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Dissemos no início que a sociologia tem vindo a integrar a produção visual no seu corpo de metodologias, naquilo que, se olharmos para a importância da visualidade no mundo contemporâneo, parece ser uma caminhada lenta e titubeante. Veja-se a frequente hesitação terminológica e a imprecisão de termos: por exemplo, há no discurso dos investigado- res-autores de textos sobre este tema uma sobreposição comum de con- ceitos, que confundem técnicas de recolha («captação de imagens») e su- portes de registo («audiovisual», «imagem-vídeo»). Este projeto foi também uma oportunidade de reflexão e clarificação, pelo que é perti- nente dar aqui conta brevemente dessa reflexão. A própria escolha de palavras como «recolha» ou «registo» parecem entrar em manifesta con- tradição com aquilo que é o estado da arte da epistemologia das ciências sociais. Elas têm implícita, mesmo que sem intencionalidade, a pretensão de uma objetividade e de uma neutralidade que obliteram todas as me- diações da prática de investigação – a começar pelas mediações operadas pelo próprio investigador, e isso independentemente de as estratégias me- todológicas serem de teor quantitativo ou qualitativo.

Desta forma, propomos aqui «simplesmente» designar esta prática de investigação, ou protocolo metodológico, por «realização de filme do- cumental», por contraste com as enunciações acima. É certo que a de- signação é idêntica à usada no campo da produção artística referente à prática de realização de cinema – o equivalente, em inglês, é a expressão filmmaking, ao mesmo tempo abrangente e autoexplicativa. Esta assimi- lação não é mais do que um entre muitos casos de apropriação linguística e conceptual da sociologia, uma disciplina em que a construção de dis- curso sempre mostrou permeabilidade ao de outras áreas de conheci- mento. O que nos parece interessante é a sugestão da mediação narrativa

(mesmo autoral) do investigador, que no próprio ato de filmar (e na pos- terior edição) atribui sentido(s) às ações dos sujeitos sociais que observa. Distante das ilusões de objetividade na relação de conhecimento com o real, esta designação pressupõe a ativação do ponto de vista do próprio sujeito de conhecimento. Se a atribuição de sentido pelo investigador é reconhecidamente uma dimensão da produção de conhecimento, o que sobressai aqui é o processo criativo, tradicionalmente demarcado dos processos cognitivos do investigador.

Retornemos por momentos à distinção proposta anteriormente entre documentário ilustrativo e documentário criativo, invocando a distinção popperiana entre contextos de descoberta e contextos de justificação no processo de produção de conhecimento. O documentário ilustrativo ins- creve-se na dimensão racional e cognitiva da produção científica. O que se consegue explicar e elaborar discursivamente; o documentário ilustra- tivo é precedido de elaboração discursiva e é, nesse sentido, um recurso de justificação. O contexto de descoberta convida ao desvio do logocen- trismo sociológico dominante na prática de investigação. A geração de novas ideias, diz-nos Popper (2005), contém elementos irracionais. Pro- cessos subjetivos de materialização da intuição e da inspiração são do domínio psicológico, escapam à análise puramente lógica, e qualquer tentativa de análise desses processos é uma reconstrução racional do inex- primível. A proposta de realização de documentário em contexto socio- lógico como processo de descoberta reclama para a ciência a transcen- dência que o racionalismo moderno propôs circunscrever para outros terrenos. Nesse sentido, pode dizer-se que a prática metodológica de rea- lização de documentário criativo é uma marca dos tempos, que caminha no sentido da indiferenciação que cunha a pós-modernidade.

Se a sociologia tem gradualmente vindo a debater-se com a incorpo- ração de metodologias visuais, a premissa logocêntrica fundacional da disciplina não é, por norma, desafiada. Não se propõe aqui uma elimi- nação das operações racionalmente controladas, mas antes uma expansão da mediação do investigador. Um filme criativo torna muito mais evi- dente a singularidade do investigador: as suas decisões sobre o que filmar e como filmar (e mesmo sobre o que não filmar, o que seleciona para ficar ausente, fora de campo), assim como as suas opções de edição, ex- põem mais cruamente a sua mediação ativa: «As palavras que ele escreve têm por limite a sua imaginação, ao passo que fica tributário das imagens que filmou» (Friedmann 2006, 11). Esta mediação também existe noutras mudanças de suporte, ainda que mais mascaradas no caso do suporte textual, pois a edição de um texto mais facilmente eclipsa as mediações

que a passagem ao suporte escrito requer. Isso mesmo assume Bourdieu em La misère du monde: «transcrever é necessariamente escrever, no sen- tido de reescrever: como a passagem do escrito ao oral que se opera no teatro, a passagem do oral ao escrito impõe, pela mudança de suporte, infidelidades que são sem dúvida condição de uma verdadeira fidelidade» (Bourdieu 1993, 1417).

A realização de documentário criativo amplia as possibilidades de co- nhecimento. Para poder ocorrer tal ampliação, a realização cinematográ- fica tem de ser considerada como um dispositivo de investigação próprio, inserido numa estratégia de investigação mais ampla. É desejável a tensão entre vários dispositivos de pesquisa, em que o papel da realização de documentário é expandir as possibilidades de observação e permitir ao investigador intuir sobre aspetos do real, gestos, interações, para os quais não existe ou é incipiente o discurso previamente produzido. É nessas áreas de menor consciência discursiva do real que o processo de realiza- ção de um documentário pode manifestar todo o seu potencial de am- pliação do conhecimento.

Competências visuais do investigador:

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