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5. DISCUSSÃO

5.3. Morte: medo, aceitação e significado

O fato deste estudo ter como participantes pessoas que lidam ou lidaram com doenças que ameaçam a continuidade da vida implica na presença da morte. Grande parte dos participantes mencionou que a doença evocou reflexões existenciais em que a morte despontou com uma maior proximidade, o que, para muitos, gerou angústia ou medo. Nossos resultados sugerem que a experiência aparentemente induzida pela ayahuasca teria amplificado essas reflexões, trazendo à tona de forma mais clara a possibilidade da morte. Segundo os participantes, encarar a morte e refletir sobre ela levou a diminuir o medo e, para alguns deles, a um processo de aceitação da própria morte. Experiência semelhante foi descrita anteriormente em um (auto)relato que descreve como a experiência com ayahuasca teve impactos profundos sobre o medo da morte, vivenciada por um homem com câncer metastático de prognóstico grave (Topping, 1998, 1999)71. De fato, estudos realizados com

outras substâncias psicodélicas verificaram a redução do medo/ansiedade e aceitação da morte, especialmente por pacientes de câncer avançado (para revisão, ver Reiche et al., 2018). Esses estudos, iniciados na década de 1960 e recentemente retomados com metodologias mais rigorosas, indicam que a experiência psicodélica pode ter grande potencial terapêutico para pessoas com doenças que ameaçam a vida, representando uma possível ferramenta terapêutica no âmbito dos cuidados paliativos (Dyck, 2019). Nossos achados fortalecem essa perspectiva, indicando que experiências com ayahuasca, a exemplo de outras substâncias psicodélicas, se realizadas e integradas adequadamente, minimizando o risco de reações adversas, podem produzir efeitos terapêuticos úteis durante o manejo da ansiedade/angústia da morte em pessoas com doenças graves.

A forma como experiências psicodélicas podem levar à redução do medo da morte ainda é pouco conhecida. Os estudos recentes, com metodologias rigorosas, e os estudos

71 Destacamos um trecho retirado de Topping (1999) que descreve de forma clara e ilustra o modo como a

experiência com ayahuasca influenciou o medo da morte (tradução livre do inglês): “A mudança psicológica

mais profunda foi notada durante minha primeira experiência quando encontrei a morte na forma de um vazio suave, profundo e escuro. A mensagem clara era de que a morte está sempre presente, mas nada a ser temida. Está lá, junto com todas as outras forças e elementos da natureza, nada excepcional. A morte acontece. Declarar esses fatos óbvios em palavras parece banal. Mas quando a liana [“the vine”, a ayahuasca] revela essas coisas, o impacto é muito mais profundo. Ao ir para a minha primeira sessão [de ayahuasca], o pensamento sobre a morte iminente, como previsto pelo meu médico e pelos dados, era uma grande preocupação. A bebida colocou isso para descansar imediatamente”.

pioneiros realizados no século passado convergem para um potencial efeito de experiências místicas, no qual a intensidade da experiência com características místicas se correlaciona com a melhora nos parâmetros clínicos avaliados, especialmente ansiedade e depressão oriundas da ameaça à vida (Grof e Halifax, 1977; Griffiths et al., 2016; Ross et al., 2016). Contudo, evidências de estudos exploratórios sugerem que outros mediadores – como o acesso facilitado a emoções e experiências emocionais intensas, sentimentos de empatia e vínculo com parentes e amigos, redução da antecipação cognitiva da morte, afrouxamento dos limites do ego, entre outros – podem estar envolvidos nos efeitos terapêuticos, de modo que a experiência mística seria um entre múltiplos fatores que influenciam o efeito final (Schmid et al., 2010; Malone et al., 2018). Um trabalho recente revisou as evidências acerca dos possíveis mecanismos através dos quais os psicodélicos poderiam levar à redução da ansiedade/angústia da morte (Moreton et al., 2020). Os autores propõem que esse efeito estaria relacionado à combinação dos seguintes fatores:

“(a) forçando confrontos com a mortalidade envolvendo a exposição a, e ao processamento de, medos tipicamente inconscientes da morte; (b) reduzindo de modo geral o foco no eu (self) e em suas preocupações; (c) modificando crenças metafísicas em relação à natureza da consciência humana; (d) ampliando a fé religiosa; e (e) aumentando sentimentos de conexão e percepções sobre a significância da vida.”

Os resultados do presente estudo apontam na mesma direção, uma vez que sugerem uma multiplicidade de fatores envolvidos. Encontramos que a experiência de encarar a própria finitude, ou seja, tomar consciência da morte e refletir sobre ela foi destacado entre os relatos dos participantes como algo importante para a redução do medo e aceitação da morte. A exemplo de determinados efeitos psicoterapêuticos nos quais os participantes descrevem encarar aspectos negativos de si mesmos (“sombras”) ou memórias traumáticas, é possível que os efeitos terapêuticos da ayahuasca tenham como um de seus mediadores a confrontação com a fonte de sofrimento. De acordo com Kjellgren et al. (2009), a experiência com ayahuasca com frequência envolve o confronto com os medos mais íntimos, incluindo o medo da morte. Isso também foi observado no contexto do tratamento da dependência de substâncias com uso ritual da ayahuasca (Loizaga-Velder e Pazzi, 2014). Segundo os pacientes e terapeutas que participaram deste mesmo estudo,

“(...) a ayahuasca pode funcionar como um ‘espelho interior’ que permite aceitar prontamente aspectos da psique anteriormente negados e que geralmente são difíceis de se abordar em contextos terapêuticos. Isso é especialmente importante na terapia da dependência, onde os mecanismos de negação do confronto geralmente desempenham um papel essencial no tratamento. Tentar romper os mecanismos de negação pode ser

problemático, já que esse esforço provavelmente criará mais resistência. No entanto, parece que o confronto decorrente de dentro ou de uma fonte espiritual percebida, como ‘Mãe Ayahuasca’, ‘Mãe Terra’ ou ‘Deus’, pode ser melhor recebido, integrado e contido pelos pacientes”.

Nesse sentido, confrontar a negação da morte pode ser um modo como a experiência com ayahuasca promove a redução do medo e aceitação da morte. Além disso, para alguns participantes, a experiência com ayahuasca teve profunda influência sobre o significado da morte, alçando novos sentidos para ela, sentidos estes não mais associados ao medo. Essa ressignificação da morte, em conjunto com a ressignificação da doença, tema já discutido, podem constituir possíveis mecanismos envolvidos nos efeitos terapêuticos produzidos pela ayahuasca e, talvez, também por outras substâncias psicodélicas no contexto do tratamento de doenças graves. Acreditamos que esses achados estão entre os mais importantes obtidos no presente estudo e, pelo nosso conhecimento, desconhecidos na literatura. Desta forma, eles adicionam elementos que merecem ser explorados em estudos futuros. Além disso, tendo em vista que abordagens psicoterapêuticas com orientação existencial têm apresentado resultados promissores no tratamento do sofrimento emocional associado ao câncer (Breitbart et al., 2015; Spiegel, 2015), estudos futuros poderão explorar também a combinação entre esse tipo de intervenção psicológica e o uso ritual da ayahuasca.

A importância dos efeitos terapêuticos das substâncias psicodélicas no contexto das doenças que ameaçam a vida vem sendo salientada por um corpo crescente de evidências. Conforme descrevem Malone et al. (2018), “o bem-estar existencial em pacientes com câncer está associado a melhores resultados médicos, melhor qualidade de vida e serve como um amortecedor contra a depressão, a desesperança e o desejo de morte acelerada”. Ainda, segundo Schenberg (2013),

“a redução do medo da morte é importante não apenas para os pacientes, mas também para as famílias e os médicos, dada a cultura repressiva que a medicina ocidental desenvolveu em relação à morte. Essa repressão torna-se um aspecto muito importante do tratamento do câncer, uma vez que muitos desses pacientes enfrentarão, inevitavelmente, a transição final, que na atual cultura é tratada com comportamentos muito ansiosos, marcados por profissionais que se esquivam de tratar o assunto para ajudar o paciente a aceitar o inevitável. Essa situação ansiosa pode ser amenizada por experiências psicodélicas guiadas e, provavelmente, por rituais de ayahuasca bem orientados, como relatado por alguns pacientes”.

Não apenas nos casos de doenças graves, a angústia da morte parece estar envolvida e desempenhar um papel substancial em uma grande variedade de psicopatologias, permeando diferentes categorias diagnósticas (p.ex., transtornos depressivos e de ansiedade, transtorno

obsessivo compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático, entre outros), sendo assim considerada como um construto transdiagnóstico por um número crescente de teóricos. Estes autores sugerem que abordagens terapêuticas que trabalhem as questões relacionadas à angústia da morte podem obter resultados mais duradouros no campo da saúde mental (Moreton et al., 2020).