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1. INTRODUÇÃO

1.8. Ayahuasca e doenças graves

Recapitulando o que foi tratado até agora, vimos que o diagnóstico de uma doença grave, definida como uma doença que ameaça a continuidade da vida ou pode gerar incapacitação grave, frequentemente desencadeia processos psicoemocionais que podem ser fonte de sofrimento psicológico durante o curso e o tratamento da doença. As abordagens terapêuticas utilizadas tradicionalmente para promover a saúde mental de pessoas com doenças graves muitas vezes são insuficientes e não alcançam as questões existenciais que se apresentam quando a morte se torna uma possibilidade mais próxima. Nesse contexto, a espiritualidade – definida de forma resumida como o modo como as pessoas encontram significado e propósito na vida – assume muitas vezes um lugar importante entre os fatores que participam do processo de adoecimento e do tratamento como um todo, de maneira que práticas capazes de promover o bem-estar espiritual adquirem um valor terapêutico significativo. Adiciona-se a esse cenário o potencial terapêutico de determinadas substâncias psicodélicas, que têm sido investigadas em estudos clínicos em pacientes oncológicos desde a década de 1960, com resultados promissores sugestivos de que essas substâncias podem funcionar como ferramentas terapêuticas no campo dos cuidados paliativos.

A ayahuasca, por sua vez, tem sido um alvo de estudos que demonstram melhoras em parâmetros de saúde mental e de espiritualidade após experiências com a bebida em contextos rituais/religiosos e clínicos/de pesquisa. Tradicionalmente, um dos propósitos principais de uso da ayahuasca está relacionado à cura23. Deste modo, um dos motivos mais frequentes que

levam as pessoas a procurarem a experiência com ayahuasca está ligado à saúde. Embora essa

23 Propósitos de cura são encontrados nos diversos contextos de uso da ayahuasca e há uma vasta literatura a esse

respeito, principalmente no campo da Antropologia. Para citar somente alguns trabalhos, destacamos a compilação de artigos em Labate (2002), que trata sobre o uso ritual da ayahuasca em contextos indígenas e religiosos, com presença do tema ‘cura’ em ambos (ver também Mercante, 2012). No Peru, uma prática de uso urbano e mestiça da ayahuasca, originada do contato entre seringueiros, indígenas e ribeirinhos a partir do final do século 19 originou o que veio a ser conhecido como vegetalismo, uma medicina popular baseada no uso de plantas, cantos e dietas, nas quais destaca-se o uso da ayahuasca. Aqueles que se especializam nas práticas de cura do vegetalismo são conhecidos como xamãs, curandeiros ou vegetalistas (Luna, 1984, 2002, 2011; Luna e Amaringo, 1999; Labate, 2011; Echazú e Carew, 2018). A partir da década de 1990, começa a crescer o interesse pela ayahuasca na América do Norte e na Europa, levando milhares de pessoas ao Peru (em especial, às cidades de Pucallpa e Iquitos) em busca principalmente de benefícios à saúde e cura de doenças, um fenômeno que ficou conhecido como “turismo da ayahuasca” e, com a disseminação global que gerou, hoje caracterizado como um processo de “globalização (ou internacionalização) da ayahuasca” (Dobkin de Rios, 1994; Kavenská e Simonová, 2015; Winkelman, 2005; Tupper, 2008, 2009; Labate e Jungaberle, 2011; Labate e Cavnar, 2014, 2018).

procura na maior parte dos casos envolva problemas relacionados à saúde mental (transtornos afetivos e de uso de substâncias, conforme já detalhado), pessoas com doenças de ordem física também têm buscado a experiência ritual com a bebida com propósitos de cura, destacando-se casos de câncer (Topping, 1998, 1999; Forte et al., 2010; Schenberg, 2013). Schenberg (2013) compila nove relatos de caso sobre pessoas que utilizaram ayahuasca durante o tratamento de diversos tipos de câncer, sendo que melhoras foram observadas na maioria dos casos. O autor se vale de uma abordagem biomédica para relacionar teoricamente os possíveis efeitos antitumorais a efeitos da ayahuasca e de seus compostos a nível celular e molecular, além de discutir superficialmente aspectos psicossociais em que os efeitos psicológicos da ayahuasca poderiam influenciar o tratamento do câncer. Fatores subjetivos foram melhor explorados por Schmid et al. (2010), que realizaram entrevistas em profundidade com pessoas que buscaram a ayahuasca como auxílio para o tratamento do câncer e de outras doenças, como dor crônica, asma, hepatite C, glaucoma, entre outras. Os resultados sugerem que o uso ritual da ayahuasca teria influenciado positivamente a doença e o seu enfrentamento, o que foi associado pelos participantes a mudanças em aspectos relacionados ao significado e à conduta da vida, além de melhoras no bem-estar. Esses estudos proveem evidências preliminares sobre um possível potencial terapêutico da ayahuasca para pessoas com doenças de ordem física, algo que tem se tornado mais comum na última década, com um número crescente de pessoas a buscar na experiência ritual com a substância benefícios físicos e psicológicos para mitigar as dificuldades impostas pela condição patológica e, eventualmente, a cura física propriamente dita (Harris e Gurel, 2012; Mercante, 2012; Weiss, 2018; Nardizzi, 2019; Simpson, 2019).

No entanto, o conjunto de evidências disponíveis até o momento acerca desse fenômeno ainda é pequeno, sendo que muitas perguntas podem ser feitas com o objetivo de elucidar os múltiplos aspectos envolvidos no possível potencial terapêutico da ayahuasca para pessoas com doenças de ordem física. O presente estudo visa explorar como o uso ritual da ayahuasca durante o tratamento de doenças graves influenciou o modo como as pessoas que vivenciaram essa experiência compreendem e se relacionam com a doença, buscando identificar os processos psicológicos envolvidos nos efeitos terapêuticos relatados. Escolhemos explorar esse fenômeno a partir do relato de pessoas com doenças graves tendo em mente que 1) efeitos terapêuticos no âmbito do tratamento de doenças graves já foram verificados em estudos sobre outras substâncias (‘psicodélicas’ ou ‘enteógenas’) com efeitos relativamente similares aos efeitos da ayahuasca, e 2) dado que estudos anteriores demonstram que a ayahuasca apresenta efeitos sobre parâmetros de espiritualidade, que, por

sua vez, se mostra um componente importante entre os fatores envolvidos no tratamento de doenças graves, é possível que os efeitos terapêuticos da ayahuasca para pessoas nessa condição estejam relacionados à aspectos espirituais, em conjunto com aspectos psicológicos e físicos.