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Competências visuais do investigador: para uma prática de realização de imagens

O projeto em causa proporcionou a oportunidade de observar os jo- vens em processo de transição profissional em dimensões mais objetivas (itinerários, condições de socialização, recursos mobilizados) e subjetivas, os quadros simbólicos (discurso sobre aspirações, expectativas e valores).

Se as ocupações profissionais são, em geral, passíveis de observar à luz da sua performatividade, os quatro estudos de caso constituíam locus pri- vilegiados para observar esta dimensão performativa, sobretudo nos con- textos de formação prática em que a socialização profissional se organiza. A observação das aulas de cozinha, de DJ’ing, de treinos de futebol ou de desfile e pose de modelos, por exemplo, permitiram-nos observar o treino de técnicas corporais e convocar o conceito de incorporação de Marcel Mauss (1983) e as suas observações sobre o estilo de andar das enfermeiras americanas e das parisienses. Trata-se de práticas pedagógicas onde se privilegia a modalidade «aprender-fazendo», onde o conjunto de competências técnicas fundamentais é literalmente incorporado, «uma sequência de gestos que se aprendem vendo e fazendo, um reportório de movimentos que se vão incorporando por mimesis e na praxis, em in- teração com quem sabe, olhando o mestre em atividade, para depois ten- tar reproduzir e aperfeiçoar na prática manual», tal como analisa Ferreira

para o caso dos tatuadores (2013, 71). Uma dimensão de análise, de resto, de difícil acesso através de dispositivos de inquirição discursiva, mas fa- cilitada através de estratégias de observação in locu. O documentário que já referimos, realizado no âmbito do projeto de investigação (Para além da Fama), apresenta-nos um exemplo destas situações de aprendizagem de técnica corporal, num workshop orientado por um formador e scouter de uma agência de modelos, que esculpe com as suas mãos a posição dos ombros, do pescoço e do tronco, dos pés, e que em contacto direto vai dirigindo os movimentos das aspirantes a modelos como um condu- tor de marionetas.

O olhar treinado de Mauss, ou a inquirição visual de Goffman, em busca das brechas na encenação de si (elementos de denúncia daquilo que os indivíduos procuram ocultar na negociação da troca de informa- ção com os outros) são princípios inspiradores de uma atitude socioló- gica. Mas num tempo em que muita da interação é mediada, o investi- gador é não só espectador do mundo social mas um espectador particular das omnipresentes mediatizações desse mundo, em que é comum o es- batimento deliberado entre a construção ficcional e a orientação realista (informativa ou documental).5

O sociólogo deve assim dotar-se de ferramentas que lhe permitam des- construir os estereótipos que resultem da cristalização de significados pre- viamente produzidos por outros – e esses outros são hoje em dia multípli- ces. Globalização, digitalização e expansão dos media eletrónicos são tendências que têm transformado os meios de produção, disseminação e receção de comunicação visual: «As estruturas de produção de media tra- dicionais são desafiadas por uma crescente sofisticação da tecnologia de produção e disseminação visual, do vídeo à fotografia digital, passando pela publicação eletrónica, que permitem a um número cada vez maior de consumidores tornar-se produtores de imagens» (Müller 2008, 101).

A consciência crescente, desde há algumas décadas, da importância do desenvolvimento de competências visuais por parte do espectador comum, sobretudo dos jovens, deu origem a noções como as de literacia mediática ou de literacia visual. Para o investigador, não é suficiente o de- senvolvimento dessas competências, mas também de competências es- pecíficas para a sua prática de investigação, tanto para uma capaz análise das imagens quanto para poder, se for o caso, aventurar-se na produção visual de significados do real.

5Este esbatimento deu origem, no contexto televisivo, a géneros de programas híbridos como o docudrama ou o infotainment.

A noção de competência visual é distinta da de literacia visual, e a pri- meira é a que mais nos importa para o objetivo destas páginas. Os con- tributos para esta distinção são bem sintetizados por Müller (2008): pas- sando brevemente pela noção de literacia visual (ou, para o mesmo efeito, de literacia mediática), ela tem raiz no cruzamento entre a pedagogia, os estudos de linguagem e a semiótica, com objetivos aplicados ao especta- dor, e resulta da deslocação de objeto do conceito de literacia textual, podendo definir-se como «a consciência que o espetador tem das con- venções através das quais são produzidos os sentidos das imagens visuais» (Messaris e Moriarty 2004, 481, in Müller 2008). A proposta de compe- tência visual é qualitativamente distinta – ela é apresentada como um paradigma para a prática de investigação e abrange várias dimensões de análise entendidas como necessárias aos investigadores do arco das ciên- cias sociais (diríamos que não é tanto um paradigma quanto um pro- grama de investigação). O conceito de competência visual contempla, segundo a autora, as dimensões de produção, perceção, interpretação e receção de imagens. Muito sumariamente, a primeira dimensão prende- -se com a compreensão dos contextos diversos em que ocorre atualmente a produção visual e assume que diferentes contextos regem-se por lógicas distintas e condições de produção. Do contexto artístico ao jornalístico, da produção com intuito comercial à amadora, passando pela produção de imagens de carácter científico, o investigador tem de ser capaz de iden- tificar as particularidades associadas às imagens produzidas em contextos de produção diferenciados.

As restantes dimensões da proposta de Müller situam-se do lado do espectador e do seu contexto. A dimensão da perceção visual prende-se com aspetos individuais e grupais e solicita do investigador a capacidade de compreender como diferentes indivíduos ou grupos sociais percecio- nam uma mesma imagem. A dimensão da interpretação visual prende- -se com as variações de sentido atribuído às imagens percecionadas. Fi- nalmente, a dimensão da receção solicita do investigador interrogações sobre as reações cognitivas e emocionais às imagens.

No estudo dos jovens socializados em ocupações como chef ou mo- delo, as categorias de leitura do real dos investigadores estão expostas a informação que chega através de reality shows e concursos de talentos. Um exercício de zapping pela oferta televisiva em canais revela-nos pro- gramas já bem familiares ao público português, como o norte-americano America’s Next Top Model (com mais de vinte temporadas) ou o austra- liano (formato com origem britânica) Masterchef, entre muitos outros. Se cada um deles contribui para reforçar imagens estereotipadas dos profis-

sionais e da atividade, a análise contrastada entre os dois mostra algumas diferenças que tornam visível a construção narrativa. Apenas a título ilus- trativo, no primeiro é fácil apercebermo-nos da visibilidade dada às rela- ções interpessoais, sob a forma de competição, conflitos, relações pas- sionais, que aproxima o programa do formato de reality show, com grande destaque para o quotidiano dos participantes e para os bastidores da ati- vidade. No segundo, a maior parte da ação passa-se na cozinha, cenário por excelência da profissão de chef, com acentuação das dimensões de trabalho e esforço dos participantes.

São opções narrativas que ilustram a edição dramática que é feita com base num registo documental. Usamos este exemplo para salientar a im- portância da crítica dos estereótipos mediáticos, que consideramos ser um dos tempos do trabalho dos cientistas sociais; um segundo tempo, de enorme importância, parece-nos, é o trabalho de ressignificação, de contributo para transmutar esses estereótipos em novos sentidos mais es- clarecedores, através da realização de documentário criativo em contexto de investigação.

O papel do investigador social como produtor visual e as questões que se lhe colocam nessa prática são matérias amplamente trabalhadas em vários contextos disciplinares, com destaque para a tradição do filme etnográfico no contexto antropológico, e de cuja alargada produção li- terária não temos pretensões, que seriam fantasiosas, de dar conta neste capítulo. Importa-nos sobretudo lançar algumas pistas para essa reflexão, no rescaldo do projeto de investigação a que nos reportamos.

Para enquadrar a construção e o tratamento das imagens de vídeo como parte do processo de construção de conhecimento evocamos aqui a noção de etnografia focada, uma prática de investigação que permite um escrutínio do campo análogo ao da etnografia clássica, porém mais denso. Uma das particularidades prende-se com o processo de edição ci- nematográfica, também designado por processo de montagem. A mon- tagem do filme consiste no trabalho de interpretação e organização da informação recolhida. Convocando aqui o contributo de Jean-Michel Berthelot (2001), ela corresponde à organização do sentido do investiga- dor no diálogo com os «dados», em dialética com a problemática inicial. É quando, findo o trabalho de terreno, o investigador/realizador de ima- gens passa a concentrar-se na organização da informação produzida e na seleção desta para construção do seu argumento. A observação e a análise das imagens recolhidas permitem ao investigador revisitar a sua experiên- cia no terreno, reimergir nas situações filmadas e tomadas de consciência de novas descobertas que, num primeiro contacto, podem não ter pas-

sado de microintuições. O processo de tratamento das imagens permite ao investigador aquilo que poderíamos caracterizar como uma expansão sensorial e cognitiva: «Com efeito, o material de vídeo permite uma ob- servação microscópica de ações que se desenrolam temporalmente e, em particular, de interações» (Knoblauch e Schnettler, 2015).

O mais interessante e enigmático aspeto deste processo de produção de imagens é o que desafia o logocentrismo sociológico, e que deixámos para esta parte final. O sociólogo que se ocupa das interações sociais está treinado na observação das mesmas como encenação intersubjetiva, na me- dida em que a encenação de si não resulta num papel fixo mas numa ne- gociação permanente e instável entre os atores envolvidos. O sociólogo realizador de imagens, ao entrar em cena com a câmara para filmar esta ou aquela situação, passa a ser um dos atores com quem todos os outros interagem – ainda que essa interação passe por ignorar a sua presença, ne- gociando com ele um tipo de relação que, na tradição documentarista, os autores do cinema direto batizaram por fly on the wall. Mas, contrariamente à invisibilidade e à não-interferência que esses autores reclamavam, o in- vestigador tem consciência de que a sua presença produz uma reorques- tração que lhe é produtiva na medida em que, sem adulterar a situação em curso, traz mais expressividade – e visibilidade – a aspetos da situação. A relação metafórica com o material filmado faz parte dos dispositivos criativos do investigador para conferir sentido a este material.6

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