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4. RESULTADOS

4.3. Espiritualidade e Cura

4.3.2. Tema: Ayahuasca e o conceito de cura

Este tema foi formado a partir de relatos que abrangem as as diferentes concepções dos participantes sobre o conceito de ‘cura’ e a influência que eles atribuem ao uso ritual da ayahuasca sobre tais concepções. Além disso, engloba também relatos de que a experiência com o uso ritual da bebida teria tido efeito sobre sentimentos relacionados à cura, como esperança, fé e sentir-se curado(a).

Alguns participantes citaram que passaram a acreditar na cura ou experimentar um sentimento de cura a partir do uso ritual da ayahuasca. Relatos como esses aparecem permeados pelo sentimento de esperança, que parece ter sido despertado a partir da experiência com a bebida.

(...) E mudou totalmente. Eu vi que era uma coisa que não ia me derrubar. Através da medicina [ayahuasca], eu vi uma possibilidade de me curar. Porque quando eu tinha só tomado a quimio eu não vi possibilidade de cura, entendeu? Aí quando eu tomei a medicina eu vi... eu falei: “Não, agora eu acredito que eu posso me curar. Agora eu acredito que posso ficar seis meses tomando quimioterapia, fazer cirurgia, tudo e... ficar legal”. (Rosa, 32)

Deu a impressão de que ali teve uma... eu me senti curado. Pela primeira vez eu me senti curado... assim, com uma certeza de que eu estava curado. (Davi, 60)

(...) porque aquilo foi realmente me fazendo ter esperança, de acreditar em mim mesmo, na minha cura, de me manter bem. (Daniel,

28)

Em alguns casos, este sentimento de acreditar profundamente na cura foi colocado como tendo um papel importante para a cura per se, aludindo a um efeito psicossomático em que o corpo responderia à intenção firme de cura iniciada na mente.

(...) por isso que eu fico pensando muitas vezes assim: não é muito quem você acredita, em como você acredita, é realmente a fé que você tem. Você tem fé em você mesmo, basta. E que é uma das coisas que eu acredito que foi por onde a ayahuasca viabilizou para mim, nesse sentido, para eu ter... acreditar, nem que seja em mim mesmo, mas acreditar de verdade. Quando você acredita de verdade já é um passo para a sua cura. (Diego, 24)

E aí outras pessoas que eu observo que foram buscar essa força espiritual e ativar o processo de autocura. Porque eu acho que é uma das coisas mais incríveis que a ayahuasca mostra. É uma libertação dessa crença de que a cura está fora, está no médico, a cura está no remédio que está lá fora. (...) Então eu acho que essa ideia de que eu sou protagonista do meu processo de cura, eu acho que essa consciência vem muito com essa força da medicina [ayahuasca]. (...) Então se eu criei essa doença por escolhas que eu fiz, então cabe a mim encontrar o que vai estabelecer o meu estado de equilíbrio. Às vezes, sim, buscando lá fora numa erva, numa palavra de alguém, numa acupuntura, mas muitas vezes ativando um estado mental em que eu trago consciência para o meu organismo, em que eu ativo o meu próprio poder. Assim como a gente tem o sistema imunológico, é como se eu ativasse internamente o meu sistema imunológico, através de comandos mentais, de meditação, de fé. (...) essa chave de que eu tenho um poder de autocura, ela é extremamente ativada com a sabedoria da ayahuasca. (Adriana, 48)

A concepção de “cura” se mostrou variável e personalizada entre os participantes, no sentido de que muitas coisas podem significar cura. Enquanto “cura” para um pode ser a eliminação de sintomas físicos, para outro pode ser a eliminação de um hábito comportamental ou um padrão emocional/de pensamento negativo. Pode ser ainda uma cura relacionada a um “adoecimento do espírito”. Dessa forma, identificamos entre os relatos três padrões de respostas que denominamos ‘cura física’, ‘cura psicológica’ e ‘cura espiritual’.

Interessantemente, a cura física foi muito pouco citada, possivelmente por ser a mais óbvia. No entanto, percebemos que o perfil da amostra é inclinado a concepções de cura ligadas ao conceito de cura como healing. De acordo com Alves (2017):

“Heal ou healing refere-se ao processo enquanto terapêutica que busca o bem-estar, a melhora, o crescimento pessoal e as possibilidades de mudanças que o período de restabelecimento pode trazer à vida. Tais mudanças estão diretamente relacionadas à reflexão por parte do sujeito quanto à sua forma de lidar com a realidade, tanto em seu modo de pensar, como de se alimentar, de relacionar-se consigo, com os demais, enfim, com a própria vida. Já́ cure ou curing é o termo empregado para referenciar curas pontuais e especificas que buscam a eliminação de um patógeno determinado (Hanegraaff, 1996; Leão, 2004; Neves, 2012; Langdon, 2014).”

Desse modo, o que estamos chamando aqui de ‘cura psicológica’ se aproxima mais do conceito de cura definido como healing. O significado de cura para cada participante foi abordado de forma espontânea pelo participante ou a partir do questionamento por parte do entrevistador. Em ambos os casos, a maior parte das respostas se mostrou relacionada à concepção de cura psicológica, das quais destacamos alguns trechos ilustrativos:

Pra mim, a cura psicológica foi muito forte, está sendo cada dia mais... essa cura psicológica de ver a vida num outro paradigma, de começar a me encontrar. (Emanuel, 39)

Cura? Eu acho... para mim, é quando eu entro num processo de aprendizado, é a transformação que existe através de um aprendizado, então eu acho que eu nunca estou curada, porque eu sempre estou aprendendo. O processo de cura é um processo de desbravamento, de transformação, para chegar em lugares, mas aí eu tenho que aprender mais coisas depois, e eu vou aprendendo, e eu vou aprendendo, e vou me curando. Mas é um movimento, porque a cura para mim é um movimento, então essa transformação é esse movimento, então eu tenho que sair do lugar, entende, eu não consigo imaginar: estou curada – talvez por eu ter uma doença crônica –, mas a cura para mim é um movimento de aprendizagem. (Bethânia, 28) A cura para mim é a retomada do meu estado de equilíbrio, então, eu adoeci porque eu perdi o equilíbrio por conta da minha ignorância, a minha falta de consciência sobre o que eu como, o que eu penso, como eu escolho viver, a hora que eu escolho dormir, a hora que eu escolho acordar, enfim, fazendo escolhas o dia inteiro e algumas escolhas estão muito conectadas com essa sabedoria interna e algumas escolhas estão à serviço de ganhar dinheiro, ou de ficar mais bonita, ou de agradar os outros. E talvez quando eu faço essas escolhas que não estejam conectadas com a minha sabedoria interna, (...) eu vou perder esse estado de equilíbrio. Então para mim a cura é me aceitar que eu perdi esse equilíbrio, que é natural. Encontrar as causas e as raízes do porquê que eu perdi esse equilíbrio. (Adriana,

48)

O conceito de cura pra mim, o verdadeiro conceito de cura, é a mudança do conceito, sabe? É o conceito que você tem sobre as coisas. Cura pra mim é isso, é você mudar a forma que você enxerga, sabe, mudar a forma que você recebe as coisas, é mudar a forma como... como você interpreta as coisas. (...) Mudar a forma de ver é que cura. (Jorge, 36)

O que convencionamos como ‘cura espiritual’ se refere a concepções que remetem a um adoecimento do “espírito”, o qual ocorreria primeiro e seria a causa do adoecimento do corpo, consequentemente. Nesse sentido, o processo de cura envolve curar o espírito, o que

também foi colocado pelos participantes como um processo de aprendizado e desenvolvimento espiritual.

A cura física, num sentido de curar essa questão da doença física, não... eu não tenho essa pretensão. Eu vou curar ela e vai aparecer outras, podem aparecer outras... quanta coisa eu carrego de outras vidas, essa consciência carrega de outras vidas, que ela deixa a marca nesse corpo aqui. Posso trocar de corpo, posso pegar um corpo aí novinho em folha, escaneado, zero, mas se essa consciência tomar posse desse corpo, ela vai passar tudo que ela tem para ele. Se ela estiver doente, ele vai ficar doente, sabe, não vai ter corpo sadio que consiga... não há hardware que consiga sustentar um sistema operacional doente, sabe, não tem. (Emanuel, 39)

A cura pra mim é a cura espiritual. Isso é cura. O resto é... como se diz, é... um trabalho de sobrevivência, sabe? Doença não existe. Ela existe, mas... dentro desse processo de sobrevivência do espírito. Enquanto o espírito estiver num estágio, quer dizer, acho que quanto menos evoluído o espírito, mais doente ele está. Então eu acho que a cura passa pelo desenvolvimento espiritual. (Davi, 60)

Alguns participantes abordaram ainda estes três ‘tipos’ de cura de uma forma mais sinérgica, relacionando-as e sugerindo um modelo em que todas elas fazem parte de um mesmo conjunto, no qual o adoecimento acomete e é expresso em todas as esferas: física, psicológica e espiritual.

(...) existe uma cura que tem a ver com olhar para o sintoma. Mas a cura mesmo ela só existe quando eu encontro a raiz, que geralmente ela pode ser física, mas ou ela é emocional, ou ela é do campo mental ou do campo espiritual. Também vejo muito isso, que a saúde física ou a doença no corpo físico é muitas vezes a pontinha de um iceberg de um processo inteiro de desequilíbrio que nasceu e se desenvolveu em outros campos da vida. (Adriana, 48)

Insere-se neste cenário narrativas de participantes que descrevem uma participação da ayahuasca na formação de tais concepções.

Mas eu vi que junto com essa cura do corpo eu tinha que curar o espírito também, que vem junto com isso do padrão de pensamento, do padrão de comportamento... e aí eu vi que era tudo um conjunto. Você não cura uma parada sozinha, tinha que ter todo esse... enlace. E a ayahuasca veio muito para trabalhar isso... para eu curar o espírito, para eu curar aqueles padrões... que me mantinham doente... que me levou à doença. Eu tinha que cortar o mal pela raiz. É, na verdade, é isso, é cortar o mal pela raiz. A ayahuasca mostrou isso. (...) Porque senão você cura o corpo, mas a doença volta, se você não cura o espírito. (Rosa, 32)

Então, de certa forma, a hoasca me trouxe essa compreensão, essa base... de uma compreensão da pessoa que você é: “Aceita a pessoa que você é”. Então isso me curou. Porque a cura da alma traz a cura do corpo. (Davi, 60)

A partir dos relatos obtidos, podemos identificar relações entre os significados de cura e de espiritualidade. Essa relação é mais evidente dentro da noção de que existe um ‘ser espiritual’ e a doença, em última instância, seria o adoecimento desse ser, desse ‘espírito’. Nessa perspectiva, a cura da doença passaria pela cura do espírito, que se refletiria no corpo (cura física) e na mente/psique (cura psicológica).