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Questões éticas: as técnicas visuais e digitais

O uso destas técnicas visuais e digitais coloca problemas éticos espe- cíficos. Quanto à fotografia, é crucial a obtenção do consentimento in- formado de pais e crianças, havendo um controlo crescentemente rigo-

roso sobre a publicação de imagens de crianças (Bragg 2011). É mais di- fícil assegurar o anonimato em imagens visuais do que em materiais es- critos, o que levanta problemas de segurança, direito à privacidade, difi- culdade em antecipar os públicos que terão acesso às imagens agora e no futuro e todos os riscos inerentes à exposição (Pauwells 2010; Bragg 2011). Pauwells (2010) e Baker e Smith (2012) alertam ainda para o tema da propriedade dos direitos de imagem, sobretudo aquando da publica- ção dos trabalhos de investigação.

Sobre a netnografia, Murthy (2008) salienta os aspetos da privacidade, consentimento informado, pseudónimos online e estatuto público ou pri- vado da documentação e correspondência por e-mail. Ao estudar comu- nidades online, é recomendável que o investigador obtenha permissão; no caso de se manter oculto, deve norteá-lo um sentido de «obrigação» para com a comunidade estudada. Estes problemas são acrescidos no que respeita à pesquisa com populações vulneráveis (Murthy 2008), no- meadamente crianças (Pascoe 2012): em situações de anonimato, de di- ficuldade em verificar que se está a lidar com crianças, em manter a se- paração da vida pública e privada dos investigadores, cuja identidade se torna mais acessível aos respondentes, com os riscos inerentes à expecta- tiva de disponibilidade constante e à devassa da vida privada.

O uso dos métodos visuais em C&I procurou seguir todos os protocolos éticos adequados tanto às técnicas como aos objetos de estudo. Em pri- meiro lugar, obteve-se autorização para a participação das crianças através da assinatura de formulários de consentimento informado, junto destas como dos respetivos encarregados de educação. Os documentos explica- vam o âmbito do estudo, os objetivos, as «regras do jogo», que incluíam a negociação da privacidade da criança em matéria de recolha dos dados em casa sem a presença de familiares. Incluíram-se também considerações éticas, garantindo e salvaguardando a confidencialidade e o anonimato das crianças, das suas famílias, e de todo o material recolhido.

O tratamento dos materiais visuais esteve exclusivamente a cargo dos investigadores do projeto. Nas comunicações a congressos e publicações resultantes deste trabalho houve a preocupação de anonimizar sistema- ticamente todas as referências identificativas das crianças (nomes dos pró- prios, dos familiares e dos amigos, endereços) mas também os registos visuais: desfocar rostos, ocultar identificações nas capturas de ecrã dos perfis de redes sociais, etc. Esta precaução necessária colidiu de certa forma, porém, com a vontade de exposição de algumas das crianças, que tiraram fotografias a si próprias (a utilizar os objetos favoritos) ou a fami- liares. E evoca a constatação de Bragg (2011): a publicação de investiga-

ção sobre crianças está a criar uma nova estética da infância, «figuras es- pectrais sem rosto», que «comunica uma noção de infância como em risco sempre e em todo o lado».

As fotografias refletem um espaço íntimo e privado único: fotografias emolduradas, cartazes, animais domésticos, recordações de férias, livros de cabeceira. Apesar dos processos de anonimização, poderão estes ele- mentos revelar o sujeito? Igualmente, as capturas de ecrã expõem uma abundância de elementos identificativos, não só dos sujeitos em estudo, mas também de outros que não deram o seu consentimento (ex.: mem- bros das redes sociais ou parceiros de jogos online), pelo que é delicado estabelecer os limites do que se mostra e o que se omite.

A relação com os «guardiães» não foi sempre fácil. A maioria revelou- -se acessível e disponível, mas houve casos de interferência na preservação das condições de privacidade, «tomando de assalto» a conversa com a investigadora, perturbando a relação com a criança. O facto de a inves- tigadora que realizou o trabalho de campo ser jovem, mulher, com uma aparência mais aproximada à das crianças em estudo, facilitou o acesso aos limites protegidos do espaço doméstico, acelerou a confiança e mi- nimizou a relação de poder, mas conferiu-lhe menor grau de controlo e autoridade sobre adultos, dando abertura para posturas mais autoritárias e abusivas. Dois exemplos:

Quem abriu a porta foi o pai, que depois me dirigiu à sala onde estava a I. Quando o pai ouviu as condições do estudo, teve uma reação agressiva. Disse que ninguém o avisou que a entrevista era a sós, que não havia segredos na- quela casa, e que não achava bem a entrevista ser a sós, porque a filha era menor [num tom de voz alto]. A I. lembrou ao pai que isso estava escrito no consentimento que assinaram. Depois de sublinhar que se não concordasse com as condições, não haveria problema e a entrevista não se realizava, o pai voltou atrás com a palavra e anuiu, mas acrescentou «eu vou estar ali na co- zinha, se eu ouvir alguma coisa que não goste, vai haver problemas». A I. ficou envergonhada com a situação e o ambiente bastante constrangedor [também para mim, com receio de certas perguntas] [notas do trabalho de terreno].

E tens assim regras para utilizar o computador ou a internet? F – não [...]

... a única coisa que eu não consigo é ir com o computador para o meu quarto ou para o quarto da minha mãe, porque a minha mãe não me dá a

password.

Porque achas que a tua mãe faz isso?

F – porque quer sempre ouvir as minhas conversas, quer sempre estar a vigiar-me, a maior parte das vezes ela está lá dentro.

Mãe – eu não te vigio...

F – mas também não me dás a password mãe.

Mãe – mas eu não te vigio, eu vigio-te?! Eu até estou lá dentro. F – então dá-me a password

[visita a casa de Filipa, 11 anos].

Eis exemplos de situações imprevistas eticamente delicadas. A prepa- ração técnica do investigador, a sua sensibilidade são atributos indispen- sáveis para as contornar de «improviso».

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