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A sociologia e a infância: continuidade ou diferença com a ciência sobre adultos?

Comparativamente a outros ramos científicos, ou à categoria dos «jo- vens», a entrada das crianças na sociologia é mais recente. A sua presença era tradicionalmente assinalada nos estudos sobre a morfologia ou a di- nâmica familiares, sobre os processos de socialização ou a escola e o sis- tema de ensino. Mas tratava-se de uma presença silenciosa como espec- tadores passivos do fabrico das relações que se teciam em seu torno e lhes eram exteriores.

O paradigma da infância, proposta que surge em meados dos anos 80 do século XX, vem perturbar tal visão estabelecida (Almeida 2009).

Rompe com a conceção da criança como ser uno, dado universal de na- tureza biológica ou psicológica, contrapondo-lhe a afirmação de que a infância é uma construção social e histórica, fruto do espaço e do tempo; é portanto uma condição heterogénea, moldada por clivagens entre ida- des, géneros, classes sociais ou etnias de pertença das próprias crianças. Rompe, também, com a perceção da criança como ser imaturo e incom- petente, em evolução cumulativa e unilinear para um estado adulto, etapa final da maturidade e da competência; a criança não seria portanto um «adult in the making», mas um «being in the present» (Harden et al. 2000). Sustenta-se, ainda, que as relações sociais entre as crianças devem ser estudadas por direito próprio, a partir do seu ponto de vista, inde- pendentemente do dos adultos. Em suma, propõe-se uma abordagem que reconheça nas crianças o estatuto de atores construtores de vida so- cial – a sua e a dos adultos que as rodeiam.

Metodologicamente, estes princípios traduzem-se numa exigência: dar voz às crianças na investigação. E, a montante, põe os investigadores a discutir problemas de fundo: considerar as crianças como objetos autó- nomos e legítimos de sociologia levanta, ou não, novos problemas de método, desde logo na relação entre investigador e investigado, no tipo de instrumentos de recolha e tratamento da informação? Surgem, ou não, dilemas éticos especiais na produção de conhecimento sobre as crian- ças, ou mesmo – como muitos autores defendem – do conhecimento produzido com ou para elas? O que significa, enfim, dar voz às crianças na pesquisa? As respostas não são consensuais.

Punch (2002) defende que a investigação com crianças é potencial- mente diferente da que se faz com adultos, pois estes possuem certas re- presentações sobre o seu estatuto como «outro» vulnerável, refletidas no

modo de lidar com elas (fora ou dentro da pesquisa) e, ainda, porque as crianças possuem uma posição marginalizada na sociedade adulta. Re- toma, afinal, as teses de J. Qvortrup (2004), primeiro a propor a aborda- gem estrutural da infância e da adultez, categorias binárias de uma relação geracional que – como a de classes e a de género – se pauta por desigual- dade e clivagem. Mauthner (1997), ou mesmo Boyden e Ennew (1997) insistem na ideia: fazer investigação com crianças é diferente, não pelo facto de lidarmos com crianças, mas por força da relação de desigual poder em que elas se inserem com os adultos-investigadores, fundada em critérios de idade e numa hierarquia inferior-superior. Esta afirmação pode parecer, aliás como os próprios reconhecem, algo paradoxal: aque- les que reclamam para a criança, à semelhança do adulto, competência e autonomia de agência são os mesmos que chamam a atenção para a necessidade de encontrar child-friendly methods para comunicar com elas (Punch 2002). Contudo, o alerta é pertinente, já que reconhecer aquela representação não pode fazer esquecer a relação de poder que a domina nem o facto de a criança se exprimir diferentemente do adulto, em forma ou conteúdo.

A montante, a resposta à pergunta sobre o carácter «especial» da in- vestigação com crianças não é indiferente às conceções sobre a ciência e a sua missão. Ele é sem dúvida considerado por aqueles que entendem a ciência como arma emancipatória ao serviço de um grupo marginali- zado, no caso as crianças. Na esteira da filosofia inovadora da CDC, da desconstrução do paradigma protecionista da infância (Trevisan 2014), atribuem às crianças o direito de ser coprodutoras de ciência e envolvidas em todas as etapas da investigação. A ciência com as crianças é diferente porque são um grupo oprimido e porque o conhecimento é um instru- mento do seu acesso à cidadania plena e, portanto, de transformação da realidade (Alderson 2001; Soares 2005; Trevisan 2014). Eis um paradigma que sustenta (sobretudo, mas não exclusivamente) a proposta de uma «radicalização da infância» (Sarmento e Marchi 2008) e se associa a uma nova corrente crítica, por oposição à visão «macro-estrutural da infância enquanto categoria geracional» ou «interpretativa, com centro na agên- cia» (Trevisan 2014, 60). Propõe-se a cumplicidade entre investigação e práticas sociais interventivas para a emancipação da infância. O foco dos estudos efetuados neste domínio é, não raro, o da participação, reverso da representação e das realidades da «não criança» ou da «criança sem infância». À semelhança dos estudos feministas (ou mesmo dos de mi- norias étnicas), a ciência toma sentido a partir das suas valências externas, pela mensagem libertadora e de transformação que fornece a franjas.

Do ponto de vista operacional, e contrariamente à investigação conven- cional, as crianças tornam-se portanto active researchers (Kellet 2005) de pleno direito em todas as etapas da pesquisa, desde a definição do pro- blema até à interpretação e difusão da informação.

Estas propostas fazem depender, afinal, a legitimidade e a qualidade da ciência da sua aplicabilidade e da sua utilidade práticas – no caso em prol da defesa dos oprimidos e dos que não têm visibilidade ou voz. Ou- tros autores, porém, colocam a questão da especificidade da investigação com as crianças em moldes diferentes.

Reconhecendo alteridade e assimetria na relação entre investigadores- -adultos e investigados-crianças (mas não será sempre assimétrica a rela- ção entre quem pergunta e quem responde?), argumentam que a criança não é um investigador em miniatura (Almeida 2009), pois o empreendi- mento científico implica protocolos cujo domínio nem as crianças (nem outros adultos não-cientistas) possuem. É importante trazer a perspetiva das crianças para a investigação, mas a ciência faz-se sobre as crianças, pontualmente com elas mas não estritamente para elas. Admitir que o seu papel se esgota numa utilidade emancipatória é, em muito, reduzir o seu potencial de inovação e avanço do conhecimento.

Acentuando a ideia de continuidade e simetria, Christensen e Prout (2002, 482) sublinham mesmo que «os investigadores deverão partir para o terreno assumindo, a priori, que a sua relação ética é a mesma quer se investigue com crianças, quer se investigue com adultos». Tal não isenta – torna obrigatório, aliás – que se interroguem criticamente sobre a con- sistência interna do seu modelo de análise, como ainda sobre os contex- tos, terrenos e sujeitos da investigação, sobre a sempre tão delicada rela- ção entre sujeito e objeto de pesquisa. A qual, no caso das crianças, não se fecha numa díade mas conta com uma terceira entidade, esse, sim, traço diferenciador face à investigação sobre adultos: a existência de ga- tekeepers, responsáveis, protetores e cuidadores da sua integridade, de cuja autorização depende o acesso aos seus universos de vida.

Considerar a investigação com crianças como um de dois extremos (ora o mesmo, ora diferente da que é feita com adultos) resultará de uma visão simplista. Caso a caso, há que reflexivamente interrogar-se sobre a constelação de fatores envolventes e complexos que se jogam no estudo das crianças contemporâneas, a partir dos problemas que a teoria cons- trói. É o ponto de vista que cria o objeto. Mas não há ciência rigorosa, eticamente sustentável, que não considere a natureza dos objetos e as ca- racterísticas dos terrenos da sua própria produção.

«Dar voz» às crianças: das palavras

e narrativas às imagens e tarefas

A escolha das metodologias adequadas para os estudos científicos sobre crianças constitui uma decisão crucial do processo de investigação. Neste âmbito, vêm ganhando popularidade as metodologias centradas nas crianças, de carácter inclusivo e participativo, bem como aquelas que (em alternativa ou complementaridade com as que privilegiam palavras e discursos) procuram trabalhar os universos da infância a partir de ima- gens e materiais visuais.

O que explica essa popularidade crescente?

Desde logo, como referimos, as condições internas ao avanço da pró- pria ciência e aos paradigmas científicos em jogo na investigação. O pa- radigma da infância, apostado em dar voz às crianças, abriu oportunida- des de renovação e inovação metodológicas. Mas o que significa, afinal, dar voz às crianças na investigação? De que voz, de que vozes se fala quando esse desiderato é invocado?

Komulainen (2007) adverte-nos de que a voz não deve ser encarada como prática individual, mas como «construção social multidimensional», produto da interação social; assim, as «vozes» das crianças devem ser tra- tadas como manifestações de discursos (usos de palavras) mas também de práticas (atividades, movimentos físicos) e dos contextos em que uns e ou- tras ocorrem. A comunicação das crianças (ver o caso extremo daquelas com alguma forma de deficiência) faz-se frequentemente por modalidades não-verbais, as quais não podem ser desvalorizadas sob pena de se deixar escapar dimensões importantes das suas infâncias. Elden (2012), na mesma esteira, insiste na necessidade de examinar criticamente o conceito de «vozes das crianças» e a produção de «vozes» na investigação, defendendo a possibilidade de investigação criativa e reflexiva que promova the voicing of others. Os métodos visuais são particularmente interessantes para con- trapor à visão reducionista da voz unitária, atomística e «autêntica» da criança, a complexidade e messiness das vozes das crianças.

James (2007), por seu turno, lembra que «deixar falar» as crianças não basta para que as suas vozes sejam «ouvidas». Há que encará-las como sujeitos ativos do processo de investigação, dar relevo aos seus pontos de vista e contextualizá-los. Tal como argumenta Alderson (2001), recor- rer às crianças não apenas como informadores mas como investigadores constitui a solução para esbater a hierarquia de poder entre adultos e crianças no processo de investigação e protegê-las de formas de abuso.

Como pano de fundo desta discussão interna aos estudos sobre a in- fância, há que genericamente aludir ao debate teórico no seio do campo mais vasto das ciências sociais. A crítica das perspetivas positivistas, e o avanço das teorias interpretativas da ação estimularam a renovação me- todológica, em parte traduzida na experimentação de técnicas visuais na investigação com crianças. Sobre essa tendência, Sarmento (2014, 199) nota que o uso da imagem tardou a aparecer no trabalho sociológico e considera que são efetivamente as correntes «fenomenológicas, intera- cionistas simbólicas e etnometodológicas as principais responsáveis pela incorporação desses métodos visuais, em especial a fotografia, nos traba- lhos sociológicos». Sublinha, aliás, que é «o diálogo entre linguagem ver- bal e iconográfica» que «constitui o cerne das metodologias visuais: falar por imagens o que as palavras não chegam a conseguir dizer» (2014, 199). Por outro lado, é no «paradigma crítico-participativo que as imagens são entendidas como construção coletiva, e que a participação conjunta de investigadores e investigados se estende ao trabalho de análise, interpre- tação e disseminação daquelas» (2014, 199). Esta modalidade – entende Sarmento – é particularmente ajustada aos estudos sobre a infância, já que muitas vezes as crianças não possuem as mesmas capacidades de ex- pressão verbal dos adultos, e constituem um grupo mais próximo «das margens, das condições sociais oprimidas e das populações subalternas» (2014, 199).

Para além das condições internas à ciência, a crescente importância dos métodos participativos e visuais na investigação com crianças é indisso- ciável de mudanças externas que envolvem as condições da sua produção. Desde logo, a aprovação nas Nações Unidas da CDC em 1989 constitui um marco simbólico e um extraordinário impulso para o reconhecimento do direito à participação das crianças nos assuntos que lhes dizem respeito. Se possuem o direito a serem ouvidas em matérias que as afetam nos seus quotidianos, porque não o estender ao campo científico?

Entretanto, sendo a sociedade contemporânea uma «civilização de imagem», estranho seria que as metodologias visuais não se expandissem no campo da ciência. Campos (2011) regista, a propósito, que uma forte «pulsão visual» anuncia um maior diálogo entre ciências sociais e imagem (ora como meio auxiliar de pesquisa, ora como objeto de estudo).

Pensando no caso mais específico das crianças, a dicotomia entre ima- gem e palavra tende a diluir-se num mundo onde a «geração multimédia» (Cardoso et al. 2007) «cresce entre ecrãs» (Ponte et al. 2011), em que as novas TIC (computador, internet, consolas, nomeadamente) entram massiva e intensamente nos seus agregados domésticos ou escolas, e até

se tornam portáteis e instrumentos de bolso (telemóveis, Iphones, ipads). As crianças são frequentemente as franjas de população que mais intensa, proficiente e interativamente utilizam estes novos media (Livingstone et al. 2011), alimentam formas de comunicação instantânea, criam e dina- mizam redes sociais através da internet, esbatendo fronteiras entre os es- paços público e privado, envolvendo-se em formas intensas, permanen- tes, fluidas de mobilidade desterritorializada entre espaços virtuais e reais (Almeida et al. 2014).

Na «cultura transmédia» da «infância em rede» (Lapa 2014) combi- nam-se elementos narrativos e não narrativos, integram-se em arranjos híbridos e mutantes elementos retirados de várias plataformas mediáticas. Para captar nas suas múltiplas e inéditas facetas as «infâncias digitais» das crianças contemporâneas (Almeida et al. 2015), a sociologia terá de se munir de novas metodologias que contemplem as imagens que traçam esta mudança permanente e rápida de condições de tempo e de espaço.

Procurando então sistematizar os objetivos destas novas metodologias, encontram-se fundamentalmente três. O primeiro prende-se com o de- safio de captar de forma única, a partir de dentro, experiências, perspeti- vas e interpretações infantis no quotidiano que coconstroem com os adultos e os seus pares. Já o sublinhámos: para muitos, a validade, fide- dignidade desse estudo implica processos em que a equipa de investiga- ção estabelece non-exploitative relations com as crianças investigadas, cujas capacidades para influenciar a direção da pesquisa devem ser aprofun- dadas (Thomas e O’Kane 1998).

Tirar partido de outras formas de expressão das crianças (para além das verbais) de modo a facilitar a revelação e interpretação das suas perspetivas sobre as estruturas e relações sociais que moldam as vidas constitui um segundo objetivo. Eis uma perspetiva inclusiva, que se ajusta a crianças com barreiras linguísticas, baixa literacia. Warming (2011) alerta-nos, aliás, para os riscos do recurso exclusivo a metodologias centradas no uso da oralidade ou da palavra: reforçam a visão da infância como uma condição homogénea, esquecem que há crianças que «literal ou metaforicamente» não têm voz, reproduzem formas de violência simbólica que associam o poder à linguagem. Acresce que as task-centred activities (por exemplo, ma- nuseamento autónomo de equipamentos tecnológicos – computadores, máquinas fotográficas, câmaras de vídeo) através dos quais as crianças pro- duzem ou recolhem imagens, gozam – como bem assinalam Nic Gab- haim et al. (2006) – de um excelente acolhimento entre os mais novos.

O terceiro objetivo é, enfim, minimizar as desigualdades de poder entre o investigador e as crianças. Justamente, basear a metodologia em tarefas

familiares e atrativas em que elas são muito competentes favorece relações mais democráticas e menos hierárquicas (Mallan et al. 2010). A propósito, escreve Einardsdottir (2005, 527): «convidando as crianças a comunicar de maneira diferente usando outra linguagem que não a verbal é uma ten- tativa para desenvolver os seus pontos fortes» e reforçar o seu empowerment.

A teoria na prática: metodologias visuais

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