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Volto aqui para a pergunta que guiou este trabalho: por que e como traduzir Pfeiffer hoje? Me parece inegável que há, na obra de Pfeiffer, um interesse histórico tanto pelas descrições de um Brasil colonial como pela maneira com que se dava a relação entre viajantes europeus e o país – no sentido também de entender a prática de um racismo e sua sistematização no discurso. Mas, mais do que isso, acredito haver um interesse literário, considerando suas características e o quão inédito é para o leitor de hoje. Nos próximos parágrafos, gostaria de discutir o como.

O texto de Ida Pfeiffer acaba sendo uma grande mistura de influências – ou, usando as palavras de Sara Mills, está exposto a diferentes restrições do seu tempo e sociedade. Por um lado, a ideia de Bildung, manifesta em sua vontade de conhecer o mundo e entrar em contato com o estrangeiro. Mas é uma Bildung diferente daquela apresentada por homens do período, por ser marcada por sua existência enquanto mulher: suas experiências pelo mundo substituem uma educação formal à qual não teve acesso. Isso faz com que esteja inserida nessa produção de maneira marginal, o que deixa marcas narrativas em seu texto. Além disso, muda a recepção dos seus textos por parte dos leitores, que o enquadram de uma maneira diferente. Mas ainda que ocupe uma posição marginal na produção do seu país, continua sendo eurocêntrica, outro ponto de vista que é marcado continuamente em seu texto. Levando em consideração todas as forças debatidas, apresento agora minha proposta de tradução.

Em A Prova do Estrangeiro, Berman (2002) reflete sobre um sistema de "ganhos" e "perdas" de uma tradução, defendendo que essa relação não pode ser pensada apenas em termos de uma porcentagem entre essas duas ações. "Ao lado desse plano, inegável, existe um outro, em que alguma coisa do original aparece e que não aparecia na língua de partida. A tradução faz girar a obra, revela dela uma outra vertente" (p. 21). Com isso, quer dizer que uma tradução gera uma nova potencialidade no texto – a outra língua e o processo de transformação de um texto em outro permite que alguma característica ou conteúdo se potencialize. Do mesmo jeito que a viagem faz Pfeiffer girar, revelando dela uma outra vertente – de escritora,

de aventureira, de naturalista, que sua posição enquanto esposa vienense não permitia.

Tomando isso em consideração, pensei, durante o meu processo tradutório, no que eu queria potencializar ou o que foi potencializado e acredito que o maior ganho desta tradução seja o amadurecimento do texto e do debate que o cerca. Ler Pfeiffer a partir de um debate decolonial, feminista e tradutório permite que o texto não seja traduzido inocentemente, mas com ciência de suas limitações e de seus preconceitos. O objetivo não é nem ignorar nem reforçar essas convicções e sim possibilitar sua crítica.

Contextualizar a obra e permitir uma leitura crítica, que passou por um processo de reflexão, é fazer com que o texto passe, ele mesmo, por um processo de

Bildung. Pfeiffer não pode – e não deve – ser lida hoje como era lida em seu período.

Seu relato não é nem imparcial nem tão inocente quanto ela faz parecer no prólogo do seu livro. A crítica apresentada aqui forma uma rede de conexões em que Pfeiffer é vista como uma autora de seu período, trabalhando com uma série de restrições por conta de seu gênero, escrevendo em um gênero literário com suas convenções em uma sociedade que impunha uma série de limitações raciais e sociais. Quando se passa o texto por todos esses filtros e o apresenta na língua falada na sociedade narrada por ele, chega-se em um texto gebildet, que chamo aqui de tradução (in)formada – ou seja, que tem informações e que passou por uma (trans-)formação.

Materialmente, isso se manifesta em uma edição crítica, com comentários de rodapé que acompanham a tradução para explicar e atualizar informações, assim como um aparato crítico que permita a contextualização de obra em seu tempo. Tal aparato deverá fazer parte de uma eventual publicação do texto em livro, já que é a partir dele que se dá o debate e a crítica do texto que o atualizam para a sociedade de hoje.

Acredito que isso se torna visível no aspecto mais desafiador da tradução, o tom preconceituoso da autora. A escolha lexical tentou não apagar ou diminuir esse tom, mas sim o transmitir. O objetivo disso não é o reforçar, mas o tornar passível a críticas. O aparato teórico não pretende justificar, mas entender e explicitar os mecanismos através dos quais é materializado.

Entrando em detalhes menores, escolhi a edição de 1850 como base de tradução, sendo desta a separação dos capítulos. Usei também uma edição digital, publicada em 2015, para tirar dúvidas de palavras (quando a tipologia da edição de

1850 não permitia a leitura do texto com clareza). Consultei também a tradução inglesa de 1851 para esclarecer soluções tradutórias de palavras e expressões que apresentavam divergências em outras fontes de pesquisa, como dicionários.

A edição adotada tem como título Eine Frauenfahrt um die Welt, formada por um artigo indefinido, seguido por um objetivo composto (jornada de uma mulher) e um locativo (pelo mundo), estrutura que optei por seguir na minha tradução – A jormada de uma mulher ao redor do mundo. Em edições mais recentes, pode-se encontrar o título Eine Frau fährt um die Welt [Uma mulher viaja ao redor do mundo], composto por artigo, substantivo, verbo e locativo.

Optei por manter as unidades de medida tais quais foram usadas pela autora para efeito de registro histórico e manutenção da memória – e indico as conversões para medidas métricas nas notas de rodapé para que o leitor possa acessar mais facilmente essas informações. As palavras escritas por Pfeiffer em português no original (em geral nomes de logradouros) foram mantidas em itálico.

5 A JORNADA DE UMA MULHER AO REDOR DO MUNDO