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2. JORNALISTAS VS INTELECTUAIS

3.4 PRODU‚ÌO SOCIAL DOS SENTIDOS

As Teorias do Jornalismo dos sŽculos XIX e da primeira metade do sŽculo XX ignoram em grande parte um aspecto que se tornou crucial, nas œltimas dŽcadas, na compreens‹o do processo comunicativo: o car‡ter social da produ•‹o de sentidos. Cremilda Medina80 lembra, nesse sentido, as importantes contribui•›es de Marx, Freud e Nietzsche no avan•o dos estudos sobre a interpreta•‹o.

Ap—s esses e outros estudos, a discuss‹o sobre o sentido da mensagem jornal’stica n‹o p™de mais se restringir a um espelho objetivo da realidade, ˆs inten•›es de um editor- gatekeeper ou ˆ pol’tica editorial de uma organiza•‹o. O feixe de for•as atuante sobre o sentido passou, necessariamente, a considerar ainda o leitor (n‹o mais um receptor, mas um coautor do texto e do sentido, como bem demonstra Eco81) e a sociedade Ð e, ainda, for•as inconscientes, arquet’picas, nesse processo.

TambŽm na lingu’stica a no•‹o de que o sentido de um enunciado est‡ dentro do pr—prio enunciado Ð Ž, portanto, est‡vel, apenas aguardando a sua decifra•‹o Ð foi superada. A concep•‹o de que o papel do leitor equivale ao de um receptor passivo Ž insuficiente para explicar o complexo fen™meno da interpreta•‹o. Se no passado acreditava-se que bastaria conhecimento lingu’stico e gramatical para chegar a uma hipotŽtica verdade do enunciado (cf. Maingueneau82), atualmente as pesquisas na ‡rea afirmam que os enunciados n‹o podem mais ser tomados fora de seus contextos, pois n‹o possuem sentido fixo. ÒA pessoa que interpreta o

enunciado reconstr—i seu sentido a partir de indica•›es presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que ela reconstr—i coincida com as representa•›es do enunciador. Compreender um enunciado n‹o Ž somente referir-se a uma gram‡tica e a um dicion‡rio, Ž mobilizar saberes muito diversos. (...) Certamente isso n‹o quer dizer que as unidades lexicais de urna sequ•ncia verbal n‹o signiÞquem nada, nem que suas rela•›es deixem de orientar de maneira decisiva a interpreta•‹o. O que se quer dizer Ž que, fora de contexto, n‹o podemos falar realmente do sentido de um enunciado, mas, na melhor das hip—teses, de coer•›es para que um sentido seja atribu’do ˆ sequ•ncia verbal proferida em uma situa•‹o particularÓ, escreve Dominique Maingueneau.

Se no campo da lingŸ’stica a inquieta•‹o contra a monologia Ž crescente, no da comunica•‹o, fen™meno por natureza complexo, n‹o poderia ser diferente. Cremilda Medina traz para o jornalismo as reflex›es de Freud e Marx e afirma que, na cosmovis‹o expressa pelo jornalista em seus textos, press›es externas e sentimentos coletivos Òquase sempre inconscientesÓ exercem grande influ•ncia. A l—gica monol’tica das teorias do Gatekeeper e da Organiza•‹o, portanto, sai estremecida pelo atrito com a pluridade de sentidos do real. ÒA informa•‹o social (not’cia, mensagem jornal’stica) sempre recodiÞca uma apreens‹o do real imediato (matŽria-prima do fen™meno). Neste sentido, resulta de um processo decifrador, cognoscitivo. Ao trabalhar como profissional dessa decifra•‹o poss’vel, o jornalista expressa uma cosmovis‹o. Mas, alŽm desse esfor•o racional, o jornalista administra press›es externas e sentimentos coletivos quase sempre inconscientes. Se fosse poss’vel ßagrar este conflito ’ntimo, quase sempre se surpreenderia a fragilidade do produtor simb—lico para sucumbir ˆ cosmovis‹o oÞcial e, portanto, monol’ticaÓ83.

A abordagem interdisciplinar da pesquisadora enriquece a discuss‹o sobre o problema, a todo momento trazendo ˆ tona a sua componente cultural. A receita Ž, no entender de Jesœs Mart’n-Barbero84, essencial para entender o fen™meno da comunica•‹o: ÒA expans‹o e interpenetra•‹o dos estudos culturais e da comunica•‹o n‹o s‹o fortuitas nem ocasionais. Isso corresponde ao lugar estratŽgico que a comunica•‹o ocupa, tanto nos processos de reconvers‹o cultural que requer a nova etapa de moderniza•‹o de nossos pa’ses, como na crise que a modernidade sofre nos pa’ses centrais. N‹o Ž poss’vel compreender o cen‡rio atual dos estudos de comunica•‹o, e ainda menos trabalhar em sua dire•‹o, sem pensar nessa encruzilhadaÓ.

Interdisciplinarmente, Medina presta tributo a inœmeros campos, Òda f’sica subat™mica ˆ antropologia, da biologia ˆ sociologia, da qu’mica ˆ medicinaÓ para salientar a insufici•ncia da vis‹o mon‡dica e monol’tica que predominou nos estudos pioneiros sobre o jornalismo. ÒOs f’sicos contempor‰neos delineiam um quadro de no•›es que se transforma da cosmovis‹o simplificadora (mon‡dica) ˆ cosmovis‹o dialŽtica (di‡tica) e hoje atenta ˆ complexidade trialŽtica (ou tri‡dica) da matŽria. Uma longa hist—ria dos processos cognoscitivos ilumina a fundamental passagem de compreens‹o ing•nua do mundo ˆ tentativa contempor‰nea de o decifrar na sua complexa rede de for•asÓ, escreve a autora85.

TambŽm preocupado com a insufici•ncia dos modelos monol’ticos, segundo os quais o sentido da comunica•‹o se movia de modo consciente e unidirecional, o te—rico belga Jean Lohisse apresentou, em 1969, uma proposta tri‡dica de sistematiza•‹o dos impulsos da comunica•‹o coletiva, dividindo-os em arquet’picos, lidert’picos e osmot’picos. Os primeiros, ligados a conteœdos m’ticos, seriam inconscientes e universais. Na vis‹o de Lohisse, s‹o os arquŽtipos os conteœdos predominantes na cultura de massa. J‡ os lidertipos emanariam dos centros de poder e riqueza mundial e seriam exportados para o mundo, como as fantasias hollywoodianas. Os osm—tipos, conteœdos ligados ˆ cultura local, regional, contrabalan•am o poder ÒneocolonizadorÓ dos lidertipos.

Como se v•, a partir da segunda metade do sŽculo XX os estudos em comunica•‹o e jornalismo v‹o se tornando cada vez mais complexos, seguindo a tend•ncia manifestada nas chamadas ci•ncias duras, como a f’sica.

A idŽia de arquŽtipo e de uma a•‹o inconsciente na produ•‹o do sentido Ð e da pr—pria mensagem jornal’stica Ð Ž fundamental para desfazer a dicotomia comum que situa o editor ora como um libert‡rio engajado ora como um mal intencionado manipulador de massas. As teorias pioneiras na ‡rea frequentemente supunham que o sentido Ž constru’do conscientemente pelo jornalista e ent‹o simplesmente disseminado ao pœblico Ð que, no pior estilo pavloviano (a prop—sito um dos inspiradores da Teoria da Agulha HipodŽrmica ou da Bala M‡gica86) n‹o teria como resistir ˆ for•a da comunica•‹o massiva. Os mais recentes estudos na lingu’stica, na psicologia e na comunica•‹o detectam, contudo, o papel preponderante do inconsciente.

A express‹o ÒarquŽtipoÓ vem da psicologia anal’tica, teorizada pelo su’•o Carl Gustav Jung. Baseado em pesquisas anteriores de Freud, Jung cunhou o termo para designar

conteœdos atemporais e universais que seriam resqu’cios da ancestralidade humana. Ao estudar os sonhos de seus pacientes europeus e ao empreender pesquisas de campo na êndia, na çfrica e na AmŽrica, Jung encontrou imagens comuns a todos. Segundo o autor87 Òprecisamos levar em conta o fato (primeiramente observado e comentado por Freud) de que num sonho muitas vezes aparecem elementos que n‹o s‹o individuais e nem podem fazer parte da experi•ncia pessoal do sonhador. A estes elementos, como j‡ mencionei antes, Freud chamava Ôres’duos arcaicosÕ Ñ formas mentais cuja presen•a n‹o encontra explica•‹o alguma na vida do indiv’duo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma heran•a do esp’rito humano. Assim como o nosso corpo Ž um verdadeiro museu de —rg‹os, cada um com a sua longa evolu•‹o hist—rica, devemos esperar encontrar tambŽm na mente uma organiza•‹o an‡loga. Nossa mente n‹o poderia jamais ser um produto sem hist—ria, em situa•‹o oposta ao corpo em que existe. Por Ôhist—riaÕ n‹o estou querendo me referir ˆquela que a mente constr—i atravŽs de refer•ncias conscientes ao passado, por meio da linguagem e de outras tradi•›es culturais; refiro-me ao desenvolvimento biol—gico, prŽ-hist—rico e inconsciente da mente no homem primitivo, cuja psique estava muito pr—xima ˆ dos animais. Esta psique, infinitamente antiga, Ž a base da nossa mente, assim como a estrutura do nosso corpo se fundamenta no molde anat™mico dos mam’feros em geral. O olho treinado do anatomista ou do bi—logo encontra nos nossos corpos muitos tra•os deste molde original. O pesquisador experiente da mente humana tambŽm pode verificar as analogias existentes entre as imagens on’ricas do homem moderno e as express›es da mente primitiva, as suas Ôimagens coletivasÕ e os seus motivos mitol—gicosÓ.

Se os conteœdos primordiais da comunica•‹o de massa envolvem n‹o apenas a consci•ncia do comunicador, mas principalmente o feixe de for•as arquet’picas, osmot’picas e lidert’picas, refor•a-se uma velha m‡xima da profiss‹o: lugar de jornalista Ž na rua. ƒ necess‡rio, pois, que o jornalista Ð e n‹o apenas o rep—rter Ð esteja em constante atrito com o tecido social para melhor auscultar seus anseios, consciente ou insconscientemente. ÒA constru•‹o social dos sentidos acontece na rua, no cotidiano e na oratura cujas marcas de estilo revelam a poesia dos contadores an™nimos. Ao relacionar as vozes e os gestos cabe coletar esses textos, lig‡-los e partilhar os sentidos da produ•‹o intertextualÓ, escreve Cremilda Medina88.

O problema dos procedimentos jornal’sticos frente ao fen™meno da produ•‹o social de sentidos, e especialmente a men•‹o ˆ objetividade como um dos valores m‡ximos do campo

jornal’stico, levou Patr’cia Patr’cio a cunhar a proposta de uma transubjetividade em sua tese de doutoramento, ÒNa ilha do boi de pano, uma reportagensaio para alŽm da objetividade jornal’sticaÓ, em 200789. Para a autora, que tambŽm questiona os problemas da subjetividade do comunicador social, Òa objetividade, no•‹o surgida do eu subjetivo, jamais poder‡ ser alcan•ada em sua plenitude. PorŽm, se cada um se fechar em sua pr—pria subjetividade, n‹o existe comunica•‹o. Portanto, a sa’da poss’vel Ž exercitar a intersubjetividade, o di‡logo do eu com o outro, e mais, a transubjetividade, articula•‹o entre objetividade, subjetividade, normatividade e intersubjetividade. Isso n‹o significa, simplesmente, reproduzir declara•›es, mas fazer com que dialoguem entre si, abrir os poros para o n‹o dito, produzindo significados ricos, que ajudem na compreens‹o/apreens‹o da realidade.Ó

A articula•‹o reœne, portanto, o conjunto de tŽcnicas e normas deontol—gicas da profiss‹o jornalista e da empresa de comunica•‹o, a precis‹o e concis‹o da linguagem, o di‡logo solid‡rio com as fontes e a sociedade e, por fim, a Òpalavra luminosa da narrativa de resist•ncia, n‹o o sujeito autorit‡rio que se cr• mais sabedor que o Outro que o fruiÓ. ÒEsta uni‹o das quatro inten•›es de validade de um projeto aponta um caminho poss’vel para um jornalismo Žtico solid‡rioÓ, diz a pesquisadora.

Na pr‡tica, afirma ela, o trabalho transubjetivo tem sua melhor oportunidade de desenvolvimento dentro do g•nero reportagem, onde, desde a pauta, estimula a coordena•‹o entre objetividade, subjetividade, normatividade e intersubjetividade. Segundo o roteiro de Patr’cia Patr’cio, isso acontece quando (grifos da autora)90:

Ò1 - percebe-se o impulso subjetivo que motiva a sugest‹o do tema e do enfoque da reportagem, sua apura•‹o e desenvolvimento atŽ a forma final/editada. PorŽm deve-se tomar cuidado com a afirma•‹o perigosa, constante da dogm‡tica jornal’stica, de que Òn‹o existe objetividade porque toda pauta e edi•‹o t•m motiva•›es subjetivasÓ. Tal assertiva n‹o deve ceder espa•o a apropria•›es indŽbitas no exerc’cio da profiss‹o. Este princ’pio Žtico, afinal, se liga ˆ segunda corrente de for•as, a...Ó

Ò2. normatividade. Aqui podemos e devemos ampliar para a responsabilidade social o conceito das Ònormas deontol—gicas da profiss‹oÓ Ð ouvir o outro lado, dar oportunidade de resposta, verificar todas as informa•›es, especialmente as que incluem acusa•‹o a um protagonista da cena a ser narrada, e assim por diante, como se encontra facilmente nos manuais de reda•‹o. N‹o basta seguir as normas com rŽgua e compasso, ou seguir apenas pr—-

forma, porque isto n‹o Ž levar a sŽrio o respeito ˆ pr—pria profiss‹o e em especial ao Outro por n—s incessantemente investigado.Ó

Ò3. objetividade Ð o jornalismo repousa sob o signo referencial e Ž assim que se legitima. Nenhuma reportagem que mere•a este nome se faz sem a refer•ncia ao real. Ou seja, dados de tempo, espa•o, localiza•‹o geogr‡fica, estat’sticas e indicadores s—cioecon™micos, dados de contexto e de ra’zes hist—ricas, progn—sticos, informa•›es de fontes especializadas e de seus contendores. Enfim, quem Ð o que Ð quando Ð onde Ð como Ð por qu•?, ampliados numa pir‰mide convertida em media•‹o social, narrativa pulsante do ef•mero, para alŽm de pura e simples informa•‹o descart‡vel.Ó

Ò4. E, para que tudo se articule, Ž necess‡ria a intersubjetividade da comunica•‹o, da clareza na linguagem e acima de tudo, da rela•‹o dial—gica entre o Eu e o Tu, em busca de uma compreens‹o solid‡ria com aquele que protagoniza o evento da experi•ncia coletiva. No jarg‹o se diz fonte, uma fonte murmurante ou gritante, uma fonte de quem se suga e seca e depois esquece, ou se ÒcultivaÓ para que mais nos jorre. Que express‹o utilitarista para nomear esse Sujeito, com quem tanto aprendemos.Ó