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Barreiras e desafios ao uso da imagem

Verificámos que a invenção da fotografia e mais tarde do cinema de- sempenharam um papel relevante para as ciências sociais em finais do século XIXe inícios do século XX, na medida em que foram entendidos

como importantes recursos para o registo de dados analíticos em dife- rentes terrenos de pesquisa. Todavia, se os primeiros anos auguravam uma relação proveitosa e pacífica, a verdade é que a imagem foi gradual- mente perdendo peso, passando a ser olhada com alguma desconfiança.

4Produziram cerca de 25 mil fotos das quais 759 fotografias constam do livro publi- cado, que procura um registo de complementaridade entre a escrita e o visual.

Diversas razões, técnicas e epistemológicas, parecem explicar esta situa- ção.

Comecemos pelas razões de ordem técnica e logística. Durante a pri- meira metade do século XX, o uso dos dispositivos visuais, principalmente

do filme, na pesquisa de terreno foi dificultado por problemas de índole prática e financeira. O uso destes dispositivos exigia investimento finan- ceiro e uma série de recursos materiais e humanos (Brigard 1995). Daí que produzir filmes no âmbito do trabalho de pesquisa fosse muito dis- pendioso até à década de 60 do século passado. Esta situação foi mini- mizada com o aparecimento das câmaras ligeiras, dos gravadores áudio autónomos, das câmaras síncronas silenciosas e portáteis e, mais recen- temente, do vídeo em diferentes formatos e valores. Por outro lado, não podemos ignorar algo que Margaret Mead (1995) assinalou nos anos 70 e que invocava a imperícia técnica sentida por muitos investigadores, que resistiam ao uso de ferramentas com as quais não estavam familiari- zados.

As questões de ordem epistemológicas são mais profundas e explicam muitos dos preconceitos dirigidos à imagem. De acordo com Prosser (2000) as dificuldades de integração da imagem devem-se, essencial- mente, às raízes epistemológicas das ciências sociais, uma vez que os dois paradigmas clássicos são o quantitativo (na senda de Auguste Comte e Émile Durkheim) e o qualitativo (a partir de Max Weber). As indefinições relativamente ao estatuto da imagem residem quer na influência da pers- petiva empirista da ciência na pesquisa quantitativa, quer no paradigma qualitativo que utiliza sobretudo a palavra e ocasionalmente o número. Neste contexto a imagem raramente tem lugar.

A esta questão poderíamos acrescentar uma outra que não pode ser escamoteada dada a sua relevância. A imagem, apesar de ter sido por muitos entendida como detendo uma função heurística, na verdade tem estado basicamente adscrita ao campo da estética, sendo por isso consi- derada matéria de trabalho e reflexão das artes. Daí que, apesar do valor epistémico inicialmente atribuído à fotografia, esta se tenha imposto ba- sicamente como recurso documental (doméstico ou jornalístico) ou como matéria de empreendimento artístico. Como sabemos, a tradição positivista, que também imperou nas ciências sociais, impôs um amplo estigma sobre tudo o que invocasse subjetividade e juízo estético, em prol de uma ciência que se desejava neutra e objetiva. Arte (estética) e Ciência (epistemologia) mantiveram-se durante décadas domínios total- mente apartados, na medida em que esta última, para ser considerada fi- dedigna, não poderia ser contaminada pela primeira. Tende-se, por isso,

a assumir a superioridade do verbal sobre o visual, sendo a imagem su- bordinada à palavra (Ball e Smith 1992; Chaplin 1994).

Daí que as ciências sociais sejam frequentemente apontadas como lo- gocêntricas (Prosser 2000; Pink 2001; 2006), criando resistências à inte- gração da imagem. Este logocentrismo da academia explica que, apesar do papel crucial que a imagem obteve em certos períodos ou em pesqui- sas pioneiras, a maioria dos manuais metodológicos ainda ignore ou sub- valorize esta dimensão da pesquisa social. Uma verdadeira epistemologia da imagem ainda não se impôs verdadeiramente, apesar da longa e sólida história de subdisciplinas como a antropologia visual. A imagem é, ainda hoje, frequentemente tida por subjetiva, polissémica e superficial sendo, por isso, difícil a sua inclusão enquanto matéria de discussão analítica.

Apesar do papel secundário que ainda detém, a imagem tem sido gra- dualmente recuperada pela academia, principalmente por uma nova ge- ração de investigadores mais familiarizados com os aparatos técnicos e visuais. A enorme disseminação dos aparatos de registo visual e audiovi- sual e a ubiquidade da imagem obrigam os investigadores não apenas a construírem novos objetos de estudo (ciberculturas, redes sociais, pro- dução mediática amadora, etc.) mas também a empregarem com mais frequência as tecnologias nos seus processos de pesquisa (Campos 2011).

Uma reavaliação dos paradigmas epistemológicos das ciências sociais também tem contribuído para maior predisposição ao acolhimento da imagem. As forte críticas lançadas ao positivismo, principalmente na An- tropologia, na década de 80, conduziram a uma reavaliação da natureza do ato científico e do papel do cientista social. A objetividade, o rigor e a neutralidade como valores fundamentais da ciência positivista foram lar- gamente questionados, uma vez que a ciência é uma construção social e todo o ato que lhe dá corpo está ideologicamente impregnado. Este de- bate epistemológico teve consequências a nível do emprego da imagem.

De acordo com a literatura especializada (Pink 2001; Ruby 1996; Banks 1995 e 2001; MacDougall 1997), o uso da imagem em ciências sociais pode ser enquadrado no âmbito de dois grandes paradigmas epis- temológicos, o de tradição positivista (perspetiva científico-realista) e o pós-positivista (perspetivas reflexivas e colaborativas). A primeira tem sido a dominante no campo das subdisciplinas mais especializadas.6

Neste caso, a utilização dos aparelhos visuais obedece aos postulados que regem este paradigma, convertendo a tecnologia num mero dispositivo de produção de dados analíticos objetivos, que visam documentar o real

a partir do olhar do pesquisador e da sua grelha analítica. Há, todavia, cada vez mais investigadores (Chaplin 1994; MacDougall 1997; Banks 2001; Ruby 1980; Pink 2001 e 2006) que admitem outras vias de pesquisa com imagens que abalam os alicerces epistemológicos positivistas/natu- ralistas. A crença na imparcialidade e na transparência dos aparatos óticos e audiovisuais, tem sido abalada pelo pensamento pós-positivista e pós- -moderno, que aponta não apenas a natureza contingente do ato mas também o olhar condicionado daqueles que se encontram detrás das câ- maras:

Num mundo pós-positivista e pós-moderno, a câmara é condicionada pela cultura da pessoa por trás do aparato; isto é, filmes e fotografias estão sempre relacionados com duas situações: a cultura dos que são filmados e a cultura dos que filmam [Ruby 1996, 1345].

Neste novo contexto, muitos preconizam um uso das imagens em pro- jetos de índole reflexiva ou colaborativa, numa abordagem não apenas mais consciente do papel contingente do pesquisador, mas também mais aberto à participação dos pesquisados (MacDougall 1997; Pink 2001; Ruby 1980; 1996; Banks 2001). Nas pesquisas colaborativas, o que se pre- tende é que o trabalhar «com» substitua o trabalhar «sobre» (Chaplin 1994). Ou seja, há uma alteração da política do ato científico, na medida em que se transfere para os pesquisados uma maior responsabilidade na produção de conhecimento, atribuindo um lugar de maior destaque à sua voz. Neste caso, o ato científico torna-se mais imprevisível, aberto e refle- xivo, na medida em que não obedece apenas às grelhas analíticas do pes- quisador. As denominadas «metodologias visuais participativas» pressu- põem, por isso, uma prática científica que visa o envolvimento do investigador com a cultura fotográfica das comunidades ou dos indivíduos em estudo (Pink 2001). As imagens (fotografia, vídeo, etc.) ora são produ- zidas de forma negociada e colaborativa, entre o investigador e os grupos estudados, ora são da exclusiva responsabilidade destes últimos.

Diversas propostas metodológicas têm sido avançadas neste âmbito. Uma destas metodologias é a photovoice, desenvolvida por Caroline Wang e Mary Ann Burris (Wang e Burris 1997). Esta metodologia colaborativa prevê a entrega de câmaras fotográficas aos indivíduos/grupos pesquisa- dos que produzem uma série de registos fotográficos centrados numa te- mática particular. As imagens produzidas são, posteriormente, alvo de análise e, eventualmente, de debate com os seus autores.

Relatos de um projeto visual colaborativo

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