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A pesquisadora Cristina Ferreira Pinto (1990) propõe, no livro O

Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros, uma avaliação do conceito de Bildung em sua manifestação literária Bildungsroman a partir de uma perspectiva de

personagens femininas. Para isso, recupera a crítica literária já feita por outras autoras sobre a ausência de personagens femininas que ocupem a posição de protagonistas em romances deste tipo:

O problema da ausência da protagonista feminina na tradição do "Bildungsroman" e outras questões relativas de caráter histórico, cultural e socioliterário têm sido levantadas por diversas críticas feministas. A primeira a colocar a questão foi provavelmente Ellen Morgan, em um estudo de 1972 sobre o romance (anglo-americano) "neo-feminista". "The Bildungsroman is a male affair", afirma Morgan categoricamente (184), lembrando que, embora tivesse havido sempre "romances de aprendizagem" feminina, essa aprendizagem se restringia à preparação da personagem para o casamento e a maternidade. Seu desenvolvimento era retratado em termos de crescimento físico, da infância e adolescência até o momento em que estivesse "madura" para casar e ter filhos (MORGAN, 184). Antes do aparecimento do romance "neofeminista", segundo Morgan, os poucos exemplos de "Bildungsroman" femininos que focalizavam o desenvolvimento pessoal – ou seja, psicológico, emocional e intelectual – da protagonista terminavam constantemente em fracasso. (PINTO, 1990, p. 13).

Tomando o Bildungsroman como uma manifestação do próprio conceito de

Bildung, pode-se perceber diferenças na própria ideia de Bildung para uma mulher:

no período romântico não era esperado que uma mulher viajasse e se colocasse em contato com o diferente ou estrangeiro para então se formar enquanto indivíduo. Ao contrário: a mulher se formava em casa, em contato constante com os seus. Pinto (1990) chega a defender, inclusive, que personagens femininas não são protagonistas de Bildungsroman típicos justamente pelas expectativas sociais quanto ao papel da mulher:

Segundo as expectativas que a sociedade tinha em relação à mulher, portanto, seu 'aprendizado' se daria dentro de um espaço bem delimitado. O 'mundo exterior' responsável pela formação do herói do Bildungsroman seria, no caso da protagonista feminina, os limites do lar e da família, não havendo margem para seu crescimento interior. (...) Vista dentro desse cenário limitado, a mulher parece inadequada para protagonizar um "Bildungsroman" (PINTO, 1990, p. 13-14).

Pinto (1990) começa elencando as características do Bildungsroman50,

afirmando que já nas características se cria uma impossibilidade de uma Bildung para uma personagem feminina. Cito um exemplo disso: parte de um Bildungsroman é a viagem ou o contato da personagem com um ambiente e pessoas que lhe são estrangeiras. Considerando, ao menos no período romântico, a viagem socialmente

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50 Um Bildungsroman seria uma obra que apresenta: "infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou limitação do meio de origem, o mundo exterior, auto-educação, alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação e uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida independente" (PINTO, 1990, p. 14).

interditada às mulheres, ao menos parte das convenções do gênero literário teriam que ser diferentes para personagens femininas.

Ao estudar obras de ficção brasileira de autoras como Clarice Lispector ou Raquel de Queiroz, Pinto (1990) com frequência identifica uma possível Bildung em andamento com personagens femininas, interrompida quando há a aceitação de um papel social associado de antemão, como o de esposa ou mãe. "Outras vezes essa interrupção se dá de maneira mais brusca – truncamento, mutilação física e/ou emocional, de um destino fracassado, isto é, o destino de uma mulher que foge aos padrões sociais de feminilidade" (PINTO, 1990, p. 17).

Embora a pesquisa de Pinto discuta a representação de mulheres no

Bildungsroman, isso reflete o próprio projeto de Bildung, diferente de acordo com o

gênero do indivíduo em questão: a ideia do jovem viajante em busca do conhecimento a partir do contato com o outro só está disponível para os homens (além, é claro, de ser também uma questão de classe – só aquele que tem recursos para viajar).

Ora, em parte, isso está presente na própria biografia de Ida Pfeiffer. Sua

Bildung começa quando criança, ao ter contato com os livros de viagem que tanto

marcaram sua imaginação e vontade. O processo é interrompido pelas expectativas sociais do período, personificadas na figura da mãe e sua insistência na manutenção das expectativas sociais via um casamento arranjado. Pfeiffer se torna esposa e mãe e, depois de sair desses papéis sociais (o amadurecimento dos filhos faz com que a maternidade deixe de ser uma obrigação diária; a separação seguida por uma viuvez fazem com que deixe de ocupar o papel de esposa) retoma sua Bildung. Sem espaço para uma educação formal, a viagem é a maneira encontrada pela autora para ter suas experiências formadoras – tanto que, já em movimento, aprende línguas e até ciências.

Para Habinger (2004), os relatos de viagem de mulheres tinham também a função de mostrar novas perspectivas para os leitores:

No entanto, como já foi esclarecido, as publicações também foram uma oportunidade para as escritoras de viagem expressarem suas próprias opiniões, examinarem criticamente sua própria sociedade e aproveitaram ao máximo essa oportunidade. O confronto com projetos sociais anteriormente desconhecidos, com ideias de feminilidade ou de divisão do trabalho entre os sexos que diferem das da Europa também poderia dar origem a um exame crítico da própria posição social.51 (HABINGER, 2004, p. 115)

Assim, ao serem expostas a realidades diferentes da sua e a modelos de construção de sociedade diferentes dos seus, as autoras teriam mais argumentos para desenvolver um olhar crítico quanto à sua própria sociedade e ao seu papel dentro dela. Aqui, a Bildung se dá tanto para a autora, que vive essa transformação ao entrar em contato com o estrangeiro, mas também com o leitor de sua obra, que percebe essa transformação e tem acesso a uma outra realidade.

Pfeiffer não viveu um projeto de Bildung prototípico. Ainda assim, suas viagens e seus livros representam um grande passo e uma quebra de paradigmas, pois estes não eram os espaços esperados para uma mulher. Não são raros os críticos ou comentadores que a aproximem de figuras masculinas – na tentativa de descrever um fenômeno considerado impossível, a única saída possível é compará-la com aqueles que podiam participar das viagens e da escrita.

Estes são assuntos tratados no próximo capítulo: as características da escrita de Pfeiffer, os mecanismos narrativos presentes em sua obra e as escolhas tradutórias derivadas dessas discussões.

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51 “Die Publikationen waren aber auch, wie bereits deutlich wurde, eine Gelegenheit für die Reiseschriftstellerinnen, die eigene Meinung zu äußern, sich kritisch mit der eigenen Gesellschaft auseinanderzusetzen, und diese Möglichkeit nutzen sie reiflich aus. Dabei konnte die Konfrontation mit bisher unbekannten gesellschaftlichen Entwürfen, mit Vorstellungen von Weiblichkeit oder einer Arbeitsteilung zwischen den Geschlechtern, die von jenen in Europa abweichen, auch Anlaß sein, die eigene gesellschaftliche Position kritisch zu durchleuchten“.

4 LEITURA E ANÁLISE DOS CAPÍTULOS INICIAIS DE “A JORNADA DE UMA MULHER AO REDOR DO MUNDO”, DE IDA PFEIFFER

Como dito, encontrar a obra de Pfeiffer foi uma grande surpresa. Ler uma mulher, já de certa idade, viajando por meses em navios, encarando florestas fechadas apenas com a companhia de um guia e se propondo a experienciar o que cada lugar tinha a oferecer, fosse isso comer carne de macaco ou jantar encolhida num canto de um barco para não ser derrubada pelas tormentas, me mostrou que existem mais maneiras de viajar e, mais importante, de ver o mundo, do que eu imaginava. As incertezas eram maiores que as certezas: a hospedagem, as datas de partida e chegada, os destinos da viagem como um todo e até mesmo a própria possibilidade de retorno eram incertas desde o início de viagem, mas iam se refazendo a cada parada e destino.

A vontade de ver o mundo, a abertura a viver experiências novas e a resistência para lidar com o inesperado foram as características mais marcantes para mim na narrativa de Pfeiffer inicialmente. Na minha vida enquanto leitora, esta posição frequentemente não pertencia às mulheres: elas eram aquelas que esperavam os viajantes ou que recebiam os viajantes em seus destinos, não as que viajavam. Admirá-la, porém, não é vê-la como infalível. Seu olhar etnocêntrico em relação aos outros povos provavelmente é a maior de suas falhas: ler esses trechos hoje é, no mínimo, incômodo e desconfortável (como sua afirmação de que negros são sujos e feios). Descobri então Pfeiffer como um indivíduo complexo. Não só uma heroína e aventureira ou uma imperialista e preconceituosa, mas sim uma mulher com todas essas características. E sua escrita mostra justamente uma pessoa descrevendo os outros com parâmetros de comparação inalcançáveis ao mesmo tempo que consegue ser empática e abolicionista.

É fácil ver Pfeiffer como uma mulher emancipada ou precursora do feminismo por ter quebrado tantas convenções sociais de seu período. Mas Pfeiffer é uma mulher de seu tempo – e, como Mills (1991) afirma, deve ser compreendida como tal. Afinal, como mulher viajante e escritora, ela estava submetida a várias limitações do seu tempo, inclusive no campo editorial (escolhendo estilos de escrita e temas de discussão tidos como apropriados, por exemplo).

Depois de ter contextualizado a obra de Ida Pfeiffer e explorado o conceito de

obra da viajante, buscando ressaltar as mais determinantes para a construção narrativa da própria autora (características que tento manter na minha tradução, apresentada no capítulo seguinte). Além disso, relaciono Bildung com essas características, com o objetivo de mostrar como o próprio conceito se manifesta na escrita de Pfeiffer.