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1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19

2.4 Um novo olhar sobre Sarai

Que tipo de paixão pode despertar uma mulher estrangeira, anciã e estéril? Esta é uma pergunta que certamente incomodou o leitor, caso tenha almejado tomar os dados ao pé da letra. Mas o percurso feito leva a perceber que a imagem descrita de Sarai revela, ainda em germe, a história do povo de Israel.

Ela vivência o ambiente desfavorável marcado pela seca e pela fome (formas de esterilidade) é desenraizada, errante, peregrina e está a caminho. Juntamente com seu esposo,

281 SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis, 2008, p. 75.

282 Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1897, p. 50.

283 Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 139. O texto assume a defesa da virtude das mães de Israel e

precisa que elas, a bem dizer não cometeram adultério; EL PENTATEUCO. El Pentateuco, 1976, p. 50; hrwt. Torá, 2001, p. 30-31; 49-51. CHUMASH, hrwt yfmwx hfmx. O livro do Gênesis tyfarb rps. São Paulo: Maayanot, 2008, p. 73-75.

vão buscar sobrevivência em terra estranha, onde suas vidas estarão sob ameaça. O ambiente, hostil e adverso à geração da vida, propicia a esterilidade inicial.

Nota-se, portanto, que a linguagem dessa que parece ser uma simples narrativa, está carregada de simbologia. A primeira a ser posta em evidência é a importância do matrimônio de Sarai e Abrão. A intervenção de Deus resgata o matrimônio e garante a continuidade da promessa. Como foi visto anteriormente, o matrimônio é símbolo da Aliança, relação constantemente atribulada devido às potências estrangeiras.

Outra imagem é a beleza de Sarai, uma beleza que parece incorruptível e cobiçada. Nem mesmo a ação do tempo e o desgaste do caminho diminuem a beleza de Sarai. Sua beleza é equivalente à do templo, o qual não se desgasta nem fica feio, nem mesmo depois de sua destruição e extinção, pois, esse continua a existir na memória do povo, e sua beleza se perpetua no imaginário nostálgico do povo da Aliança (cf. 1Rs 6-7; 2Cr 2-3).

Também a esterilidade é uma imagem que caracteriza a matriarca. A seca e a fome são formas de esterilidade, e ao mesmo tempo, experiências críticas que deixam uma profunda impressão na memória humana. Durante o período da formação de Israel, os hebreus se auto- compreendem como seres de passagem, transição, êxodo e desenraizados, na terra que consideram como sua (cf. Dt 26,5-10).

Suzana284 diz que a esterilidade faz parte da auto-percepção dos israelitas e explica que o ciclo patriarcal e o ciclo da esterilidade ancestral se superpõem, e estão fundamentados numa nova ordem do cosmos. Nessa nova ordem, o tema da criação é retomado, tendo como pano de fundo a esterilidade de Sarai, a qual desencadeia o processo de criação. Primeiro, Deus se dirige a Abrão por meio da palavra e lhe ordena a ruptura e o desenraizamento (cf. Gn 12,1) e depois o vincula à promessa de posteridade grandiosa (cf. Gn 12,2).

A autora afirma que, todos os modos de esterilidades figurados na Bíblia, são de origem divina. Estes são apresentados como estados transitórios, ou seja, intermediário onde se vivencia a escassez e o desnudamento, mas, como espaço de transformação.

Suzana procura demonstrar a complexidade do conceito de esterilidade. O desdobramento de sentidos conferidos a este termo revelam elementos constitutivos da religião, da história e da auto-percepção de Israel. Em sua análise, aponta que a esterilidade recorrente nas tradições bíblicas não se restringe a um recurso literário, mas constitui um motivo seminal de visões variadas dos antigos israelitas através dos tempos.

Sua hipótese vai além do esquema “esterilidade-matriarcas-feminino”, antes, enfoca a experiência de Israel que inclui os sentidos de “ruptura, desenraizamento e errância”. Elementos de três esferas distintas se comunicam formando uma unidade simbólica definindo o ciclo patriarcal num todo: 1) Infertilidade inicial das matriarcas; 2) O desenraizamento dos patriarcas; 3) A fome na terra. Suzana faz paralelo entre patriarcas-matriarcas e a terra de Canaã. Segundo a mesma, os patriarcas e as matriarcas, na qualidade de estrangeiros são desarraigados e infecundos, assim como a terra de Canaã é seca e marcada pela fome.

A esterilidade patriarcal, arquitetada pela divindade, é mais abrangente do que simplesmente enaltecer o nascimento de um herói. Essa, assim como o deserto, é o lugar em que a relação direta com Deus está em primeiro plano. Nesta os humanos vivenciam a humildade.

Neste contexto, Deus revelará sua misericórdia285 gerando todo o povo de Israel. Por isso, Ele quis contar com Sarai, símbolo do povo, da Aliança, do templo, da esposa fiel, a escolhida para colaborar diretamente no plano salvífico, como mãe do filho da promessa. O texto leva a olhar Sarai, irmã e esposa de Abrão, não somente dentro de uma ordem material, mas dentro de uma ótica que transcende ao meramente dado, ou seja, a cosmovisão salvífica.

285 Misericórdia em hebraico é (

~ymix]r;),ou seja, a forma plural de útero (~x,r,) A misericórdia de Israel vem do útero de Deus. Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica, 2004, p. 16.

CONSIDERAÇÕES

Este capítulo corresponde ao título do trabalho “Sarai irmã e esposa de Abrão”, para chegar a um sentido plausível com referência a esta questão, estudou-se os versículos referentes sob a perspectiva linguístico-literária e histórico-teológica.

Com referência ao estudo linguístico e à tradução, o texto segue certa linearidade, embora não deixe de oferecer dados interessantes, tal como a presença de interrogações, exclamações e imperativos. Neste capítulo, o narrador passa a voz ao personagem Faraó. Portanto, é o Faraó o responsável pela apresentação do desfecho da narrativa, cujas expressões são carregadas de tensões notadas nas interrogações, afirmações e imperativos. Ele descobre que Sarai é esposa de Abrão. Observa-se que, o Faraó não nega o fato de Abrão e Sarai serem irmãos, não diz que Abrão mentiu, somente confirma o fato de ser, Sarai esposa de Abrão.

Na análise estilística evidenciaram-se, na voz do Faraó, as repetições dos sufixos de primeira pessoa do singular, dos sufixos de segunda pessoa masculino singular, a assonância marcante dos pronomes interrogativos dando força retórica ao discurso. A presença de paralelismos simples sinonímicos, bem como, das figuras de linguagem denominadas erotesis ou interrogação e ecfonesis ou exclamações.

Se na voz de Abrão (cf. Cap. II) chamou a atenção o uso da terceira pessoa masculino plural referente aos oficiais do Faraó, e segunda pessoa do feminino singular referente a Sarai, revelando, deste modo, seu temor com relação aos egípcios e atribuindo à Sarai a responsabilidade pela sua vida, neste capítulo, correspondente ao desfecho, na voz do Faraó é o tu masculino a preponderar, demonstrando que o foco da tensão se concentra entre o que disse e não disse Abrão.

Com referência ao estudo histórico-teológico, abordou-se o estatuto da irmã esposa dentro dos costumes legais de povos do Antigo Oriente, contemporâneos ao período patriarcal, depois se passou a investigar já dentro das Sagradas Escrituras a possibilidade de ela ser

realmente sua irmã e esposa, e o significado desta expressão, os resultados levaram a dar um salto para a dimensão teológica, vendo em Sarai não apenas uma mulher, mas a figura do povo.

O aprofundamento deste tema permitiu chegar à tessitura do seguinte paradigma: Imagens femininas, como personificação do povo, como a cidade e a noiva infiel, mas convertida; Sarai, como o povo e a esposa fiel, ela é o protótipo do povo que permaneceu fiel ao seu esposo, modelo de virtude para as filhas de Jerusalém. Deste modo, o leitor foi convidado a lançar um novo olhar sobre Sarai, não um olhar cobiçoso como aqueles dos anfitriões egípcios e de seu esposo, mas um olhar de esperança e de auto-identificação, pois, assim como o narrador se utiliza de figuras femininas como a cidade, a virgem, a esposa e a mulher para personificar o povo. Sarai pode, também, ser aqui entendida como este protótipo do povo virtuoso e sua beleza como expressão da Aliança.

CAPÍTULO V

EXPULSÃO E SUBIDA

O caminho de Sarai e Abrão é agora mais claro do que quando foi iniciado. O leitor, após tê-lo percorrido, pode ver a estrada que o trouxe até aqui. Sob o ponto de vista romântico, a conclusão apresentada pelo narrador não parece ser um final feliz, mas para os filhos de Abrão e Sarai, os descendentes da promessa essa conclusão não poderia ser melhor.

Os pais saíram carregados de bens, ou seja, de certo modo, tiveram vantagens, por outro lado de modo semelhante acontecerá aos hebreus ao saírem do Egito. Segundo a versão do Êxodo como expulsão (cf. Ex. 11,1; 12,31-32; 4,21; 6,1), tal ocorrido ajudou àquela massa de peregrinos a se formar e compreender-se como povo de Deus, bem como, a entender-se como unidade e fundamentar suas origens num ancestral comum. Abrão e Sarai são

considerados pais na fé, não só por que foram eles os primeiros a gerarem uma descendência, mas também, por esta experiência fundante e significativa.

Tem-se, portanto aqui uma dupla expulsão: a primeira foi àquela provocada pela fome, e essa, gerada pela indignação do soberano. O retorno deu-se carregado de bens, e a vida foi preservada sem danos. Esse é o sonho do migrante, retornar à sua terra e poder viver na mesma. Sua terra pode não ser a melhor, a mais rica, mas foi esta que Deus lhe deu e, portanto, é bendita e é bendito o fruto que daí brota.