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2. JORNALISTAS VS INTELECTUAIS

3.2 O EDITOR NA TEORIA

A multiplicidade de fun•›es e desafios condensados na figura do rep—rter colocou esse profissional por mais de um sŽculo no centro das mais propagadas teorias do jornalismo. A

come•ar pela Teoria do Espelho, uma das primeiras a buscar compreender Ð ou explicar Ð as engrenagens da not’cia. Inspirada no positivismo de Auguste Comte, situa o jornalismo como simples reflexo da realidade: as not’cias seriam determinadas pelos fatos. E o profissional que personifica olhos e ouvidos do jornal auscultando os fatos Ž precisamente o rep—rter, cuja miss‹o Ž representar, ou reconstruir, a realidade atravŽs de seu relato. No centro do espelho, portanto, est‡ o rep—rter.

Cabe aqui um par•ntese no esfor•o necess‡rio de transcender a vis‹o mais simplista sobre o positivismo para que avancemos na reflex‹o sobre a por•‹o de seu legado ainda hoje enraizada no jornalismo brasileiro. O positivismo Ž uma doutrina filos—fica exaustiva e rigorosamente elaborada por Auguste Comte em diversas obras, dentre as quais destacamos a s’ntese expressa no Discurso Sobre o Esp’rito Positivo, de 1844.

Na obra, Comte postulou a lei dos tr•s estados na trajet—ria intelectual da humanidade: teol—gico, metaf’sico e positivo. O primeiro um estado fict’cio, dominado por uma imagina•‹o que se assombrava diante do sobrenatural, dividido por sua vez nas etapas fetichista, polite’sta e enfim monote’sta. O segundo, o estado metaf’sico, classificado como uma espŽcie de enfermidade cr™nica entre a inf‰ncia e a virilidade, uma adolesc•ncia intelectual alimentada pelas incessantes especula•›es sobre a origem e o destino do homem. Em seguida viria enfim a fase positiva, dom’nio da raz‹o, em que a observa•‹o direta seria a œnica base poss’vel para o conhecimento. Este œltimo est‡gio, segundo o autor, seria alcan•‡vel atravŽs dos alicerces j‡ erigidos pelas revolu•›es francesa (pol’tica) e inglesa (industrial), e a a•‹o pœblica deveria convergir ao regime republicano, numa integra•‹o ordeira e harm™nica, solid‡ria. N‹o ˆ toa, foi Comte quem cunhou, por volta de 1830, o termo Òaltru’smoÓ. Sua raiz, segundo o dicion‡rio Houaiss65, Ž a palavra francesa autrui (outro). O altru’smo, ou, numa tradu•‹o livre, Òoutro’smoÓ, seria portanto uma contraposi•‹o ao Òego’smoÓ, ao individualismo destrutivo. Bosi66 identifica a’, a prop—sito, uma distin•‹o clara entre o projeto comtiano e a ideia do darwinismo social, Òque identificava na lei da selva o princ’pio motor de toda a evolu•‹o: struggle for life. Comte formulara como norma de conduta a express‹o oposta: viver para outrem, vivre pour autruiÓ.

Assim, apesar das fortes cr’ticas que sofreu no sŽculo seguinte por seu factualismo ou determinismo (a raz‹o que impera sobre todas as coisas, a observa•‹o extraindo leis naturais imut‡veis, o estudar o que Ž para prever o que ser‡), Ž igualmente relevante, para uma reflex‹o mais complexa e cr’vel sobre o tema, reconhecer os seus mŽritos em v‡rios campos

sociais, entre os quais a defesa do abolicionismo e do estado republicano laico, a sobriedade no trato da coisa pœblica e a defesa dos direitos trabalhistas, dentre outros. TambŽm na ci•ncia sua influ•ncia foi particular. Lembra Medina67 que muitos dos preceitos atuais de uma epistemologia pragm‡tica se coadunam perfeitamente com as ideias de Comte: ÒQuando os epistem—logos contempor‰neos defendem o conhecimento pragm‡tico, aquele que avalia as consequ•ncias sociais da ci•ncia, a concep•‹o sintoniza perfeitamente com o princ’pio positivista que conquistou as mentes do fim do sŽculo XIX e se mostrou operante em todo o sŽculo XX: para o pensador, a efic‡cia cient’fica de qualquer modo, seja a abstra•‹o racional, seja o laborat—rio experimental, depende da rela•‹o direta ou indireta com os fen™menos observados.Ó

Ainda assim, segundo Bosi68, atualmente Òo discurso ÔpositivoÕ acantonou-se e afinou- se no empirismo l—gico que d‡ prioridade ao œnico ÔfatoÕ ub’quo e incontest‡vel, a linguagem, a qual, por sua vez, fala de fatos como o signo fala de coisas e de suas rela•›esÓ. E Ž justamente a’, na for•a dessa ideia, que reside a principal matriz de sedu•‹o do positivismo sobre o jornalismo. A no•‹o de que fatos incontestes podem ser descritos objetivamente pela palavra (escrita ou falada), numa perspectiva relativa (ou reducionista, centrada apenas no fato em si, e n‹o no universo contextual daquele fato, em sua origem e/ou destino Ð preocupa•›es que Comte classificaria como metaf’sicas, prŽ-positivas) sobrevive pujantemente nos Manuais de Reda•‹o e no pr—prio dia a dia das reda•›es, nos pr—prios estere—tipos que muitos jornalistas propagam a respeito de si mesmos e de seu of’cio.

Apesar de a Teoria do Espelho seguir ainda hoje paradigm‡tica entre grande parte do pœblico consumidor de jornais, que frequentemente considera o jornalismo um retrato efetivamente factual e objetivo da realidade Ð dogma que as m’dias pouco fazem para desidratar Ð, entre estudiosos Ž praticamente inconteste sua insufici•ncia, visto que ignora a a•‹o dos jornais e jornalistas na constru•‹o social dos sentidos da realidade, ou seja, seu status de agentes, e n‹o de meras m‡quinas repassadoras de informa•›es, desprovidas de subjetividade e ideologia69. Na contram‹o desses e de outros estudos a eles avizinhados, uma mir’ade de estudiosos da comunica•‹o tem apontado nas œltimas dŽcadas a necessidade de se pensar as not’cias n‹o como produtos acabados do Òmundo realÓ, portanto pass’veis de uma ÒdescobertaÓ, mas como eventos constru’dos, produzidos70.

A maneira como o evento not’cia Ž produzido, no entanto, n‹o Ž consensual entre os pesquisadores.

Nas œltimas dŽcadas diversos autores t•m apontado a necessidade de repensar os paradigmas da ‡rea, atentos ˆs transforma•›es sofridas pelo jornalismo (e pela sociedade) contempor‰neo. Medina71 Ž uma das pioneiras nessas reflex›es no Brasil, cujas implica•›es t•m sido abordadas por diversos autores, como Pal‡cios72, que ao refletir sobre o atual cen‡rio de profus‹o de m’dias aponta que Òa dissemina•‹o das aplica•›es digitais e a generaliza•‹o da comunica•‹o mediada por computador produzem potencializa•›es de uma tal ordem de grandeza que atŽ mesmo as continuidades mais se assemelham ˆs rupturasÓ.

O contexto contempor‰neo de liquidez73 das rela•›es, Òdominado pela imprevisibilidade e instabilidade, ao invŽs do controle e da ordem, no qual nenhum grupo de elite, qualquer que seja a sua posi•‹o ideol—gica e por mais que esteja firmemente ancorado nos corredores do poder, est‡ insulado da sondagem jornal’sticaÓ, como diz o soci—logo do caos Brian McNair74, tambŽm parece convidar ˆ reflex‹o sobre o papel do jornalismo e sobre a adequa•‹o dos paradigmas cl‡ssicos de gatekeeping e noticiabilidade, entre outros, ˆs demandas sociais vigentes.

A Teoria do Espelho introduziu o problema de refletir sobre o que s‹o as not’cias ainda em meados do sŽculo XIX. Levou, portanto, quase 100 anos, com a Teoria do Gatekeeper, para que uma nova e fundamental vari‡vel fosse considerada: a subjetividade.

E, por fim, mais cerca de meio sŽculo seria necess‡rio para que a no•‹o de subjetividade na produ•‹o de sentidos fosse fertilizada pelo princ’pio da intersubjetividade, da produ•‹o social dos sentidos.

Antes de prosseguir no exame do contexto atual dos estudos de comunica•‹o e da produ•‹o social dos sentidos, contudo, faz-se necess‡rio debater a Teoria do Gatekeeper e sua contribui•‹o aos saberes da ‡rea.