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4. RESULTADOS

4.2. Efeitos psicoterapêuticos

4.2.2. Tópico: O ‘lugar’ da doença

4.2.2.4. Tema: Percepção, autocuidado e gestão do tratamento

Este tema foi formado a partir de relatos que versam sobre uma influência dos efeitos da ayahuasca sobre a percepção do próprio corpo, seu funcionamento, seus limites e a sua interação com as manifestações físicas/fisiológicas da doença. A partir dessa compreensão, podem emergir insights sobre o cuidado de si na perspectiva do corpo e da saúde física (ainda que isso esteja intimamente conectado à saúde mental). Na medida em que emerge o autocuidado, podem emergir também novos modos de gerir e de se relacionar com o próprio tratamento, com reflexos, por exemplo, sobre o uso de medicamentos e sobre escolhas relacionadas ao tratamento médico, incluindo transplantes, tipo de terapia oncológica, entre outros. Desse modo, as narrativas sugerem que a experiência com ayahuasca poderia propiciar um contato maior com o próprio corpo, ampliando a percepção sobre o seu modo de funcionar e responder à doença e às influências externas, o que poderia permitir escolhas que favoreçam o autocuidado.

Eu lembrava da doença [durante os rituais] porque em parte tinha sentimentos e ensinamentos de: “você não vai fazer isso, você tem que tomar cuidado com isso, isso pode ser ruim para você” (...) Então eu percebo que a ayahuasca ajuda muito a cuidar da doença. (Amanda,

28)

(...) poder escolher com um pouco mais de sabedoria o que você vai comer, o que te faz bem, o que não faz (...) isso que a gente começa a aprender, entendeu? Aí vai te dando essa consciência. (...) eu comecei a ter um pouquinho mais de consciência do que era bom ou não para mim... fisicamente, para eu me alimentar, porque o remédio, porque isso, porque aquilo... (Maria, 61)

(...) e a partir das experiências de Daime, eu falei: “Não, então beleza, como eu posso limpar o meu corpo também, um pouco disso, absorver o bom do remédio, que é o combate ao HIV, mas também como eu posso tirar um pouco disso”. Assim... estou há 5 anos já tomando remédio... Aí eu fui fazer a terapia ayurveda, massagem, detox, desintoxicação, tomar floral... abriu essa coisa das terapias e das medicinas a partir do uso do Daime também, que antes eu nunca nem tinha pensado em nenhuma terapia, assim, alternativa. (Daniel,

28)

Dentro deste tema, chama a atenção a relação dos participantes com o uso de medicamentos prescritos e a influência do uso ritual da ayahuasca sobre isso, especialmente no caso dos participantes soropositivos.

(...) essa espiritualidade dos guias que me acompanham, que me regem, eles realmente cuidam da minha saúde. (...) É a espiritualidade que me fala que eu realmente tenho que tomar remédio, que não é para eu parar... é a espiritualidade que me cobra de ligar lá para o hospital e marcar a minha consulta... então, assim, realmente é uma preocupação com o que tange a minha saúde física, porque senão já teria jogado esses remédios tudo pra frente, com certeza. Mas eu prometi que eu ia continuar tomando, então eu tenho que cumprir também o que eu prometo. Senão já tinha jogado isso tudo fora. (Daniel, 28)

(...) é uma coisa que é muito cobrada de mim, tomar o medicamento, na verdade. Porque eu já fiquei um mês sem tomar o medicamento, parei de tomar, falei: “Ai, não, chega, eu estou cansado desse medicamento, eu vou tomar só Daime agora, às quartas e sábados”, e aí, nessa questão espiritual [falando do contato com a ‘dimensão espiritual’ promovida pelo uso ritual da ayahuasca (Daime)], voltou para mim e falou: “Não, você precisa também tomar o medicamento, porque é algo que age diretamente na questão do vírus, ali”, então eu voltei a tomar (...) Depois de um determinado tempo, eu passei a não tomar o remédio nos dias que eu tomo o Daime, eu substituo os medicamentos. Meu médico sabe que eu tomo o Daime, sabe que eu

faço isso, e mesmo nesses dois anos fazendo isso meus exames continuam dando carga viral zerada, CD4 e CD8 estável, e isso não altera. (Daniel, 28)

(...) a medicação depende da pessoa, às vezes toma de manhã, às vezes toma de tarde, eu tomo à 1h da tarde. E tem várias medicações diferentes, umas que deixam, sei lá, com mais dor de cabeça, tontura, outras dão uma dor de barriga, outras dão um enjoo... então o que eu aconselho é não tomar durante a sessão [com ayahuasca]: ou tomar antes, ou tomar depois quando chegar em casa. Isso eu fui entendendo durante esse processo de experiência com a ayahuasca, de conhecer o próprio corpo, nesse sentido, assim. (Caio, 34)

Nesse contexto, dois participantes, Davi e Adriana, que tiveram câncer, relataram que as experiências com ayahuasca influenciaram escolhas importantes relacionadas ao tratamento médico.

A hoasca me deu uma condição de mais calma, mais tranquilidade. Tanto é que me levou a... num determinado momento, eu senti uma voz interior me dizendo para eu não fazer a segunda parte do procedimento, que seria o transplante propriamente dito. (...) Você tem ali, dependendo da condição do paciente, 20 a 30 por cento de chance de morte no procedimento. Então, quando eu vi esse negócio, eu comecei a raciocinar: “Será que vale a pena?”. E nesse momento lá, eu comigo mesmo e com a hoasca, eu recebi como se fosse um conselho: “Não precisa tanto. Continua fazendo o que você está fazendo....”. Então eu sai do protocolo, não fiz o transplante. Que foi uma... como se fosse uma voz interior dizendo para eu não fazer. E eu não fiz, e eu estou há dez anos em remissão, sem a doença ter voltado.

(Davi, 60)53

E eu acho que a ayahuasca me ajudou muito nesse processo de sustentação espiritual da fé, da confiança, de não me deixar derrubar, de estar firme no meu tratamento, sabendo fazer as escolhas, “não, eu não vou tomar radioterapia”. (Adriana, 48)

53 Davi foi diagnosticado aos 48 anos com mieloma múltiplo, que consiste na presença de tumores malignos que

se desenvolvem em determinadas células da medula óssea, os plasmócitos. Neoplasia ainda sem cura, o prognóstico, em geral, é desfavorável e o tratamento se baseia aliviar os sintomas, evitar complicações e retardar a progressão da doença. O tratamento pode incluir terapias farmacológicas para restabelecer as defesas naturais do organismo e conter a disseminação dos plasmócitos anormais, quimioterapia, radioterapia e o transplante autólogo de medula. Quanto mais cedo a doença for diagnosticada, maiores as chances de o paciente entrar em remissão (Observatório de Oncologia, 2017; Portal Drauzio Varella, 2019). A decisão de Davi por não fazer o transplante surpreendeu os médicos, que o encorajavam a realizar o procedimento. Tendo em vista que o seu tratamento foi realizado no sistema público de saúde, abrir mão do transplante significava que ele possivelmente não teria outra chance tão cedo para realizá-lo. Hoje, com 62 anos, Davi permanece em remissão do câncer, goza de boa qualidade de vida e segue fazendo uso ritual da ayahuasca em contexto religioso.

4.2.3. Tópico: O ‘lugar’ do ser e do não-ser: (novos) olhares perante a vida e a morte