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5 TRANSFORMAÇÃO DOS REGIMES AGROALIMENTARES NA CIDADE E

5.2 BELÉM E O PRIMEIRO REGIME AGROALIMENTAR INTERNACIONAL

Os regimes agroalimentares, de acordo com McMichael (2016), têm sido associados à estruturação política e capitalista mundial, durante primeiramente o domínio da nação britânica, seguida da estadunidense e, atualmente, a administração estatal neoliberal. A hegemonia britânica foi apoiada principalmente por forças militares e financeiras que se fundamentaram em princípios político-econômicos de comércio e livre iniciativa por outras nações concorrentes, com princípios organizacionais universais. Até então, em meados do século XIX, Belém ainda conservava um sistema de abastecimento que combinava o comércio de alimentos locais com a produção agrícola e extrativista, sendo que os produtos importados não se tratavam de gêneros de primeira necessidade.

Esse tipo de organização econômica era classificado por Silva e Kageyama (1996) como complexo rural, que representa uma unidade autônoma (ou praticamente autônoma) ao mercado nacional, uma vez que produzia quase todos os bens de utilidade que necessitavam para a produção de alimentos, que em parte eram destinados ao próprio consumo, e outra

parte comercializado. Esse tipo de economia ainda conservava como característica uma baixa geração de renda, o que dificultava o estabelecimento do comércio mediado por dinheiro.

O desenvolvimento do capitalismo, no contexto das mudanças no sistema de abastecimento em Belém estão relacionadas a passagem descritas em parte por Silva e Kageyama (1996) do complexo rural para um novo complexo econômico, a partir da proibição do tráfico de escravos e da Lei de Terras de 1850, que representou a criação de um incipiente mercado consumidor e a formação de uma demanda urbana permeada pelas necessidades de comercialização e exportação da borracha, configurando as condições históricas para uma estruturação produtiva e econômica das cidades da Amazônia, em especial Belém.

As transformações que combinam a alta demanda por borracha com a proibição do tráfico de negros para a realização de trabalho e a criação da lei que instituiu a propriedade privada da terra, logo estimulou um amplo mercado para bens-salários e permitiu que fosse ampliada substancialmente a divisão social do trabalho, urbanização e especialização da Amazônia na divisão internacional do trabalho. De acordo com Pará (1864, p. 40), em 1854, o então presidente da província do Pará já se ressentia com os efeitos da falta de mão de obra e a tendência da especialização da economia em torno da atividade de extração do látex e comércio da borracha, afirmando que “o emprego quase exclusivo dos braços na extração e fabrico de borracha, ao ponto de nos ser preciso receber de outras províncias gêneros de primeira necessidade e que dante produzíamos até para fornece-lhes”.

A preocupação do presidente da província do Pará estava associada às transformações no sistema de abastecimento da cidade, resultante de um novo quadro institucional coordenado principalmente pela Grã-Bretanha, que usava do seu poder econômico e militar para impor ao mundo o fim do tráfico de escravos que deliberou em seu parlamento, de acordo com Bethel (1976), em 1.º de maio de 1808. Além das considerações de ordem moral, a Grã-Bretanha tinha fortes razões econômicas para adotar tal política, entre elas a de fornecer produtos da sua economia para os mercados das antigas colônias.

Essa imposição repercutia em Belém desde a década de 1850, quando os jornais da cidade de Belém já destacavam que o fim do tráfico de escravo não se tratava de um projeto nacional, mas de uma imposição inglesa, que segundo o jornal O COLONO DE NOSSA SENHORA DO O' (1856), “não há nem de haver esperança de que a Inglaterra desista dos meios violentos de repressão, que tão proveitosos lhe tem sido”.

As consequências da falta de “braços” na província para as atividades econômicas do Pará foram minimizadas com o estímulo à migração de nordestinos, enquanto o

enfraquecimento da economia natural, e consequentemente do sistema de abastecimento alimentar de Belém, foi minimizado, como descreve Tocantins (1960), com “importação de outras províncias de gêneros de primeira necessidade”. Assim, gradativamente, a inserção da Amazônia na divisão internacional do trabalho foi se estabelecendo como fornecedora de matéria-prima para as indústrias, principalmente as inglesas, e consumidora, entre outros produtos, de alimentos que não mais eram produzidos na região diante da prioridade pelas atividades na economia da borracha.

Para Cardoso e Müller (2008), o ciclo da borracha ilustra de modo notável o funcionamento da economia da região no passado. O deslocamento de cerca de meio milhão de trabalhadores durante as duas últimas décadas do século XIX deveu-se, basicamente, a mudanças ocorridas na divisão internacional do trabalho, concomitantemente com a existência de condições internas no nordeste que favoreciam a emigração. Por outro lado, as bases do sistema extrativista da borracha compostas de estabelecimentos comerciais que despachavam mercadorias aos seringais e compravam a borracha, chamadas de casas aviadoras, cumpriam um papel central na mudança nos hábitos alimentares da população amazônica, uma vez que os seringais, de onde os trabalhadores extraíam o látex que origina a borracha, estabeleciam uma relação de dependência com as casas aviadoras, já que sem os aviamentos esses seringais não funcionavam.

A relação entre os aviadores e os seringalistas era estabelecida, em grande parte, pela troca de produtos industrializados pelo produto da natureza, sobre o controle das casas aviadoras que se aproveitavam dessa relação de dependência para, entre outras coisas, comercializar alimentos industrializados importados. De acordo com Tocantins (1960), além da majoração dos preços em geral, o aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos dos mercados europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam dos hábitos estabelecidos até então, tendo alimentos de necessidades básicas os obtidos através do agroextrativismo:

O esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva: carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço, atum, ervilhas, doces enlatados, leite condensado, camarões em conserva, queijos da Holanda, manteiga francesa, bacalhau português (TOCANTINS, 1960, p. 110).

A hegemonia britânica, para Beluzo (1999), se apresentava como a forma “adequada” de coordenação do arranjo internacional que supunha a coexistência de forças contraditórias, que entre outras coisas a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora de

alimentos, matérias-primas e, sobretudo, fronteira de expansão dos sistemas de crédito dos países centrais. Por isso, a Amazônia, na divisão internacional coordenada pela hegemonia britânica, além de fonte de matérias-primas para a indústria e mercado para diversos produtos ingleses, entre eles o famoso mercado de ferro “Ver-o-Peso”, foi fronteira da expansão de sistema de créditos.

De acordo com Oliveira (2008), a riqueza gerada pela borracha era concentrada nas mãos dos comerciantes e donos dos seringais, mas o principal favorecido foi o capital financeiro inglês, uma vez que as transações financeiras de financiamento das casas aviadoras pelo banco (principalmente ingleses) eram feitas seguindo o padrão libra-ouro, já que os bancos ingleses tinham grande lastro em ouro proporcionados pelo capital industrial em ascensão, cumprindo assim, segundo Beluzo (1999), uma função financiadora do mundo, tendo como a moeda nacional, a libra que era reputada a mais sólida entre todas e, por isso, mantinha a liderança enquanto intermediária nas transações mercantis e como instrumento de denominação e liquidação de contratos financeiros.

O crescimento econômico proporcionado pelo ciclo econômico da borracha intensificou a divisão do trabalho na Amazônia e deu origem à classe de trabalhadores especializados em coleta de látex na floresta, assim como uma elite mercantil. Essas classes sociais estabeleciam relações que foram descritas por Prado Jr. (1985), revelando a intensificação do processo de urbanização de Belém e a formação de uma elite que constituiu mercado para alimentos importados:

Uma vida ativa animara o grande rio, e suas margens tinham pela primeira vez conhecido o deslumbramento da riqueza e da prosperidade. Prosperidade de aventureiros que dissipavam a largas mãos, em despesas suntuárias, uma fortuna rápida e facilmente adquirida. [...] Enquanto a massa da população, os trabalhadores dos seringais, dispersos e isolados, se aniquilavam nas asperezas da selva e na dura tarefa de colher a goma, os proprietários dos seringais, os comerciantes e toda esta turbamalta marginal e parasitária de todas as sociedades deste tipo, se rolavam nos prazeres fáceis das cidades, atirando a mancheias o ouro que lhes vinha tão abundante da mata. A riqueza canalizada pela borracha não servirá para nada de sólido e ponderável. (PRADO JR., 1985, p. 273)

Evidencia-se, no trecho acima, o reflexo de uma nova ordem econômica sendo estabelecida com o liberalismo econômico coordenado pela Grã-Bretanha, que segundo McMichael (2016) deu origem ao primeiro regime alimentar global, e a instituição da divisão internacional do trabalho. Além disso, com a instituição de um regime alimentar, como será apresentado, assistiu-se no final do século XIX uma importante mudança institucional que gradativamente foi estabelecendo o preço dos produtos como o mecanismo de regulação no

mercado, incluindo o preço dos alimentos básicos, assim como a adoção do padrão financeiro libra-ouro.

Essas mudanças tiveram como reflexo no sistema alimentar de Belém a desestruturação parcial do complexo rural de produção que estruturava o abastecimento da cidade, por imprimir uma divisão do trabalho que demandava grandes esforços para a exploração da borracha, o que tornou a produção de alimentos algo secundário para muitos agroextrativistas, criando mercado para o crescimento do varejo de alimentos e, consequentemente, a importação deles de outras províncias e até mesmo do exterior, seja de alimentos de necessidade básica ou aqueles consumidos exclusivamente pela elite mercantil que se estabeleceu em Belém.

Dessa forma, as mudanças no sistema agroalimentar de Belém neste período têm como uma das suas marcas a significativa a diversificação do sistema, que ampliou a cadeia de abastecimento, incluindo novos produtores, industriais e setores varejistas, assim como nesse período passou-se a ter uma maior contribuição de alimentos produzidos em locais mais distantes da cidade e até em outros países, sendo o comércio internacional intermediado principalmente pelas casas aviadoras.

Entre o final do século XIX e meados do século XX em Belém já havia uma grande diversidade de locais que atendiam às mais diferentes classes sociais. Macêdo (2016) explica que nesse período havia espaços nos quais se vendiam produtos alimentícios como carne, peixe, farinha, massas, azeite, entre outras coisas de comer, bem como outros lugares que já vendiam alimentos prontos para consumo em um ponto fixo, havendo ainda relatos de vendedores ambulantes de comida que percorriam as ruas da cidade.

Para McMichael (2016), a diferenciação de classes sociais no interior da Europa foi estendida para todo o mundo por meio da dinâmica cumulativa dos regimes alimentares sucessivos, o que não significa que foi um processo linear. Na Amazônia, a diferenciação de classe, por mais que não representasse uma desintegração do “campesinato amazônico”, nos termos em que Lenin (1988) trata, dando origem a um significativo contingente de proletariados (trabalhadores livres) urbanos, originou uma classe comercial e financeira interna consumidora de alimentos importados.

Dessa maneira, o sistema alimentar de Belém passou por transformações quanto à origem dos alimentos, que nesse período passou ser mais significativamente incrementado por alimentos de outras províncias/Estados de origem agrícola, assim como por alimentos industrializados de outros países, principalmente europeus. O que resultou também em mudanças no comércio, sendo que, segundo Macêdo (2016), Belém passou a ter uma maior

diversidade de organizações vendendo alimentos, sendo composto de botequins, tabernas, quitandas, cafés, padarias, restaurantes e feiras.

Mesmo com a instituição do preço como instrumento de regulação do comércio internacional dos alimentos, resultados de Macedo (2009) revelam que o abastecimento da cidade de Belém na segunda metade do século XIX, em grande medida, provinha das cidades interioranas do Pará. As feiras e mercados como Ver-o-Peso, principalmente, continuavam a ter função importantíssima no abastecimento do que era comercializado diretamente aos consumidores, assim como abasteciam outros estabelecimentos varejistas como, por exemplo, o pirarucu seco e salgado encontrado nas tabernas de Belém, segundo Macedo (2009).

A carne de gado, por sua vez, era predominantemente oriunda de fazendas localizadas nas cidades da Ilha do Marajó – em 1884, cerca de 80% da carne enviada Belém era oriunda da ilha, de acordo com Macedo (2009). Os bois eram transportados vivos até Belém para serem abatidos no matadouro público chamado de curro, que até a década de 1910 funcionou próximo da região portuária de Belém. Em seguida a carne era comercializada para marchantes, que levavam para comercializar nos talhos ou açougues da cidade para se repassadas aos consumidores.

A necessidade alimentar em Belém se manteve, em grande medida, suprida pela farinha e derivados da mandioca, que eram utilizados no preparo de diversos alimentos, conforme Bates (apud ACAYABA; ZERON, 2000, p. 134), que em seus relatos como europeu viajante no final do século XIX e consumidor de pão afirmou que “quando não conseguimos ter pão nem biscoito, achava a tapioca molhada no café o melhor substituto nativo”. A origem da mandioca consumida em Belém era principalmente as cidades do interior do Pará, em especial Bragança, ao leste de Belém, que sozinha em 1867 abasteceu a cidade com 27% do produto através de um sistema de transporte que combinava embarcações a vapor (marítimas e fluviais) e terrestres.

O rápido crescimento populacional de Belém na segunda metade do século XIX e no início do século XX, relacionado com as migrações de trabalhadores envolvidos nas atividades de extração de borracha, resultou em aumento geral dos alimentos de necessidade básica, assim como e morte e fome, obrigando a adoção de duas medidas paralelas: O estímulo à produção interna de alimentos e de imediato o consumo de alimentos de fora da província/Estado do Pará para completar o abastecimento (MACEDO, 2009). Por isso, o ciclo econômico da borracha não estimulou apenas as importações de alimentos caros, cujo consumo atribuía prestígio à elite econômica que tinha condições de consumi-los, mas

também existiam aqueles que vinham para abastecer a cidade de gêneros de necessidade básica, como é o caso do trigo.

Para estimular a produção interna, o principal instrumento adotado foi tentar incentivar a colonização da região nordeste paraense e torná-la uma região produtora de alimentos para abastecer Belém e a Amazônia como um todo. Para isso, entre outras ações, foi idealizada e construída uma ferrovia que ligasse Belém a Bragança, cuja justificativa era ser “mais util e mais rapida a communnicação terrestre”, cuja abertura contribuiria “vigorosamente para o abastecimento do mercado d’esta capital de generos alimenticios” (GUIMARÃES; SANTARÉM, 1873, p. 29). A obra da ferrovia, que se iniciou em 1883, contribuiu para a consolidação da região nordeste paraense como importante para área de abastecimento de alimentos de necessidade básica para Belém, principalmente a farinha de mandioca.

Mesmo com a abertura do mercado aos outros países, o abastecimento de Belém em grande medida continuou sendo feito por alimentos produzidos na própria região amazônica, situação que pode ser explicada pelo fato de já estar instituído entre os moradores de Belém e migrantes nordestinos hábitos de alimentação por produtos que não constavam na pauta de exportação de outros países, como carne e peixes secos e farinha de mandioca.

A queda do preço de outros alimentos foi gradativamente mudando os hábitos alimentares estimulando a dependência do abastecimento de novos ingredientes agrícolas, tais como o trigo. A farinha de trigo era um produto que chegava à província/Estado através de importação, já que havia pouca produção da cultura deste cereal no país, e o Brasil, desde a abertura dos portos as nações amigas, passou a importar o produto dos EUA, já considerado no final do século XIX e início do século XX um gênero de importância para as padarias, fábricas de biscoitos e para a cozinha doméstica.

O trigo era um alimento que já aparecia nas pautas comerciais dos alimentos importados há muito anos de Belém, no entanto, a cidade assistiu, no final do século XIX, à sua demanda aumentar significativamente, coincidindo com o início do primeiro regime agroalimentar, quando os interesses financeiros britânicos coordenavam o mercado mundial, cabendo aos EUA suprir de farinha de trigo a região responsável pela produção de borracha através de mecanismos de preço. Uma demonstração desse crescimento das importações é apresentada por Macedo (2009), que afirma que no ano de 1856 chegaram ao porto da capital 80 barricas com farinha e já três anos depois (1859) chegaram a Belém de New York 216 barricas.

As mudanças provocadas pelo novo regime agroalimentar global já era motivo de preocupação em 1885, quando o jornal de Belém “O Agrário” publicou a proposta de

estímulo a criação de engenhos gerais como forma de organizar o abastecimento alimentar da província do Pará frente ao “definhamento da lavoura”, que tinha como causas, segundo o jornal:

[...] a impossibilidade absoluta em que se acha o lavrador de fazer se desenvolver as suas forças produtoras, por meio de novos empreendimentos, acompanhando os melhoramentos introduzidos nos países adiantados, de modo a poder concorrer no mercado com os produtos, de um lado, e a enorme desproporção que se observa entre os avantajados lucros da nossa indústria extrativa e os minguados ou negativos resultados da lavoura, são fatos que saltão aos olhos de todos, não carecem de demonstração. Assim temos vistos desaparecer nossos melhores engenhos açúcar, fábrica de tecidos, de louças, caindo pela mesma razão a cultura do café, até o ponto de importamos hoje os gêneros alimentícios, com exceção do cacau, em quantidade superior a produção. A mesma farinha já nos vem também de províncias vizinhas. De modo de produtores que eramos, vamos nos tornado simples consumidores!!! O arroz, para que aliás oferece a província o mais apropriado terreno, nos chega das índias Inglesas, por preço inferior o da terra! Admita-se por um momento que desapareça entre nós a cultura do arroz, da mandioca, do feijão, e da cana, como desapareceu já a do café e se acha quase que extinta a do algodão e do arroz na condição ficará reduzida a grande massa da nossa população [...] (O AGRARIO, 1885, p. 3).

Naturalmente, não se justifica plantar trigo em Belém e nas suas proximidades por questões de adaptação climáticas, no entanto, as estratégias de abastecimento do produto no primeiro regime alimentar no Brasil foi uma integração subordinada que se orientou, no caso da economia de Belém, para a aceitação da reprodução das situações de dependência alimentar, para os produtos de necessidades básicas que poderiam ser produzidos próximos da cidade, como o arroz, que era abastecido por estrangeiros, principalmente EUA e colônias inglesas, dependência que só irá se alterar em termos alimentares com a subordinação do abastecimento da agroindústria localizada principalmente no sul e sudeste do Brasil.