Michel de
Montaigne. Tratam-se de suas ’ntimas liga•›es com o jornalismo, com o fato
contempor‰neo, urgente e concreto, e com o jornal enquanto meio de comunica•‹o de
ideias e de ideais. Por isso, e por sua raiz tambŽm pol’tica, o ensaio latino-americano
surge nas p‡ginas dos jornais como cr™nica da sociedade, das quais Ž compilado para
ganhar livros em edi•›es assim imortalizadas.
A proposta faz sentido se lembrarmos que esses ensaios do sŽculo XIX eram
transformacionais, salvadores. ÒDiscursos, cartas abertas e artigos pol•micos de jornal
revelam o papel doutrin‡rio e cr’tico dos ensa’stas latino-americanos que, ao exporem
suas ideias, opini›es, teorias, procuravam ganhar adeptos e influir na exposi•‹o dos
problemas da sociedadeÓ, rememora a professora e historiadora Eliane Fleck5, referindo-se ao sŽculo XIX.
Ainda Ž tempo, porŽm, de abrir par•nteses para apresentar uma defini•‹o,
ainda que provis—ria, do que vem a ser um ensaio. Etimologicamente, a palavra deriva
do latim exagium, ou Òa•‹o de pesarÓ. Por extens‹o, afirma o dicion‡rio Houaiss,
significa Òponderar, avaliarÓ. O Dicion‡rio de Termos Liter‡rios de Massaud MoisŽs6 fertiliza o verbete com a bruma aterritorial e democr‡tica da arte. V• no g•nero ensaio
ÒespŽcime liter‡rio de contorno indefin’velÓ. Como o pr—prio r—tulo denuncia, escreve
Massaud, Ž imposs’vel estabelecer com rigorosa precis‹o os limites daquilo que Ž
somente ÒensaioÓ.
De fato, numa acep•‹o demasiado ampla, tudo por ser considerado ensaio,
mas essa vis‹o levaria ˆ inutilidade do termo Ð ecoando talvez o mesmo problema da
Hist—ria no verbete da EnciclopŽdia Einaudi em que Jacques Le Goff7 problematiza uma quest‹o contempor‰nea de sua ‡rea: ÒTudo Ž hist—rico, logo a hist—ria n‹o
existeÓ.
Hist—ria e ensaio, n‹o obstante, existem. E o casamento entre essas vertentes
tem se mostrado rico, ali‡s, como Michel Vovelle8 e sua defesa ensa’stica da hist—ria das mentalidades demonstra. Nesse caso, o ensaio como mŽtodo Ž justific‡vel Ð e
necess‡rio Ð para lembrar a cientistas, intelectuais e leitores que a complexidade do
mundo n‹o pode ser circunscrita ao x de uma equa•‹o.
Complexidade. N‹o por acidente, toca-se aqui em um ponto-chave da
sociedades contempor‰neas sem recorrer a estudos inter ou transdisciplinares, que,
combinando os saberes parciais da sociologia, da medicina, da biologia, da
comunica•‹o, do jornalismo e de outras ‡reas, sejam capazes de abarcar
satisfatoriamente o problema enfrentado.
Complexus, do latim, est‡ ligado ˆ ideia de algo tecido em conjunto. ƒ o
partic’pio passado de complecti, que significa ainda compreender Ð mote da
epistemologia da compreens‹o que na atualidade tem alimentado a trajet—ria do
pesquisador Dimas KŸnsch10. Mas, antes de tangenci‡-la, voltemos ˆ rica no•‹o de complexidade como tecido. Captar esse tecido, compreend•-lo, demandaria mais do
que apenas um sentido. N‹o Ž poss’vel compreender o tecido somente pelo
perscrutamento da vis‹o. Ela pode explic‡-lo, informar sua cor, seu tamanho. A
textura e a maciez, contudo, ser‡ apreendida pelo tato. O cheiro, pelo olfato; o ru’do
do dobrar e estender das fibras, pela audi•‹o.
Em suma, Ž poss’vel explicar o tecido, parcialmente, pelo movimento de
apenas um sentido. Mas compreend•-lo Ž um esfor•o plural.
Operadores de complexidade ajudam nessa tarefa, segundo a sistematiza•‹o de
Morin. O pensador parisiense prop›e tr•s: o operador dial—gico, cujo prop—sito Ž
reunir conceitos tidos como opostos na nossa vis‹o de mundo partitiva (raz‹o vs.
emo•‹o; ci•ncia vs. arte; raz‹o vs. mito s‹o exemplos muito arraigados dessa
dualidade).
Outro instrumento Ž o operador recursivo, que repensa a no•‹o de causalidade,
t‹o forte no pensamento contempor‰neo Ð e no jornalismo em especial, o que de certo
mereceria, por si s—, cap’tulo ˆ parte (tema j‡ ricamente elaborado na obra de
Cremilda Medina). Na recursividade n‹o Ž apenas a causa A que produz o efeito B, e
fim da equa•‹o. O efeito circula sobre a causa, transformando-a tambŽm.
H‡ ainda o operador hologram‡tico, em que se defende a vis‹o hol’stica do
problema aventado: n‹o Ž poss’vel separar parte e todo. A parte est‡ no todo. O todo
est‡ na parte.
Somados, os operadores d‹o subst‰ncia ao projeto de totalidade sem fazer com
que ela signifique uma simples soma de partes Ð o que possibilitaria, em œltimo
est‡gio, o conhecimento do todo pelo exame partitivo. Mas o todo, no pensamento
complexo, Ž ao mesmo tempo mais e Ž menos do que a soma das partes. Como no
saber local indiano, em que o provŽrbio conta a hist—ria dos tr•s homens incapazes de
Enxergam um rabo, uma orelha, um grossa pata cinzentos sem se darem conta, afinal,
de que est‹o diante da vida, do movimento pulsante de um animal.
Em seu texto ÒO Ensaio como FormaÓ, Adorno afirma que Òo ensaio desafia
gentilmente os ideais da clara et distincta perceptio e da certeza livre de dœvidaÓ11. Segundo o autor, o ensaio Ž um protesto contra as quatro regras estabelecidas pelo
ÒDiscurso do MŽtodoÓ, de Descartes Ð autor sobre o qual iremos nos debru•ar mais
adiante. Adorno come•a sua reflex‹o abordando a regra segundo a qual o objeto de
pesquisa deve, nas palavras do pr—prio Descartes12 em sua obra fundamental, ser dividido em Òtantas parcelas quantas poss’veis e quantas necess‡rias fossem para
melhor resolver suas dificuldadesÓ.
No entanto, raciocina Adorno, os artefatos que constituem o objeto do ensaio
resistem ˆ an‡lise de elementos. Sem romantizar o escrut’nio da totalidade sobre o
mŽtodo partitivo, Adorno cr• que Òo ensaio se orienta pela ideia de uma a•‹o
rec’proca, que a rigor n‹o tolera nem a quest‹o dos elementos nem a dos elementares.
Os momentos n‹o devem ser desenvolvidos puramente a partir do todo, nem o todo a
partir dos momentosÓ. E, com isso, Òo ensaio Ž presenteado, de vez em quando, com o
que escapa ao pensamento oficial: o momento do indelŽvel, da cor pr—pria que n‹o
pode ser apagadaÓ.
Diversos autores13 localizam no franc•s Michel de Montaigne a origem da acep•‹o moderna de ensaio. Com seus escritos agrupados sob a alcunha Essays, de
1580, Montaigne prop›e uma bagagem conceitual e estil’stica para o g•nero. O
moralista sugere que o ensaio se caracterize pelo auto-exerc’cio das faculdades; pela
liberdade pessoal; pelo esfor•o constante de pensar originalmente.
E h‡ outra caracter’stica, esta muito pr—xima do ethos jornal’stico: o ensaio
reœne experi•ncias, ou seja, apresenta uma reflex‹o embasada empiricamente (da’ a
conveni•ncia de apresentar esta tese, calcada em pesquisa emp’rica, viv•ncia
biogr‡fica e exame hermen•utico, na forma de um ensaio). Nas palavras do pr—prio
Montaigne, o ensaio traz Òo saber que se destila da vidaÓ.
Por fim, diz o autor que o ensaio deve ser necessariamente cr’tico Ð ou seja,
repudiar o obscurantismo e o Òsono dogm‡ticoÓ. Nesse sentido, Ž uma gin‡stica
cerebral, lembra Silvio Lima, porque simultaneamente repudia qualquer autoritarismo
(Ž ensaio, Ž exerc’cio, Ž ato de pesar, e n‹o o peso das coisas em si) ao mesmo tempo
em que Ž rigoroso no Òpensar firmemente por si s— e por si pr—prioÓ. ÒO ensaio Ž o
EnsaioÓ14. Outro pensador alem‹o, Max Bense, em Ò†ber den Essay und seine ProsaÓ, afirmar‡ complementarmente que Òescreve ensaisticamente quem o questiona
e o apalpa, quem o prova e submete ˆ reflex‹o, quem o ataca de diversos lados e
reœne no olhar de seu esp’rito aquilo que v•, pondo em palavras aquilo que o objeto
permite vislumbrar sob as condi•›es geradas pelo ato de escreverÓ15.
Outras caracter’sticas que podemos apontar nos ensaios em geral s‹o sua
relativa brevidade, sua liberdade tem‡tica e sua abertura ao di‡logo com leitores e
especialistas Ð aspecto este decisivo para nos levar a defender seu emprego nesta tese.
ÒO ensa’sta n‹o busca provar ou justificar as suas ideias nem se preocupa em
lastre‡-las eruditivamente, nem, menos ainda, esgotar o tema escolhido; preocupa-o,
fundamentalmente, desenvolver por escrito um racioc’nio, uma intui•‹o, a fim de
verificar-lhe o poss’vel acertoÓ, escreve Massaud. ÒDa’ que o ensaio se constitua num
exerc’cio ou manifesta•‹o de humildade, e fa•a da brevidade e da clareza de estilo os
seus esteios m‡ximos. O ensa’sta conhece por experi•ncia as limita•›es do saber
humano e tem convic•‹o de que os torneios fr‡sicos absconsos, o vocabul‡rio
especioso e bizantino, os neologismos for•ados etc., n‹o raro escondem o vazio
intelectual.Ó
ƒ nesse sentido que inscrevemos este ensaio sobre os dilemas do editor de
jornais na atualidade: como uma obra aberta ˆs mais variadas colabora•›es e ao
di‡logo.
Se pode ser tomado como uma espŽcie de medita•‹o, o ensaio tambŽm Ž
realiza•‹o dial—gica, ou uma medita•‹o coletiva Ð ou ainda, como na literatura, uma
medita•‹o social. Os melhores ensa’stas agem tambŽm como Òantenas da ra•aÓ (ou
Òantenas da sociedadeÓ, numa tradu•‹o menos literal, mas mais feliz no contexto de
complexidade com que o tema deve ser abordado), para citar a famosa met‡fora de
Ezra Pound16 ao se referir ˆ sensibilidade quase premonit—ria dos artistas. Da’ advŽm a elasticidade temporal do ensaio, que transita entre a grande obra liter‡ria, atemporal,
e a pesquisa datada no aqui e agora. Marshall McLuhan expande essa idŽia no
pref‡cio ˆ segunda edi•‹o do cl‡ssico ÒUnderstanding MediaÓ (no Brasil traduzido
como ÒOs Meios de Comunica•‹o Como Extens›es do HomemÓ). No in’cio do texto,
o pesquisador canadense afirma que Òo poder das artes de antecipar, de uma ou mais
gera•›es, os futuros desenvolvimentos sociais e tŽcnicos foi reconhecido h‡ muito
tempo. Ezra Pound chamou o artista de Ôantenas da ra•aÕ. A arte, como o radar, atua
descobrir e a enfrentar objetivos sociais e ps’quicos com grande anteced•ncia. O
conceito profŽtico das artes entra em conflito com o conceito corrente das artes como
meios de auto-express‹o. Se a arte Ž um Ôsistema de alarme prŽvioÕ Ð para usar uma
express‹o da Segunda Guerra Mundial, quando o radar era novidade Ð tem ela a maior
relev‰ncia n‹o apenas no estudo dos meios e ve’culos de comunica•‹o, como no
desenvolvimento dos controles nesses mesmos meiosÓ.17
A arte, pois, que frequentemente encontra no ensaio um ve’culo adequado de
express‹o Ð pela abertura da forma ensa’stica ˆ intui•‹o sintŽtica do autor Ð, Ž um
importante ve’culo para captar as pulsa•›es de uma sociedade din‰mica e complexa.
H‡ armadilhas nesse caminho, todavia. A maior delas parece ser a falsa
dicotomiza•‹o entre a liberdade do ensaio e os c‰nones da pesquisa cient’fica. Este Ž
sobretudo um ensaio que n‹o rejeita a metodologia e o rigor acad•micos. Marca-se
pela pluralidade de vozes n‹o apenas de editores, nossos protagonistas, mas tambŽm
de pesquisadores: da produ•‹o consagrada ˆ mais recente.
O romancista e ensa’sta portugu•s Verg’lio Ferreira18 reflete sobre o of’cio e apela ˆ necessidade de incorporar a ele a sensibilidade da arte. Referindo-se
especificamente ao ensa’smo portugu•s, diz: ÒO que Ž importante Ž que o ensaio
discuta, que problematize... Ž infinitamente mais œtil o erro fŽrtil do que a verdade
estŽril. Mas h‡ um elemento urgente para incorporar ao ensaio e que o aproxima
particularmente da arte liter‡ria Ð um que o torna um candidato potencial a suceder a
novela: a sensibilidade.Ó
Sendo assim, por que negligenciar, nos estudos de Comunica•‹o e Jornalismo,
que lidam sobretudo com o humano e suas contradi•›es, suas interpreta•›es e
realiza•›es, a intui•‹o sintŽtica, alma do ensaio? Ela est‡ presente em todas as etapas
do processo, pois reneg‡-la seria renegar a pr—pria subjetividade humana Ð na escolha
do tema, dos autores que embasar‹o o marco te—rico, na reda•‹o, na apresenta•‹o de
uma tese. A subjetividade est‡ l‡, mas n‹o Ž desta, inerente, inescap‡vel, de que fala
Verg’lio Ferreira. Refere-se antes ˆ sensibilidade fertilizadora do homem, sua
capacidade de captar a dimens‹o profunda, m’tica, de uma quest‹o, para
desenvolv•-la em suas ra’zes universais, e n‹o apenas superficialmente.
Susan Sontag destaca justamente o brilho l’rico do ensaio entre suas
transpar•ncia de estilo s‹o geralmente considerados normas na escrita de ensaios (...)
a mais irresist’vel tradi•‹o do ensaio Ž um tipo de discurso l’rico.Ó A escritora localiza
nos serm›es e, antes disso, nas prega•›es em pra•a pœblica Ð que certamente
remontariam ao fil—sofo S—crates e seus cŽlebres di‡logos Ð o gŽrmen do estilo
ensa’stico que celebra. Desse parentesco advŽm a coincid•ncia de todos os grandes
ensaios, diz, terem sido escritos em primeira pessoa.
E Ž imbu’da de preocupa•‹o com a atualidade, embasamento na experi•ncia
emp’rica, linguagem acess’vel e plural, dial—gica, e principalmente da humildade de
quem visa contribuir para a reflex‹o de um tema, sem pretens‹o de esgot‡-lo, que esta
tese-ensaio discute a crise de paradigmas vivida por editores de jornal impresso no
cen‡rio da atualidade, marcado pela imensa (e veloz) oferta de informa•›es por meio
de internet, r‡dios, TVs, celulares e outras m’dias.
Mergulhamos ao longo dos œltimos anos na cultura desse profissional, ora
subordinado a ele, como um rep—rter inexperiente, ora em seu cargo, em dois jornais
de perfis bastante distintos (Folha de S.Paulo e Metro), ora como
pesquisador-visitante, acompanhando reuni›es de pauta e edi•‹o, observando rotinas e
entrevistando mais de uma dezena de expoentes da ‡rea. A imers‹o na cultura e no
poder ancestral de seus mitos Ž, a prop—sito, outra caracter’stica marcante do ensaio.
Diz Adorno que Òo ensaio reflete justamente sobre isso: a rela•‹o entre natureza e
cultura Ž o seu verdadeiro tema. N‹o por acaso, em vez de Ôreduzi-losÕ, o ensaio
mergulha nos fen™menos culturais como numa segunda naturezaÓ.
Trabalhamos aqui tambŽm na regi‹o que Patr’cia Patr’cio designou, em sua
tese de doutoramento, como reportagem transubjetiva, no•‹o que se insere Ònuma transi•‹o da monologia emissor-receptor para a dialogia na media•‹o, n‹o uma media•‹o objetivista, mas uma media•‹o autoralÓ 19.
Anteriormente, da mesma equipe de pesquisadores que passaram pelo crivo
desta Escola sob coordena•‹o da professora Cremilda Medina, Raul Os—rio Vargas j‡
havia proposto a no•‹o de reportagensaio como mŽtodo Ð perspectiva que esta
pesquisa tenta explorar. Na disserta•‹o ÒA Reportagem Liter‡ria no Limiar do SŽculo
21 (O ato de reportar, os jovens narradores e o Projeto S‹o Paulo de Perfil)Ó e
posteriormente na tese ÒO homem das areias: um flagrante do di‡logo
oratura-escrituraÓ, Vargas prop™s que Òesta forma de indaga•‹o de contextos sociais e de
escrita, que tem como caracter’sticas a imers‹o, a voz, a exatid‹o e o simbolismo, seja
transmitir ensaiandoÓ.
Vargas concebe a reportagensaio como Òuma narra•‹o detalhada de situa•›es e
conversas da vida cotidiana dos seres humanos que vivem em espa•os e temposÓ. Sua
proposta Ž, tal qual no jornalismo informativo amplamente difundido nas reda•›es
brasileiras, partir de um fato ver’dico, porŽm buscando motiva•›es e significados
mais sutis para a sua ocorr•ncia e Òempreendendo uma viagem de retornoÓ para, em
comunh‹o com a proposta de um jornalismo polif™nico e plurissemi—tico20, Òencontrar uma composi•‹o criativa com suas mœltiplas vozesÓ. Chama-a ainda de
Òatividade lœdica que apanha diversas perspectivas em contraponto, exacerba
dinamicamente os contrastes e nos faz descobrir novas maneiras de ler ou de ver o j‡
visto ou lidoÓ21. E completa: ÒHoje, na reportagensaio, est‹o presentes a Psicologia Social, a Filosofia, a Sociologia, como tambŽm o atrativo das tŽcnicas narrativas
trazidas do conto e do romance, oferecendo ao comunicador e ao leitor as ilimitadas
possibilidades do Ôg•neroÕ. Todos esses recursos fundem-se nas m‹os do comunicador
para levar os ensaios sociais por novos caminhosÓ.
E s‹o as pŽrolas encontradas nesse mergulho (ou seja, as pessoas pelo
caminho, muito mais cheias de brilho do que qualquer joia ou ideia) que esta
tese-reportagem-ensaio, sem defini•›es r’gidas, mas prenhe de horizontes, apresenta a
1A afirma•‹o aparece em numerosas obras sobre Magritte, como em ÒThis is Not a PipeÓ, de
Michel Foucault, em que o autor discorre sobre a obra do pintor surrealista, a quem admirava. Editora University of California Press: Calif—rnia,1983.
2
No segundo cap’tulo de ÒPovo e PersonagemÓ (1996, p‡g. 39), em que descreve sua viagem por sete pa’ses lus—fonos, Medina afirma que a express‹o HemisfŽrio Sol, recorrente em sua obra (e colocada em oposi•‹o ao ÒhemisfŽrio noiteÓ), foi cunhada pelo escritor brasileiro Sinval Medina.
3
OLIVEIRA, L.L. O ensaio e suas fronteiras. In: F. AGUIAR; J.C. MEIHY e S. VASCONCELOS (orgs.), G•neros de fronteira. Cruzamentos entre o hist—rico e o liter‡rio. S‹o Paulo: Centro Angel Rama, 1997.
4
Idem.
5
FLECK, Eliane. O ensaio (Coment‡rios a Ant™nio Sanseverino e M‡rcia Tiburi). In: Hist—ria unisinos. Vol. 8. No. 10. Porto Alegre: Unisinos, 2004.
6
MOISES, Massaud. Dicion‡rio de Termos Liter‡rios. S‹o Paulo: Cultrix,1974. 7
LE GOFF, Jacques. EnciclopŽdia Einaudi, v. 1, Mem—ria Ð Hist—ria. Edi•‹o portuguesa. Porto, PT: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2003.
8
VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. S‹o Paulo: Brasiliense, 2001.
9
MORIN, Edgar. Introdu•‹o ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2001.
10
Sobre o tema, ver K†NSCH, Dimas Ant™nio. Maus pensamentos: os mistŽrios do mundo e a reportagem jornal’stica. S‹o Paulo, Annablume/Fapesp, 2000.
______. O Eixo da Incompreens‹o: a guerra contra o Iraque nas revistas semanais brasileiras de informa•‹o. Tese de doutorado, S‹o Paulo: ECA-USP, 2004.
11
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. S‹o Paulo, 34/Duas Cidades, 2008. P. 31-35.
12
DESCARTES, RenŽ. Discurso do mŽtodo. S‹o Paulo: Martin Claret, 2002.
13
MASSAUD (1974).
14
LIMA (1944, p‡g. 60).
15
BENSE, Max. †ber den Essay und Seine Prose. In: Merkur, 1, 1947, p. 414-424.
16
Em seu ÒAbc da LiteraturaÓ, escreveu Pound: ÒOs artistas s‹o as antenas da ra•aÓ (2006, p‡g. 77).
17
MCLUHAN, Marshall. Os Meio de Comunica•‹o como Extens›es do Homem. S‹o Paulo: Cultrix, 2011. p. 14-15.
18
FERREIRA, Verg’lio. Um Escritor Apresenta-se. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p‡g. 181.
19
PATRêCIO, Patr’cia. Na ilha do boi de pano: uma reportagensaio para alŽm da objetividade jornal’stica. Tese de doutorado. ECA/USP: S‹o Paulo, 2007.
20
VARGAS, Raul Os—rio. A Reportagem Liter‡ria no Limiar do SŽculo 21. (O ato de reportar, os jovens narradores e o Projeto S‹o Paulo de Perfil). Disserta•‹o de Mestrado, S‹o Paulo, ECA, USP, Dezembro de 1998.
______. O lugar da fala na pesquisa da reportagensaio: ÒO homem das areias um flagrante do di‡logo oratura-escritura. Tese de Doutorado, S‹o Paulo, ECA, USP, Maio de 2003.
21
caminhos.Ó
Em sua tese (2003), Vargas acrescenta que: A reportagem, de entona•‹o muito diversa, tambŽm Ž ensaio, com alternativas de vis‹o de mundo e cheia de hist—rias de vida. Reportagem como verdadeiros ensaios sobre vidas, a partir da conviv•ncia e da observa•‹o de pessoas comuns. Comunica•‹o de ensaios sociais a partir da hist—ria de pessoas comuns, dos viajantes seres humanos assimilados na cultura que os acolhe. Pessoas vindas de lugares distantes para mudar suas vidas, sua l’ngua, suas idŽias na medida do poss’vel e adaptarem-se a um mundo ÒnovoÓ.
Se procurar bem, voc• acaba encontrando
n‹o a explica•‹o (duvidosa) da vida
mas a poesia (inexplic‡vel) da vida.
2. JORNALISTAS VS. INTELECTUAIS
Comunh‹o, a plenitude da comunica•‹o, ocorre na tr’plice tessitura da Žtica, tŽcnica e estŽtica. Cremilda Medina, 2006.
N—s, seres humanos, perdemos a vida buscando coisas que j‡ encontramos. Todas as manh‹s, em qualquer latitude, os editores de jornais chegam ˆ reda•‹o perguntando-se como v‹o contar a hist—ria que seus leitores j‡ viram e ouviram dezenas de vezes na televis‹o ou no r‡dio, nesse mesmo dia. Com que palavras narrar, por exemplo, o desespero de uma m‹e que todos viram chorar ao vivo, diante das c‰meras? Como seduzir, usando uma arma t‹o insuficiente como a linguagem, pessoas que experimentaram com a vista e com o ouvido todas as complexidades de um fato real?
Esse duelo entre a intelig•ncia e os sentidos tem sido resolvido h‡ v‡rios sŽculos pelos romances, que ainda est‹o vendendo milh›es de exemplares, apesar de alguns te—ricos terem decretado, h‡ duas ou tr•s dŽcadas, que as novelas tinham morrido para sempre. O jornalismo tambŽm resolveu esse problema atravŽs da narra•‹o, mas aos editores custa aceitar que essa seja a resposta para o que est‹o buscando h‡ muito tempo. Tom‡s Eloy Mart’nez, 1997.
Precisamente ˆs 20h20 do dia 27 de novembro de 2010, numa agrad‡vel noite
de ver‹o, Noelly Russo, jornalista experiente, recebeu-me em sua casa de tr•s pisos
numa discreta vila residencial bem em frente ao parque da çgua Branca (em Perdizes,
na zona oeste de S‹o Paulo), em uma pequena travessa da rua Turiassu. Naquele
momento, um desconhecido que batesse ˆ porta da quarta casa do lado esquerdo do
condom’nio, cuja fachada escondia-se detr‡s de uma vegeta•‹o exuberante (jardim
estreito e denso de flores, temperos e ‡rvores ainda jovens), veria as portas e janelas
escancaradas e as pilhas de caixa de papel‹o e teria a imediata percep•‹o de que uma
mudan•a estava em curso.
S— n‹o saberia, ainda, a sua extens‹o.
Noelly estava de mudan•a. Agendamos o nosso di‡logo justamente Ð e
Mas alŽm da mudan•a de casa ali em prepara•‹o, outras mudan•as
fermentavam naquela noite, rondando a tumultuada resid•ncia da veterana diretora de
reda•‹o. Uma, profissional. Outra, muito mais profunda, de paradigmas.
Noelly, ent‹o com 45 anos de idade, 25 deles investidos em reda•›es de
jornais e revistas Ð Òainda equipadas com m‡quinas de escreverÓ, ressalta, e Òmuito
mais barulhentas do que hoje em diaÓ Ð de ve’culos como Folha de S.Paulo, Trip,
TPM, Metro e MTV na Rua, deslizava habilmente entre as caixas e os m—veis
parcialmente desmontados de sua ampla sala enquanto exibia o ambiente e se
desculpava pela desordem. No dia seguinte, iria se mudar para outra casa, a poucas
quadras dali, tambŽm em uma pequena vila residencial. ÒEsta aqui j‡ est‡ atŽ
vendidaÓ, contou, animada.
Camiseta larga estampada e colorida, cal•a jeans; a indument‡ria despojada
poderia fazer crer que Noelly Ž uma pessoa relaxada. O jeito relax, contudo,
contrastava com a real personalidade da anfitri‹, tipo elŽtrico que n‹o parava em um
mesmo lugar por mais de cinco minutos. Incorporava, talvez, o esp’rito da profiss‹o
que abra•ou por mais da metade de sua vida Ð profiss‹o esta em que, segundo
Travancas, h‡ uma rela•‹o diferente com o tempo, Òcomo se o seu rel—gio [dos
jornalistas] funcionasse bem mais r‡pido e em outro ritmo. N‹o Ž o tempo do dia e da
noite, dos dias de trabalho ou dos fins de semana, mas sim o tempo do trabalho e o
tempo do n‹o-trabalhoÓ22.
Fa•o uma observa•‹o, para Noelly, sobre seu jeito elŽtrico e apressado,
not‡vel n‹o apenas nos gestos, mas na pr—pria fala, r‡pida e entrecortada. Respira
fundo e me olha profundamente. ÒEssa rela•‹o com o tempoÓ, diz, Òessa pressa tem a
ver com o ritmo das reda•›es, onde aprendi a n‹o ficar paradaÓ.
Ao que parece h‡ uma liga•‹o entre esse h‡bito e um valor importante no
universo das not’cias, o do imediatismo (a not’cia deve ser dada o quanto antes, j‡ que
o primeiro meio a noticiar um acontecimento usualmente leva vantagem sobre a
concorr•ncia). Ao contr‡rio do valor-not’cia da objetividade, que segundo Traquina23 provoca intensa pol•mica dentro e fora das Reda•›es, o valor do imediatismo ganhou
for•a com a emerg•ncia dos meios digitais, no que se refere a perseguir o menor
intervalo de tempo poss’vel entre o acontecimento e sua transforma•‹o em not’cia.
Hoje, o imediatismo reina como um valor inconteste na maior parte dos ve’culos
jornal’sticos. A ideia de imediatismo, por sua vez, deriva de outra no•‹o, muito mais
Groth: a da periodicidade, sempre opressora. De in’cio, regulado pelo ciclo do dia (ou
dias) dos jornais e revistas, e depois pelos intervalos cada vez mais curtos das m’dias
elŽtricas e eletr™nicas Ð da’ advŽm a importante constata•‹o de que Òa primeira e mais
sŽria decorr•ncia que delimita sua [do jornalista] miss‹o social Ž a impossibilidade de
qualquer forma de perfeccionismo cient’ficoÓ, como escreveu j‡ em 1982 Cremilda
Medina24.
A palpita•‹o incontrol‡vel do tempo lan•a reflexos inclusive sobre a vida
pessoal dos jornalistas mais veteranos Ð mesmo em sua linguagem corporal Ž n’tida a
influ•ncia dos anos de rotina atribulada e imprevis’vel. M‹os e olhos inquietos,
curiosamente perscrutando o interlocutor e o cen‡rio de fala. A fala frequentemente
‡gil e truncada, comprimindo muitos t—picos em poucas frases. Noelly, diante de
mim, era um exemplo vivo das tantas quest›es que me importavam debater nesta tese.
As consequ•ncias do dia a dia pesado s‹o inclusive f’sicas, prossegue Noelly,
agora animada pela incomum oportunidade de debater com um pesquisador
acad•mico a sua carreira. Ela mesma relata problemas com ansiedade e depress‹o,
dificuldades com o peso, crises de exaust‹o.
Em sua tese de p—s-doutorado, Roberto Heloani25 mostrou que o imagin‡rio
popular acerca da vida do jornalista Ž muito diferente da pr‡tica batalhadora, em que
pessoas Òapaixonadas pelo que fazemÓ sentem que n‹o est‹o fazendo Òjornalismo de
verdadeÓ, e frequentemente adoecem com a sobrecarga de trabalho e de
responsabilidades. Os profissionais vivem em medo constante dos ÒpassaralhosÓ
(cortes de pessoal) e nas Reda•›es alimenta-se o clima de que qualquer um pode ser
substitu’do a qualquer momento. ÒPor isso os problemas de ordem cardiovascular s‹o
muito frequentes. Hoje, Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs) e o fen™meno da
morte sœbita come•am a aparecer de forma assustadora, alŽm da sistem‡tica
depend•ncia qu’micaÓ, afirma Heloani. AlŽm disso, completa, a constante cobran•a
por atualiza•‹o e flexibilidade (Ò"Se h‡ uma profiss‹o que abra•ou mesmo essa ideia
de multifun•‹o, foi o jornalismoÓ) contribui para que 80% dos profissionais
pesquisados por Heloani no Rio e em S‹o Paulo sofram de estresse, sendo 24,4% Òna
ter de ser internado num hospital por conta da carga emocional e f’sica causada pelo
trabalhoÓ.
Noelly n‹o fugiu ˆ regra das crises de depress‹o e de ansiedade ap—s rotinas
exaustivas sob press‹o de chefias implac‡veis (ou ÒmercuriaisÓ, no entender do
editor-executivo da Folha de S.Paulo, SŽrgio D‡vila, que afirma no cap’tulo 4 desta
tese que n‹o h‡ mais espa•o, nas grandes Reda•›es da atualidade, para editores
desp—ticos).
Jornalista veterana e inquieta, foi s— ap—s muitas idas e vindas pela casa
espa•osa e abarrotada de caixas, ap—s muitos cigarros, telefonemas, um convite para
dividir uma pizza, coment‡rios sobre o notici‡rio do dia Ð ent‹o dominado pela
disputa ˆ Presid•ncia da Repœblica, recŽm-vencida pela petista Dilma Rousseff Ð que,
por volta das 22h, Noelly enfim se acomodou em um sof‡ no canto da sala e, n‹o
menos irrequieta, focalizou suas energias em uma fŽrtil reflex‹o sobre o fazer
jornal’stico e, principalmente, sobre o papel do editor.
Neste momento, cuja frui•‹o tomou quase duas horas prŽvias de contato fŽrtil,
sens’vel e verdadeiramente dial—gico, sem impor ao entrevistado a ditadura de um
question‡rio inflex’vel, o pesquisador soube de imediato que estava diante de um
evento raro. Ou, bebendo no universo lŽxico e conceitual dos jornalistas, de uma
not’cia. Embora n‹o faltem na hist—ria desta ci•ncia exemplos de grandes jornalistas
que se tornaram importantes pesquisadores acad•micos26, raros parecem ser os jornalistas cujas culturas foram forjadas exclusivamente no ambiente de mercado que
se prestam a refletir em profundidade, ao menos publicamente, sobre sua atividade.
Pois, como sugeriu a pesquisadora Barbara Philips em estudo no final da dŽcada de 70
nos EUA27, generalismos ˆ parte, a maioria dos jornalistas se identifica como homens de Òa•‹oÓ, e n‹o ÒpensadoresÓ.
Ou seja, consideram-se em v‡rios aspectos como opostos aos acad•micos.
Enquanto pesquisadores procuram regularidades e padr›es entre acontecimentos para
deles, muitas vezes a partir de uma reflex‹o puramente te—rica, extrair leis universais,
os jornalistas s‹o pragm‡ticos e for•osamente preocupados com a opress‹o de
deadlines. Ou, nas palavras de Barbara Philips, o jornalista seria como o emp’rico
primitivo de Claude LŽvi-Strauss28, aquele que opera na l—gica do concreto: m‹os e olhos. A soci—loga Gaye Tuchman, autora de importantes estudos sobre h‡bitat e
profissional dos jornalistas privilegia o saber instintivo Ð que aqui frequentemente
chamamos de faro, instinto, alma ou esp’rito de rep—rter Ð em rela•‹o ao saber
reflexivo.
Tal dicotomia de saberes, contudo Ð oposi•‹o entre saber fazer e saber pensar
Ð, n‹o pode mais ser aceita para o pesquisador em comunica•‹o, ‡rea que nas œltimas
dŽcadas vem firmando, num esfor•o cont’nuo, seu espa•o na academia e na
sociedade. Persistindo a dicotomia, aceitando-se a vers‹o do jornalista que Òfaz sem
pensarÓ, pari passu corre-se o risco de reduzir o homem a uma m‡quina, observando
o jornalismo sob a —tica utilit‡ria mais rasteira e, em suma, limitando o papel do
comunicador ao de divulgador, e, t‹o grave quanto, reduzindo a comunica•‹o a um
processo linear (unidirecional) e mec‰nico.
Sobre este œltimo problema, Fausto Neto escreveu que Òa amplia•‹o de novas
possibilidades te—ricas para mover os protocolos de intera•‹o, com base no conceito
de media•‹o, significa, por exemplo, o reconhecimento dos limites desses velhos
paradigmas condutivistas da comunica•‹o. Tal reconhecimento sup›e constatar,
igualmente, que os padr›es e os processos de produ•‹o e de recep•‹o de informa•‹o
s‹o, desta feita, muito mais complexos, porque s‹o operados por uma conjuga•‹o de
for•as, atores, tecnologias e realidades situacionais mais amplos e cruciais do que o
velho modelo de oferta/recep•‹o = efeitosÓ30.
Mais interessante, nesse sentido, Ž a perspectiva de Cremilda Medina, que na
dŽcada de 80, no livro ÒProfiss‹o Jornalista: Responsabilidade SocialÓ j‡ alertava para
a divis‹o entre jornalistas fazedores e acad•micos pensadores, porŽm reivindicando,
em linha com sua pr—pria trajet—ria biogr‡fica, uma comunh‹o de esfor•os em nome
da constitui•‹o de novos saberes na ‡rea. ÒDos comunicadores Ð na vida ativa de
exerc’cio profissional ou na vida cient’fica de pesquisa e planejamento (muito raros) Ð
Ž dif’cil surgirem textos reflexivos, uma vez que as tarefas de ordem imediata
absorvem a escassa m‹o de obra da comunica•‹o coletiva. Os profissionais
envolvidos na produ•‹o de informa•›es vigente Ð todo o aparato da indœstria cultural
emergente na AmŽrica Latina Ð est‹o, por conting•ncia do pr—prio fen™meno,
trabalhando sob press‹o do tempo. Pouco sobra para lazer pessoal, quanto mais para a
reflex‹o anal’tica. E os pesquisadores, planejadores, professores (em geral,
patrocinados pelas universidades) est‹o abrindo frentes de trabalho pioneiro e s‹o
muito poucos para uma tarefa t‹o ingrata e pesadaÓ, escreveu a pesquisadora,
que o ponto de vista dos que se constru’ram dentro do pr—prio fen™meno Ð atravŽs de
uma pr‡xis e de uma reflex‹o Ð seja consideradoÓ31.
A no•‹o condutivista do processo comunicacional e a idŽia do jornalista como
mero divulgador s‹o fortemente repudiadas pela pesquisadora, cuja obra se constr—i
na batalha cotidiana contra no•›es reducionistas. Em ÒO Signo da Rela•‹o:
Comunica•‹o e Pedagogia dos AfetosÓ aparece sintetizada a no•‹o do jornalista como
um produtor cultural simb—lico das narrativas da contemporaneidade. Para a
pesquisadora, a l—gica do jornalista-divulgador deve ser substitu’da por uma no•‹o
mais leg’tima de comunica•‹o, que pressup›e a dialogia social Ð ou, no dizer da
autora, a passagem do signo da divulga•‹o ao signo da rela•‹o32.
Noelly Russo estava diante de mim para confirmar essa possibilidade: um
jornalista deve refletir sobre sua fun•‹o e papel na sociedade, e o acad•mico deve
ouvir a pulsa•‹o da sociedade em sua pesquisa. Ambos s— t•m a ganhar com esse
interc‰mbio de percep•›es e leituras.
2.1 SENSêVEL NARRATIVA
O mediador social deve trabalhar com narrativas da atualidade Ð elas sim
capazes de estabelecer a dialogia plena, que envolve mais do que signos lingŸ’sticos Ð
comprometidas com o signo da rela•‹o. A narrativa, definida por Medina33 como a resposta do homem diante do caos, transformando-o em cosmos, ser‡, assim, n‹o
apenas complexa, mas afetuosa e poŽtica. ÒDotado de capacidade de produzir
sentidos, ao narrar o mundo, o sapiens organiza o caos em um cosmos. O que se diz
da realidade constitui uma outra realidade, a simb—lica. Sem essa produ•‹o cultural Ð
a narrativa Ð o humano ser n‹o se expressaÓ, escreve Medina, para quem Òmais do que
talentos de alguns, poder narrar Ž uma necessidade vitalÓ 34.
No ‰mbito do jornalismo Ð e nas m‹os, cora•›es e mentes dos jornalistas Ð a
necessidade se torna premente: Ž o mediador social quem em primeiro lugar tem a
responsabilidade autoral de criar, renovar e administrar a realidade circundante. Como
escreveu M‡rcia Blasques35, Òo aprendizado dos sistemas narrativos, a necessidade vital de sensibilizar-se constantemente diante do mundo, a a•‹o de escrever e a
capacidade de manter viva a dialogia da escrita coletiva s‹o desafios que os jornalistas
Ð enquanto autores e mediadores sociais Ð enfrentam todos os diasÓ.
Como s—i acontecer, tambŽm neste caso, diante da desgastada oposi•‹o entre
elucubra•›es positivistas j‡ insustent‡veis nas ci•ncias. Diante de Noelly Russo, cujo
œltimo cargo havia sido o de diretora de reda•‹o do jornal MTV na Rua (tabl—ide
gratuito ligado ao grupo Abril, distribu’do de segunda a sexta-feira em S‹o Paulo),
parecia claro que os conceitos que se cal•am na ant’tese direta entre jornalismo e
reflex‹o eram excessivamente opressores. Ou: brutais, paran—icos, no dizer de
Maffesoli36. Cr’tico da ci•ncia partitiva e encastelada, o franc•s lembraria ainda que Òo intelectual nomeia algo e cr• que esteja criando aquilo que nomeou, da mesma
forma que Deus em rela•‹o ao homem e ˆ mulherÓ.
Em outras palavras, o conceito Ž uma cerca Ð e n‹o por acaso o dicion‡rio
Houaiss registra que a palavra arcabou•o, da express‹o arcabou•o te—rico, Ž tambŽm
sin™nimo de carca•a. E o mundo necessariamente n‹o cabe em cercas ou carca•as.
Dito de outra forma, n‹o se deixa apreender por uma teoria.
Ent‹o ser‡ que uma divis‹o t‹o simples entre empiria e teoria, a•‹o e reflex‹o,
responderia satisfatoriamente aos desafios da pesquisa em jornalismo hoje, cen‡rio
que clama por um abordagem mais complexa?
N‹o.
Mais sintonizadas aos tempos atuais s‹o as vozes que questionam: qual a
diferen•a mais profunda entre o jornalista e o intelectual? E o soci—logo? O
antrop—logo? O cientista social ÒsŽrioÓ? A opress‹o do tempo pode ser uma resposta,
mas, quanto ao descarte do pensamento aprofundado, h‡ controvŽrsia. N‹o parece
haver uma necess‡ria e pejorativa superficialidade (como se mal at‡vico, inescap‡vel,
inerente ˆ atividade jornal’stica) no trabalho jornal’stico, no pensamento dos
jornalistas cristalizado em palavras. No entender de um renomado intelectual, a
prop—sito, o jornalista Ž uma espŽcie de intelectual de condi•›es adversas. Disse
Florestan Fernandes em depoimento ao jornal universit‡rio da ECA/USP em 1976
(apesar de ser uma fala muito espec’fica dos tempos de Regime Militar, acreditamos
que traz uma contribui•‹o ainda atual): Òo jornalista Ž o intelectual que se defronta
com o cerceamento mais profundo e destrutivo de sua capacidade de trabalhoÓ. E
completa, criticamente: Òo que corre entre n—s Ž que em ambos os n’veis a sociedade
brasileira reage de forma restritiva ˆ atividade do jornalista, quer bloqueando a
percep•‹o de seu significado espec’fico, quer expondo-a a controles extra-intelectuais
empobrecedores e sufocantesÓ. ÒOnde os jornalistas n‹o podem desempenhar
criadoramente os seus papŽis intelectuais eles se neutralizam como influ•ncia
do crescimento da seculariza•‹o da cultura dos padr›es mŽdios de democratiza•‹o da
sociedadeÓ37.
O que nos leva de volta a Noelly. Eram passadas as 22h de uma sexta-feira. A
temperatura come•ava a cair mais fortemente naquela noite de ver‹o, instigada pelo
prenœncio de chuva. Os ventos, tendo mudado de intensidade e dire•‹o, entravam com
mais for•a pela porta escancarada, pela janela escancarada a pouco mais de dois
metros de onde est‡vamos sentados, um diante do outro, j‡ muito ˆ vontade ap—s o
descontra’do jantar Ð composto por duas pizzas, pratos t’picos na mesa dos
paulistanos e em especial dos atarefados jornalistas paulistanos, acostumados a longas
horas de plant‹o nas reda•›es Ð, em que fomos acompanhados por seu terceiro
marido, RogŽrio (de todos, o œnico que jamais trabalhou como jornalista, frisa ela.
Ex-empres‡rio, Ž hoje consultor de casas noturnas, bares e restaurantes).
Os ventos oxigenariam, ˆquela altura, a conversa. Copo de Coca-Cola na m‹o
Ð a entrevista inteira, com um total de cinco horas de dura•‹o, seria regada
exclusivamente ao refrigerante Ð, sentada sobre as pernas dobradas, acomodando seu
pouco mais de 1,50 metro sobre o sof‡, Noelly mudou de semblante, como mudara a
dire•‹o do vento. Compenetrada, refletiu:
Ð O papel do editor, ou o pr—prio editor, sofreu mudan•as nos œltimos 10, 15 anos. O
editor hoje Ž um cara que voltou, num certo sentido, ao come•o da fun•‹o de editor.
Tem mais espa•o e Ž mais requisitado diante da overdose de canais de informa•‹o
dispon’veis. Ele Ž o cara que vai dar angula•‹o, um saborzinho, enxergar o j‡ sabido
por um outro ‰ngulo, mais interessante e rico.
Racioc’nio instigante. A jornalista diria, ent‹o, que o editor hoje est‡ menos
burocratizado e mais humano Ð obviedade ent‹o necess‡ria de ser dita porque a
revitalizada proximidade com o leitor, com o advento da internet, teria lan•ado o
editor para fora de sua torre de marfim e para dentro da vida mundana, abertamente
contradit—ria.
Sobre os dois temas nos debru•aremos adiante, trazendo para o debate a vozes
de outros jornalistas.
Importa que naquele momento, durante a entrevista com Noelly Russo Ð a
jornalistas fazedores e intelectuais pensadores era artificial. As fronteiras entre pensar
e fazer s‹o mais nebulosas. Afinal, o que difere o jornalista do intelectual?
Naquele momento, n‹o pareceu que a resposta residiria num suposto poder de
an‡lise, mais desenvolvido nos acad•micos, ou num aventado insight criativo t’pico
dos bons jornalistas. Nada, num n’vel mais profundo, parece diferi-los, em realidade.
Pois tempo, deadline e emprego de linguagem coloquial, por exemplo, s‹o fatores
menores, meramente circunstanciais, nessa equa•‹o. No n’vel mais profundo de
produ•‹o de conhecimento, de rigor na observa•‹o Ð tomemos os riqu’ssimos
exemplos fornecidos pela Grande Reportagem Ð e de miss‹o e responsabilidade
social, n‹o h‡ maiores fronteiras, sen‹o ilus—rias. A prop—sito, inœmeras reportagens
de maior f™lego n‹o s— t•m servido de subs’dio para pesquisas em Ci•ncias Sociais e
Humanas como frequentemente elas mesmas t•m se tornado importantes documentos
sociol—gicos, antropol—gicos e hist—ricos repletos de reflex‹o e vitalidade. H‡
exemplos internacionais, como ÒOs Dez Dias que Abalaram o MundoÓ, documento
importante sobre a Revolu•‹o Russa escrito por John Reed em 1917, ÒHiroshimaÓ, de
John Hershey, com sobreviventes da bomba at™mica na Segunda Guerra, e nacionais,
em Jo‹o do Rio, em ÒOs Sert›esÓ, de Euclides da Cunha, entre centenas de outros.
Cumpre citar ainda a bem sucedida experi•ncia de trabalhar uma narrativa sob
perspectiva simultaneamente jornal’stica e acad•mica em ÒA Arte de Tecer o
PresenteÓ, de Cremilda Medina (2003).
Assim, quando liberto da amarra de um deadline imediato, o jornalista logra
resultados t‹o convincentes e s—lidos, t‹o inspiradores e reveladores quanto os de
qualquer pesquisa social Ð nesse caso, remeta-se ainda ˆ internacionalmente
reconhecida experi•ncia da sŽrie de livros-reportagem ÒS‹o Paulo de PerfilÓ, feita por
alunos da gradua•‹o da ECA sob coordena•‹o de Cremilda Medina, que inspirou a
realiza•‹o de disserta•›es e teses na mesma Escola.38
O soci—logo Luiz Gusm‹o, em entrevista ao rep—rter Rafael Cariello na Folha
de S.Paulo39 por ocasi‹o do lan•amento de seu livro ÒO Fetiche do ConceitoÓ, questiona a raz‹o pela qual o Òconhecimento proporcionado pela an‡lise de um
historiador marxista seria mais amplo, teria maior valor, do que aquele oferecido por
uma biografia desprovida de jarg›es tŽcnicos ou sociol—gicosÓ. E indaga por que,
afinal, Òa an‡lise de um cientista pol’tico seria mais fecunda do que um coment‡rio
sobre o mesmo fato, ainda que extremamente arguto e inteligente, feito por algum
N‹o havia como, portanto, fechar os cinco sentidos ˆ narrativa pulsante de
Noelly, desqualificando-a por n‹o se tratar de alguŽm autorizado a tecer uma reflex‹o
sobre seu campo, na express‹o celebrizada por Pierre Bourdieu40, com terminologia
supostamente inadequada ou imprecisa, sem um arcabou•o te—rico de sustenta•‹o ˆ
an‡lise da pr‡xis.
A ex-diretora dos gratuitos Metro e MTV na Rua, Ž, pois, nas palavras do
jornalista, professor e escritor argentino Tom‡s Eloy Mart’nez41, um daqueles
personagens paradigm‡ticos que encarnam em si os mœltiplos aspectos de um evento
noticioso, um personagem pelo qual podemos compreender, de maneira inclusive
mais abrangente, as transforma•›es que se deram em certo contexto, em certo
per’odo. ÒA sorte de um homem resume, em certos momentos essenciais, a sorte de
todos os homens.Ó
Analisando o melhor da produ•‹o jornal’stica nacional, convivendo com
jornalistas, observando suas rotinas e entrevistando-os para esta tese, fica claro que,
embora n‹o se possa considerar todo jornalista um intelectual (assim como n‹o se
deveria considerar todo soci—logo ou todo fil—sofo um intelectual, levando-se em
conta que intelectual Ž aquele que sistematicamente usa de seu intelecto para refletir e
propor problemas e ideias de relev‰ncia social), a oposi•‹o entre jornalistas e
intelectuais Ž n‹o apenas falsa, mas tambŽm contraproducente.
Neste ensaio, que costura reflex›es do autor, de 11 jornalistas/editores
renomados e de inœmeros acad•micos, ao menos uma conclus‹o parece aceit‡vel:
quando motivados e instados a um verdadeiro di‡logo, bons jornalistas podem ser t‹o
argutos, profundos e interessantes quanto qualquer intelectual acad•mico-can™nico.
Ou seja, bons jornalistas s‹o como bons intelectuais a servi•o da sociedade.
22
Segundo Travancas (1993, p. 34), Òpara esta categoria profissional a rela•‹o com o tempo vai determinar um estilo de vida pr—prio. Os jornalistas parecem viver dentro de um Ôoutro tempoÕ, como se o seu rel—gio funcionasse bem mais r‡pido e em outro ritmo. N‹o Ž o tempo do dia e da noite, dos dias de trabalho ou dos fins de semana, mas sim o tempo do trabalho e o tempo do n‹o-trabalho. Pois trabalha-se de dia e de noite, todos os dias da semana, sem grandes distin•›es
23
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo. A tribo jornal’stica Ð uma comunidade interpretativa transnacional. Florian—polis: Insular, 2008.
24
MEDINA, Cremilda. Profiss‹o Jornalista: Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Forense Universit‡ria, 1982. p. 21.
25
HELOANI, Roberto. Mudan•a no mundo do trabalho e impactos na qualidade de vida do jornalista. Relat—rio de Pesquisa n¡ 12. S‹o Paulo: FGV/SP (NPP - Nœcleo de Pesquisas e Publica•›es), 2003.
26
No Brasil cumpre citar Cremilda Medina, ex-editora de O Estado de S.Paulo e professora titular da ECA-USP, entre outros.
27
PHILIPS, E. Barbara. What is news? Novelty without change? In: Journal of Communication, vol 26, no. 4. Estados Unidos, 1976.
28
Levi-Strauss (2005). 29
Tuchman (1972, 1978). 30
Sobre o velho problema da comunica•‹o enxergada como um fluxo de informa•›es envolvendo emissor e receptor, remetemos a Fausto Neto, que escreve: ÒA institucionaliza•‹o de estratŽgias de media•‹o visa, dentre outras coisas, responder aos limites postos pelas teorias e modelos de a•›es comunicativas, que centravam sua no•‹o de efic‡cia, e de seus conseqŸentes efeitos, nos fluxos de linearidade entre produ•‹o/recep•‹o de mensagens. A amplia•‹o de novas possibilidades te—ricas para mover os protocolos de intera•‹o, com base no conceito de media•‹o, significa, por exemplo, o reconhecimento dos limites desses velhos paradigmas condutivistas da comunica•‹o. Tal reconhecimento sup›e constatar, igualmente, que os padr›es e os processos de produ•‹o e de recep•‹o de informa•‹o s‹o, desta feita, muito mais complexos, porque s‹o operados por uma conjuga•‹o de for•as, atores, tecnologias e realidades situacionais mais amplos e cruciais do que o velho modelo de oferta/recep•‹o=efeitos.Ó (1999, p.13)
31
MEDINA, Cremilda. Profiss‹o Jornalista: Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Forense Universit‡ria, 1982. p. 16-18.
32
Medina (2006). 33
Uma defini•‹o simples de narrativa Ž aquela que a compreende como uma das respostas humanas diante do caos. Dotado de capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, o sapiens organiza o caos em um cosmos. O que se diz da realidade constitui uma outra realidade, a simb—lica. Sem essa produ•‹o cultural Ð a narrativa Ð o humano ser n‹o se expressa, n‹o se afirma perante a desorganiza•‹o e as inviabilidades da vida. Mais do que talentos de alguns, poder narrar Ž uma necessidade vital. (idem, p‡g. 67)
34
A raz‹o treinada para resultados imediatos perde a for•a do afeto e n‹o d‡ margem a um insight criativo. No fundo, essa Ž a marca de autor que se aspira: contar sua hist—ria ou a hist—ria coletiva de forma sutil e complexa, afetuosamente comunicativa e iluminando no caos alguma esperan•a do ato emancipat—rio. (...) No ‰mbito da complexidade, pouco h‡ que fazer se a emo•‹o solid‡ria e a cria•‹o estŽtica n‹o estimularem uma raz‹o luminosa no lugar da raz‹o tŽcnico-burocr‡tica, movida pelo arsenal de gram‡ticas estratificadas. Ainda que afetuoso o gesto, este n‹o resulta numa A•‹o solid‡ria se n‹o for informado pelo repert—rio e pela disciplina racionais e pela pesquisa estŽtica. E a poŽtica s— explode no ato de comunh‹o, como dizia Octavio Paz. Comunh‹o, a plenitude da comunica•‹o, ocorre na tr’plice tessitura da Žtica, tŽcnica e estŽtica. (idem, p‡g. 68).
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